Ahmed
Bensaada**, universitário argelino vivendo no Canadá há vários anos,
segue atentamente as mudanças e perturbações no Magrebe e no Médio
Oriente, às quais consagrou vários artigos, colóquios e conferências.
Sobre as “primaveras” árabes assumiu desde o início um olhar muito
crítico, tendo mesmo escrito um livro, Arabesco americano, a que se
seguiu há pouco Arabesco$, uma nova edição, corrigida e enriquecida, de
uma actualidade gritante. Cinco anos depois das “primaveras árabes!
– Cinco anos são passados desde as chamadas “primaveras
árabes”. O balanço é não muito satisfatório, em muitos dos países
envolvidos é mesmo catastrófico. Porquê, em sua opinião?
– “Não muito satisfatório”, diz? Estas perturbações maiores que o
pensamento ocidental precipitada e falaciosamente baptizou como
“primaveras” não geraram senão o caos, a morte, a raiva, o exílio e a
desolação em vários países árabes. Seria necessário talvez perguntar aos
cidadãos dos países árabes “primaverados” se a situação desastrosa em
que eles hoje vivem pode ser qualificada de primaveril.
Os dados são eloquentes. Um estudo recente mostrou que esta funesta
estação causou, em cinco anos, mais de 1 milhão e 400 mil vítimas
(mortos e feridos), às quais é preciso ajuntar mais de 14 milhões de
refugiados. Esta “primavera” custou aos países árabes mais de 833 mil
milhões de dólares, dos quais 461 mil milhões em infra-estruturas
destruídas e em locais históricos devastados. Por outro lado, a região
MENA (Middle East and North Africa) perdeu mais de 103 milhões de
turistas, uma verdadeira calamidade para a sua economia.
Na primeira versão do meu livro, “Arabesco americano” (Abril de
2011), pus em evidência a ingerência estrangeira nestas revoltas que
tocaram a rua árabe, assim como a falta de espontaneidade desses
movimentos. Antes destes acontecimentos os países árabes estavam num
estado efectiva de decrepitude: ausência de alternativa política,
desemprego elevado, democracia embrionária, uma vida má, direitos
fundamentais não respeitados, falta de liberdade de expressão, corrupção
a todos os níveis, nepotismo, fuga de cérebros, etc.. Tudo “terreno
fértil” para a desestabilização. Mas embora as reivindicações da rua
árabe sejam reais, as pesquisas realizadas mostraram que os jovens
manifestantes e ciberactivistas árabes eram formados e financiados por
organismos americanos especializados na “exportação” da democracia, tais
como a USAID, a NED, a Freedom House ou a Open Society do
multimilionário George Soros. E tudo isso antes da imolação pelo fogo de
Mohamed Bouazizi.
Esses manifestantes, que paralisaram as cidades árabes e que
expulsaram os velhos autocratas árabes instalados no poder há decénios,
representavam uma juventude cheia de arrebatamento e de promessas.
Uma juventude instruída, manejando com brio as técnicas da
resistência não-violenta e com slogans incisivos. Essas mesmas técnicas
que foram teorizadas pelo filósofo americano Gene Sharp e postas em
prática pelos activistas sérvios do Otpor nas revoluções coloridas do
Leste da Europa. Técnicas ensinadas aos jovens manifestantes árabes
pelos fundadores do Otpor, no seu centro CANVAS (Center for Applied Non
Violent Action and Strategies), especialmente concebido para formação de
dissidentes.
Uma juventude viciada em novas tecnologias, cujos líderes foram
seleccionados, formados, organizados em rede, e apoiados pelos gigantes
americanos da Net por intermédio de organismos americanos como a AYM
(Alliance of Youth Movements).
Mas, tal como os activistas das “revoluções coloridas” [1], os
ciberdissidentes árabes foram treinados apenas para decapitar os
regimes. Eles são “comandados” – provavelmente sem o saberem – para
levar a cabo a queda do topo da pirâmide do poder. Mas não têm nenhuma
interferência na marcha dos acontecimentos que se seguem depois de os
autocratas serem expulsos e provocarem o vazio no poder. Não têm nenhuma
aptidão política para concretizar a transição democrática que deveria
seguir-se a essa mudança maior.
Num artigo sobre as “revoluções coloridas”, escrito em 2007 pelo
jornalista Hernando Calvo Ospina nas colunas do Le Monde Diplomatique,
pode ler-se: “A distância entre governantes e governados facilita a
tarefa da NED [2] e da sua rede de organizações, que fabricam milhares
de ‘dissidentes’ graças aos dólares e à propaganda. Uma vez alcançada a
mudança, a maior parte desses ‘dissidentes’ e das suas organizações de
todo o género, desaparecem da circulação, sem honra nem glória”.
Assim, quando o papel atribuído aos ciberactivistas termina, são as
forças políticas locais, contrárias a qualquer mudança profunda, que
ocupam o vazio criado pelo desaparecimento do antigo poder. No caso da
Tunísia e do Egipto, foram os movimentos islamistas que, num primeiro
momento, aproveitaram a situação, evidentemente ajudados pelos seus
aliados, como os Estados Unidos, certos países ocidentais e árabes e a
Turquia, que devia servir de modelo.
É claro que esta “primavera” não tem nada a ver com os slogans
corajosamente entoados pelos jovens ciberactivistas nas ruas árabes e o
abuso da palavra democracia não passa de uma armadilha. De facto, como
não colocar sérias interrogações sobre esta “primavera” quando se sabe
que os únicos países que sofreram esta estação foram repúblicas? Será
por mero acaso que nenhuma monarquia árabe tenha sido atingida por este
tsunami “primaveril”, como se esses países fossem santuários da
democracia, da liberdade e dos direitos humanos?
A única tentativa de sublevação anti-monárquica, a do Bahrein, foi
violentamente sufocada pela colaboração militar do Conselho de
Cooperação do Golfo (CCG), o silêncio cúmplice dos media dominantes e a
conivência de certos políticos, sempre tão loquazes quando
acontecimentos análogos tocaram certas repúblicas árabes.
Estas “primaveras” visam desestabilizar países árabes bem
identificados num quadro geopolítico muito mais vasto, certamente o
“Grande Médio Oriente”. Esta doutrina preconiza a reformulação das
fronteiras de uma região geográfica reagrupando os países árabes e
certos países da vizinhança, pondo assim fim às fronteiras herdadas dos
acordos Sykes-Picot. Embora lançado sob a liderança do presidente G. W.
Bush e dos seus falcões neoconservadores, este projecto inspira-se numa
ideia teorizada em 1982 por Oded Yinon, um alto funcionário do
ministério dos Negócios Estrangeiros israelita. O “Plano Yinon”, como é
originalmente chamado, tinha o objectivo de “desfazer todos os estados
árabes existentes e reorganizar o conjunto da região em pequenas
entidades frágeis, maleáveis e incapazes de enfrentar os israelitas”.
E essa divisão está infelizmente em curso…
– Neste quadro, ainda assim a Tunísia é uma excepção. Como explica isso?
– Comparativamente com a Líbia, a Síria ou o Iémen, a situação na
Tunísia pode parecer interessante. Mas de facto a Tunísia não representa
um modelo conseguido como nos querem fazer crer os media dominantes. E
não é o Prémio Nobel da Paz recentemente outorgado à Tunísia que muda o
que quer que seja. Quando se vê a quem foi atribuído nestes últimos
anos, pergunta-se para que serve este prémio. E os tunisinos, que vivem
há cinco anos a “primaverização” do seu país, conhecem bem este assunto.
Comentando este quinto aniversário, alguns bloggers não estiveram com
meias medidas. “Único país democrático do Magrebe+Prémio Nobel, tudo o
resto é pior do que o período ZABA (Zine el-Abidine Ben Ali)”. Ou então,
com uma ponta de humor: “Injustiça social, tortura, impunidade, estamos
nas tintas, temos o Prémio Nobel”.
Numa recente entrevista ao Figaro, um meu amigo tunisino, o filósofo
Mezri Haddad, declarou: “Em toda a parte – incluindo na Tunísia, que se
apresenta como o paradigma revolucionário bom, e o país a que se
atribuiu o Prémio Nobel da Paz em vez de perdoar a dívida externa que se
tornou vertiginosa em menos de cinco anos e apoiar a sua economia hoje
agonizante – a ‘Primavera árabe’ destruiu mais do que construiu”. Antes
de acrescentar: “Depois de 2011, a Tunísia tornou-se o primeiro país
exportador de mão-de-obra islâmica-terrorista tanto para a Líbia como
para a Síria. Os relatórios das Nações Unidas são esmagadores para o
tunisino que sou. O autor do último atentado suicida em Zliten, na
Líbia, é um tunisino, como o que atacou a mesquita de Valência ou o que
acaba de ser abatido diante do comissariado de polícia do 18.º distrito
de Paris”.
Com efeito, a Tunísia ainda é, de longe, o maior fornecedor de
jihadistas do Estado Islâmico na Síria. Triste recorde para um país que
quer passar pela excepção que justifica a terminologia primaveril. E
tudo isso sem contar os assassínios políticos, os atentados terroristas
cegos que enlutaram o país e as sórdidas histórias de “jihad al-nikah”,
popularizada pelos jovens tunisinos radicalizados.
E também não será a mudança da família do Goncourt para o Museu do
Bardo, ainda marcado pelos estigmas do atentado de 18 de Março de 2015,
que dará à Tunísia o rótulo de um país que conseguiu a sua transição
democrática. Este “empurrão” francês não apagará de maneira nenhuma o
lapso da ministra francesa Michèle Alliot-Marie que ofereceu o
saber-fazer francês à polícia de Ben Ali para “resolver situações
securitárias” e pôr fim à impertinência dos manifestantes que tinham
invadido a Avenida Bourguiba.
Estes manifestantes que arvoravam a sua juventude como bandeira de
um futuro radioso, o que pensam da idade dos “dinossauros políticos”
actuais depois de terem afastado o presidente Ben Ali? Vejam só: Moncef
Marzouki (71 anos), Rached Ghannouchi (75 anos) e, sobretudo, o
presidente actual, Béji Caid Essebsi (90 anos).
Podem aqueles manifestantes acreditar realmente que uma revolta
fundamentalmente jovem, qualificada de “facebookiana”, possa ser
representada por gerontocratas, velhos caciques de regimes odiados,
islamistas belicosos ou pelos que confundem o interesse do país com o
interesse supranacional, da sua confraria?
Pensavam eles que um dia uma lei eleitoral seria aprovada para
reabilitar os antigos apoiantes de Ben Ali, contra quem combateram com
determinação?
Teriam eles imaginado que, cinco anos depois da partida de Ben Ali,
um jovem diplomado tunisino, Ridha Yahyaoui, se mataria em Kasserine
para protestar contra o favoritismo na admissão para um emprego, flagelo
que eles tinham denunciado e contra o qual se tinham batido? E que os
distúrbios que se seguiram a este drama seriam tão duramente reprimidos?
O que houve de tão positivo nesta “Primavera” tunisina se, cinco anos passados, Yahyaoui pelas mesmas razões imita Bouazizi?
– Na sua opinião que diferenças há nas realidades actuais de
países como a Síria ou a Líbia, se tivermos em conta que este último
país tanto diz à Tunísia, dada a sua proximidade?
– A guerra civil que devasta actualmente a Síria tem curiosas
similitudes com a que prevaleceu na Líbia: a) o epicentro inicial da
revolta síria não se encontrava na capital mas numa região fronteiriça
(contrariamente ao que aconteceu na Tunísia e no Egipto); b) uma “nova
antiga” bandeira apareceu com estandarte dos insurrectos; c) a fase
não-violenta da revolta foi muito curta; d) a implicação militar
estrangeira (directa ou indirecta) rapidamente transformou os tumultos
não-violentos numa sangrenta guerra civil. Com efeito, quando a teoria
de Gene Sharp [3] não funciona e os ensinamentos da CANVAS não dão
frutos, como nos casos da Líbia e da Síria, as manifestações
transformam-se muito rapidamente numa guerra civil. Esta metamorfose
ocorre graças a uma ostensiva ingerência estrangeira dos países antes
referidos, através da NATO no caso da Líbia, ou de coligações
heteróclitas como sucedeu na Síria).
Assim, ajudados pelos seus aliados árabes e regionais, os países
ocidentais podem passar, sem quaisquer problemas de consciência, duma
abordagem não-violenta à Gene Sharp a uma guerra mortífera e sangrenta
onde correm rios de sangue árabe.
A efémera fase sharpiana de manifestações populares foi mesmo
utilizada para justificar a intervenção militar da NATO na Líbia ou da
coligação anti-Bachar na Síria. A resolução 1973 da ONU que permitiu a
destruição da Líbia foi justificada pela falsa acusação que as forças
leais a Kadhafi tinham feito entre a população civil, pelo menos 6.000
mortos. Na verdade, numerosos países entenderam que os Estados Unidos, a
França, a Grã-Bretanha e seus aliados deturparam e abusaram desta
resolução permitindo à NATO violar o mandato do Conselho de Segurança.
Tendo em conta «a lição da Resolução 1973» países como a Rússia e a
China opõem-se hoje a uma resolução das Nações Unidas de condenação da
Síria ou do seu presidente, Bachar al-Assad. Se não fosse isso, os media
de dominantes de todo o mundo ter-nos-iam mostrado imagens do
presidente Bachar com o coração ou a cabeça arrancados pelos
especialistas jihadistas no assunto que pululam na Síria graças à activa
colaboração dos ocidentais e dos seus aliados.
Acrescente-se que o estudo dos e-mails da senhora Hillary Clinton
mostrou que as motivações para eliminar Kadhafi nada tinham a ver com
qualquer democratização da Líbia, mas sim com interesses estratégicos,
económicos, políticos, e do ouro de um tesouro famoso. O mesmo se pode
dizer em relação ao presidente sírio.
É também interessante notar que investigações muito sérias
realizadas por especialistas americanos mostraram que a guerra na Líbia
não era necessária, que ela podia ter sido evitada se essa fosse a
vontade dos Estados Unidos. Mostraram também que a administração
americana possibilitou o fornecimento de armas e apoio militar a grupos
ligados à Al-Qaida.
Por outro lado, o contra-almirante americano Charles R. Kubic, na
reforma, revelou que Kadhafi estava disposto a abandonar a Líbia e
permitir o estabelecimento de um governo de transição, sob duas
condições: assegurar que após a sua saída permanecesse uma força militar
para expulsar a Al-Qaida; e a concessão de um livre-trânsito e o
levantamento das sanções contra ele, a sua família e os seus
colaboradores mais próximos.
Por seu turno, o antigo presidente da Finlândia (1994-2000) e Prémio
Nobel da Paz (2008), Martti Ahtisaari, disse ter sido mandatado pela
administração russa, no começo do ano de 2012, para encontrar uma
solução pacífica para o conflito sírio.
O plano da resolução do conflito sírio proposto aos representantes
dos cinco países membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações
Unidas compreendia três pontos:
1) não armar a oposição;
2) organizar o diálogo entre a oposição e Bachar al-Assad;
3) permitir uma retirada digna de Bachar al-Assad.
Segundo Marti Ahtisaari, nada foi feito após a apresentação desta proposta aos representantes americano, britânico e francês.
Parece claro que o objectivo desta “Primavera” não tem nada a ver
com a democracia e os direitos humanos na Líbia e na Síria ou Médio
Oriente e Norte de África, mas sim com a eliminação física dos
presidentes Kadhafi e Bachar al-Assad, que permite destruir estes dois
países, liquidar milhares de árabes, e financiar jihadistas comedores de
corações e degoladores.
Nos casos líbio e sírio, o que chamam “primaveras” são exemplos
pedagógicos de guerras civis fomentadas a partir do estrangeiro sob a
capa de direitos humanos e humanismo.
Actualmente, estes dois países são terras de instabilidade
geopolítica, covis de jihadistas daechianos abertamente financiados por
países ocidentais, países árabes e potências regionais [3].
No quadro desta forte turbulência política e de agressiva ingerência
estrangeira, a Argélia foi e continua a ser um dos principais alvos.
Lembremos que jovens argelinos também participaram em formações de
sérvios da CANVAS e que numerosos países apostaram na “primaverização”
(violenta ou não) da Argélia. As más recordações do decénio negro e a
efemeridade da CNCD (Coordenação Nacional para a Mudança e a Democracia)
forçaram uma decisão diferente.
Hoje, a situação líbia é evidentemente muito preocupante para a
segurança e estabilidade da Argélia. Alguns observadores calculam que
haja 300 grupos de milícias armadas na Líbia e notam que elas estão
fortemente ligadas às suas congéneres tunisinas. De facto, segundo um
relatório da Comissão de Negócios Estrangeiros da Assembleia Nacional
Francesa, datado de Novembro de 2015, “o conjunto de atentados recentes
na Tunísia foram organizados e planificados a partir da Líbia”.
Contrariamente às declarações belicosas e mal-intencionadas de
Nicolas Sarkozy – um dos maiores responsáveis pela destruição da Líbia
–, deveria ser a Argélia a lamentar-se da sua localização geográfica
fronteiriça com a Tunísia e a Líbia. Isso é tanto mais verdade quanto é
certo que a colaboração entre o Daech na Líbia e os movimentos
terroristas do Sahel é cada vez mais evidente, o que dá ainda mais
razões à Argélia para tornar seguro o sul do país.
Vê-se bemque mesmo que a Argélia não tenha sido tocada directamente
por esta lúgubre estação, a “primaverização” a que foram sujeitos os
seus vizinhos coloca-lhe enormes desafios.
– No seu livro Arabesque$, de que acaba de aparecer uma nova
edição revista e enriquecida, a tese que defende é a de uma grande
implicação e de uma grande responsabilidade dos Estados Unidos nas
“primaveras árabes”, um envolvimento norte-americano que classifica,
nada mais, nada menos, como operações de desestabilização de Estados e
de regimes instalados no mundo árabe. Até que ponto continua a defender
esta análise?
– Quando a primeira versão do meu livro intitulado Arabesco
americano, foi publicada, em Abril de 2011, ela foi acolhida com muito
cepticismo porque a tese que ali era desenvolvida opunha-se à euforia
“primaveril” dominante e introduzia uma nota discordante no unanimismo
inebriante. Esta benevolência face a uma “revolução” árabe imaculada,
orquestrada por uma bela juventude instruída e impetuosa, não devia em
nenhuma circunstância ser manchada por acusações que, de toda a maneira,
não podiam ser senão caluniosas. Este discurso foi repetido pelos media
dominantes e por numerosos especialistas “catódicos”, dos quais
subsistem ainda alguns espécimes recalcitrantes.
É preciso reconhecer que opor-se ao romantismo revolucionário no seu
auge, algumas semanas apenas depois da queda de Ben Ali e de Moubarak,
relevava certamente de uma inconsciência temerária.
Contudo, a tese apresentada neste livro – que inclui mais de 260
referências facilmente comprováveis – foi meticulosamente elaborada
graças à análise de numerosos livros, documentos oficiais, relatórios de
actividades, telegramas Wikileaks, etc..
É claro que não foram os Estados Unidos que provocaram a “Primavera”
árabe. Como foi explicado antes, a situação política e sócio-económica
dos países árabes é um terreno fértil para a dissidência e a revolta.
Contudo, a implicação americana no processo não é inócua, longe disso.
Confirmam-no o papel primordial dos organismos especializados na
“exportação” da democracia e maioritariamente subvencionados pelo
governo americano, as formações teóricas e práticas sobre a resistência
não-violenta dadas pela CANVAS, a constituição de uma “liga árabe da
Net” dominando as novas tecnologias, a elaboração de ferramentas de
navegação anónima distribuídas gratuitamente aos ciberactivistas, a
estreita colaboração entre os ciberdissidentes e as embaixadas
norte-americanas nos países árabes, as enormes somas investidas, o
envolvimento militar e as manobras diplomáticas a alto nível. E como a
política externa dos Estados Unidos nunca foi um modelo de filantropia, é
preciso reconhecer a evidência de que os americanos influenciaram
fortemente o curso dos acontecimentos. Não se pode esquecer que todas
estas acções foram empreendidas durante anos, antes do começo da
“Primavera” árabe.
À medida que o tempo avançava, a natureza pérfida destas
“revoluções” foi revelada, as línguas soltaram-se e novos documentos
apareceram. Nada do a partir de então apareceu desmente a minha tese,
pelo contrário ela foi amplamente confirmada. Foi isso que justificou a
redacção de uma nova versão do livro, intitulada Arabesco$ – Inquérito
sobre o papel dos Estados Unidos nas revoltas árabes, editada em
Setembro de 2015. Em comparação com a obra anterior, o novo livro inclui
mais de 600 documentos e o número de páginas quase triplicou. Entre
outros documentos explícitos, citemos, por exemplo, o estudo realizado
em 2008 pela corporação RAND (gabinete de estudos do Exército dos
Estados Unidos), que serviu de fundamento à política americana de
“exportação” da democracia para os países árabes, baseada na formação,
apoio e organização em rede de activistas provenientes desses países.
Um outro documento merece também ser mencionado. Trata-se de um
relatório saído do Departamento de Estado americano, redigido em 2010 e
obtido em 2014 graças à lei para a liberdade de informação.
Esse relatório explica claramente “a estrutura elaborada de
programas do Departamento de Estado visando criar organizações da
‘sociedade civil’, em particular as organizações não-governamentais
(ONG), para modificar a política interna dos países seleccionados a
favor da política estrangeira dos Estados Unidos e dos seus objectivos
de segurança nacional”. Utilizando uma linguagem diplomática, o
documento precisa que o objectivo é “a promoção e a monitorização de
mudanças políticas nos países alvos”.
A implicação dos Estados Unidos na “Primavera” árabe não é uma
especulação intelectual. A sua existência é abertamente reconhecida pela
própria administração americana. É o que explico pormenorizadamente no
livro Arabesco$.
– Partilha a ideia de que as “primaveras árabes” acabaram? Que cenários
possíveis prevê, sobretudo para a Líbia, país em que os actores não
conseguem entender-se sobre uma solução política promovida por uma já
prevista intervenção militar europeia?
– Que se diga: a “Primavera” árabe nunca foi uma Primavera, se
tivermos em conta as consequências desastrosas para as populações, nem
intrinsecamente árabe, porque os movimentos de contestação foram
infiltrados decisivamente por organismos estrangeiros, nomeadamente
estadounidenses.
O processo de “primaverização” do mundo árabe chega ao fim? Certamente.
Os povos árabes não são cegos. Os exemplos da selvagem destruição da
Líbia, da Síria e do Iémen são suficientes para convencer mesmo os mais
renitentes.
O mundo árabe tem imperativamente necessidade de fazer enormes
transformações em diferentes domínios da sociedade; político,
sócio-económico, cultural, de liberdade de expressão, dos direitos
humanos, etc.. Mas para realizar estas mudanças é preciso destrui os
países e fomentar o ressurgimento de práticas medievais, de semear a
morte, o ódio e a desolação? É evidente que não.
Por outro lado, estas mudanças de forma alguma devem obedecer ou
beneficiar agendas estrangeiras; os países árabes não devem agir de modo
que as suas terras se tornem o campo de jogo das potências, no qual se
travem guerras “low cost”, onde só sangue é derramado.
É o caso da Síria, na medida em que este país é actualmente o
cenário de confrontos (directos e indirectos) de numerosos beligerantes,
cada um tendo as suas próprias agendas e ambições, distantes das dos
sírios.
No que diz respeito à Líbia, qualquer nova intervenção militar
ocidental neste país corre o risco de provocar consequências
indesejáveis no território argelino. É por esta razão que a Argélia se
opõe firmemente a tal eventualidade e não exclui nenhum esforço para
encontrar uma solução política para o conflito e fazer sentar-se à volta
da mesma mesa as diferentes facções.
Apenas permitindo aos cidadãos de um país discutir em conjunto, de
boa-fé, tendo em conta os seus interesses nacionais e não os de outros
países, o mundo árabe conseguirá sair da situação de decadência para
onde foi empurrado.
Notas do tradutor:
[1] Movimentos ocorridos a partir de 2000 em alguns países saídos do
desmembramento da União Soviética e que em geral substituíram os regimes
pró-russos por governos pró-ocidentais. Como por exemplo a “Revolução
Rosa”, na Geórgia (2003), a “Revolução Laranja”, na Ucrânia (2004) ou a
“Revolução das Tulipas”, no Quirguistão (2005). Esses e outros golpes de
estado, mais contra-revoluções do que revoluções, quer tenham tido
êxito ou não, foram apoiados pelos Estados Unidos e seus aliados locais.
[2] NED – National Endowment for Democracy, organização privada
norte-americana, criada em 1983 (entre outros, pelo presidente Ronald
Reagan), com o apoio financeiro do Congresso dos EUA e de agências
governamentais como a USAID, com o objectivo de “fortalecer as
instituições democráticas em todo o mundo”. A NED é suspeita de ser um
instrumento da CIA, não de promoção mas de subversão da democracia, e
para tal financia organizações não-governamentais (ONG) e grupos
“pró-democracia” em mais de 90 países.
[3] Sharp, importa recordar, é um académico norte-americano, acusado de
estar ligado à CIA, autor de um muito difundido livro (Da ditadura à
democracia) sobre as técnicas e os meios “pacíficos” de se chegar à
“democracia”, um autêntico manual de golpes de estado suaves, cujas
recomendações foram seguidas, com êxito, em várias “revoluções
coloridas”, e com menos sucesso noutros casos, como, recentemente, em
Hong Kong ou em Angola…
[4] Quando insiste nas “potências regionais”, o autor refere-se
provavelmente a Israel, que ocupa território sírio desde 1967 e é o
grande aliado dos Estados Unidos no Médio Oriente, e ao Irão, país que,
não sendo árabe, é de maioria muçulmana xiita e que apoia política e
militarmente o regime sírio.
* Nordine Azzouz é director do diário argelino Reporters
** odiario.info publicou já um texto de Ahmed Bensaada em:
http://www.odiario.info/index.php?autman=Ahmed+Bensaada
Este texto foi publicado em:
http://www.afrique-asie.fr/component/content/article/75-a-la-une/9837-ahmed-bensaada-les-printemps-n-ont-genere-que-le-chaos-la-mort-la-haine-l-exil-et-la-desolation-dans-plusieurs-pays-arabes