Não houve primaveras nem foram árabes
11.Jun.16 :: Outros autores
Esta
importante entrevista com Ahmed Bensaada, académico argelino radicado
no Canadá, conhecedor profundo da realidade, desmascara o caráter
democrático das chamadas «Primaveras Árabes», a sua origem e verdadeiros
objetivos. E pergunta: por que razão as chamadas Primaveras árabes
deixaram intocadas as antidemocráticas monarquias árabes?Autor de dois livros sobre este tema, «Arabesco americano», em 2011, e Arabesco$, em 2015, Ahmed Bensaada defende e prova que as chamadas «Primaveras árabes», nada tiveram de primaveril e muito menos de árabe…
Ahmed
Bensaada**, universitário argelino vivendo no Canadá há vários anos,
segue atentamente as mudanças e perturbações no Magrebe e no Médio
Oriente, às quais consagrou vários artigos, colóquios e conferências.
Sobre as “primaveras” árabes assumiu desde o início um olhar muito
crítico, tendo mesmo escrito um livro, Arabesco americano, a que se
seguiu há pouco Arabesco$, uma nova edição, corrigida e enriquecida, de
uma actualidade gritante. Cinco anos depois das “primaveras árabes!
– Cinco anos são passados desde as chamadas “primaveras árabes”. O balanço é não muito satisfatório, em muitos dos países envolvidos é mesmo catastrófico. Porquê, em sua opinião?
– “Não muito satisfatório”, diz? Estas perturbações maiores que o pensamento ocidental precipitada e falaciosamente baptizou como “primaveras” não geraram senão o caos, a morte, a raiva, o exílio e a desolação em vários países árabes. Seria necessário talvez perguntar aos cidadãos dos países árabes “primaverados” se a situação desastrosa em que eles hoje vivem pode ser qualificada de primaveril.
Os dados são eloquentes. Um estudo recente mostrou que esta funesta estação causou, em cinco anos, mais de 1 milhão e 400 mil vítimas (mortos e feridos), às quais é preciso ajuntar mais de 14 milhões de refugiados. Esta “primavera” custou aos países árabes mais de 833 mil milhões de dólares, dos quais 461 mil milhões em infra-estruturas destruídas e em locais históricos devastados. Por outro lado, a região MENA (Middle East and North Africa) perdeu mais de 103 milhões de turistas, uma verdadeira calamidade para a sua economia.
Na primeira versão do meu livro, “Arabesco americano” (Abril de 2011), pus em evidência a ingerência estrangeira nestas revoltas que tocaram a rua árabe, assim como a falta de espontaneidade desses movimentos. Antes destes acontecimentos os países árabes estavam num estado efectiva de decrepitude: ausência de alternativa política, desemprego elevado, democracia embrionária, uma vida má, direitos fundamentais não respeitados, falta de liberdade de expressão, corrupção a todos os níveis, nepotismo, fuga de cérebros, etc.. Tudo “terreno fértil” para a desestabilização. Mas embora as reivindicações da rua árabe sejam reais, as pesquisas realizadas mostraram que os jovens manifestantes e ciberactivistas árabes eram formados e financiados por organismos americanos especializados na “exportação” da democracia, tais como a USAID, a NED, a Freedom House ou a Open Society do multimilionário George Soros. E tudo isso antes da imolação pelo fogo de Mohamed Bouazizi.
Esses manifestantes, que paralisaram as cidades árabes e que expulsaram os velhos autocratas árabes instalados no poder há decénios, representavam uma juventude cheia de arrebatamento e de promessas.
Uma juventude instruída, manejando com brio as técnicas da resistência não-violenta e com slogans incisivos. Essas mesmas técnicas que foram teorizadas pelo filósofo americano Gene Sharp e postas em prática pelos activistas sérvios do Otpor nas revoluções coloridas do Leste da Europa. Técnicas ensinadas aos jovens manifestantes árabes pelos fundadores do Otpor, no seu centro CANVAS (Center for Applied Non Violent Action and Strategies), especialmente concebido para formação de dissidentes.
Uma juventude viciada em novas tecnologias, cujos líderes foram seleccionados, formados, organizados em rede, e apoiados pelos gigantes americanos da Net por intermédio de organismos americanos como a AYM (Alliance of Youth Movements).
Mas, tal como os activistas das “revoluções coloridas” [1], os ciberdissidentes árabes foram treinados apenas para decapitar os regimes. Eles são “comandados” – provavelmente sem o saberem – para levar a cabo a queda do topo da pirâmide do poder. Mas não têm nenhuma interferência na marcha dos acontecimentos que se seguem depois de os autocratas serem expulsos e provocarem o vazio no poder. Não têm nenhuma aptidão política para concretizar a transição democrática que deveria seguir-se a essa mudança maior.
Num artigo sobre as “revoluções coloridas”, escrito em 2007 pelo jornalista Hernando Calvo Ospina nas colunas do Le Monde Diplomatique, pode ler-se: “A distância entre governantes e governados facilita a tarefa da NED [2] e da sua rede de organizações, que fabricam milhares de ‘dissidentes’ graças aos dólares e à propaganda. Uma vez alcançada a mudança, a maior parte desses ‘dissidentes’ e das suas organizações de todo o género, desaparecem da circulação, sem honra nem glória”.
Assim, quando o papel atribuído aos ciberactivistas termina, são as forças políticas locais, contrárias a qualquer mudança profunda, que ocupam o vazio criado pelo desaparecimento do antigo poder. No caso da Tunísia e do Egipto, foram os movimentos islamistas que, num primeiro momento, aproveitaram a situação, evidentemente ajudados pelos seus aliados, como os Estados Unidos, certos países ocidentais e árabes e a Turquia, que devia servir de modelo.
É claro que esta “primavera” não tem nada a ver com os slogans corajosamente entoados pelos jovens ciberactivistas nas ruas árabes e o abuso da palavra democracia não passa de uma armadilha. De facto, como não colocar sérias interrogações sobre esta “primavera” quando se sabe que os únicos países que sofreram esta estação foram repúblicas? Será por mero acaso que nenhuma monarquia árabe tenha sido atingida por este tsunami “primaveril”, como se esses países fossem santuários da democracia, da liberdade e dos direitos humanos?
A única tentativa de sublevação anti-monárquica, a do Bahrein, foi violentamente sufocada pela colaboração militar do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), o silêncio cúmplice dos media dominantes e a conivência de certos políticos, sempre tão loquazes quando acontecimentos análogos tocaram certas repúblicas árabes.
Estas “primaveras” visam desestabilizar países árabes bem identificados num quadro geopolítico muito mais vasto, certamente o “Grande Médio Oriente”. Esta doutrina preconiza a reformulação das fronteiras de uma região geográfica reagrupando os países árabes e certos países da vizinhança, pondo assim fim às fronteiras herdadas dos acordos Sykes-Picot. Embora lançado sob a liderança do presidente G. W. Bush e dos seus falcões neoconservadores, este projecto inspira-se numa ideia teorizada em 1982 por Oded Yinon, um alto funcionário do ministério dos Negócios Estrangeiros israelita. O “Plano Yinon”, como é originalmente chamado, tinha o objectivo de “desfazer todos os estados árabes existentes e reorganizar o conjunto da região em pequenas entidades frágeis, maleáveis e incapazes de enfrentar os israelitas”.
E essa divisão está infelizmente em curso…
– Neste quadro, ainda assim a Tunísia é uma excepção. Como explica isso?
– Comparativamente com a Líbia, a Síria ou o Iémen, a situação na Tunísia pode parecer interessante. Mas de facto a Tunísia não representa um modelo conseguido como nos querem fazer crer os media dominantes. E não é o Prémio Nobel da Paz recentemente outorgado à Tunísia que muda o que quer que seja. Quando se vê a quem foi atribuído nestes últimos anos, pergunta-se para que serve este prémio. E os tunisinos, que vivem há cinco anos a “primaverização” do seu país, conhecem bem este assunto. Comentando este quinto aniversário, alguns bloggers não estiveram com meias medidas. “Único país democrático do Magrebe+Prémio Nobel, tudo o resto é pior do que o período ZABA (Zine el-Abidine Ben Ali)”. Ou então, com uma ponta de humor: “Injustiça social, tortura, impunidade, estamos nas tintas, temos o Prémio Nobel”.
Numa recente entrevista ao Figaro, um meu amigo tunisino, o filósofo Mezri Haddad, declarou: “Em toda a parte – incluindo na Tunísia, que se apresenta como o paradigma revolucionário bom, e o país a que se atribuiu o Prémio Nobel da Paz em vez de perdoar a dívida externa que se tornou vertiginosa em menos de cinco anos e apoiar a sua economia hoje agonizante – a ‘Primavera árabe’ destruiu mais do que construiu”. Antes de acrescentar: “Depois de 2011, a Tunísia tornou-se o primeiro país exportador de mão-de-obra islâmica-terrorista tanto para a Líbia como para a Síria. Os relatórios das Nações Unidas são esmagadores para o tunisino que sou. O autor do último atentado suicida em Zliten, na Líbia, é um tunisino, como o que atacou a mesquita de Valência ou o que acaba de ser abatido diante do comissariado de polícia do 18.º distrito de Paris”.
Com efeito, a Tunísia ainda é, de longe, o maior fornecedor de jihadistas do Estado Islâmico na Síria. Triste recorde para um país que quer passar pela excepção que justifica a terminologia primaveril. E tudo isso sem contar os assassínios políticos, os atentados terroristas cegos que enlutaram o país e as sórdidas histórias de “jihad al-nikah”, popularizada pelos jovens tunisinos radicalizados.
E também não será a mudança da família do Goncourt para o Museu do Bardo, ainda marcado pelos estigmas do atentado de 18 de Março de 2015, que dará à Tunísia o rótulo de um país que conseguiu a sua transição democrática. Este “empurrão” francês não apagará de maneira nenhuma o lapso da ministra francesa Michèle Alliot-Marie que ofereceu o saber-fazer francês à polícia de Ben Ali para “resolver situações securitárias” e pôr fim à impertinência dos manifestantes que tinham invadido a Avenida Bourguiba.
Estes manifestantes que arvoravam a sua juventude como bandeira de um futuro radioso, o que pensam da idade dos “dinossauros políticos” actuais depois de terem afastado o presidente Ben Ali? Vejam só: Moncef Marzouki (71 anos), Rached Ghannouchi (75 anos) e, sobretudo, o presidente actual, Béji Caid Essebsi (90 anos).
Podem aqueles manifestantes acreditar realmente que uma revolta fundamentalmente jovem, qualificada de “facebookiana”, possa ser representada por gerontocratas, velhos caciques de regimes odiados, islamistas belicosos ou pelos que confundem o interesse do país com o interesse supranacional, da sua confraria?
Pensavam eles que um dia uma lei eleitoral seria aprovada para reabilitar os antigos apoiantes de Ben Ali, contra quem combateram com determinação?
Teriam eles imaginado que, cinco anos depois da partida de Ben Ali, um jovem diplomado tunisino, Ridha Yahyaoui, se mataria em Kasserine para protestar contra o favoritismo na admissão para um emprego, flagelo que eles tinham denunciado e contra o qual se tinham batido? E que os distúrbios que se seguiram a este drama seriam tão duramente reprimidos?
O que houve de tão positivo nesta “Primavera” tunisina se, cinco anos passados, Yahyaoui pelas mesmas razões imita Bouazizi?
– Na sua opinião que diferenças há nas realidades actuais de países como a Síria ou a Líbia, se tivermos em conta que este último país tanto diz à Tunísia, dada a sua proximidade?
– A guerra civil que devasta actualmente a Síria tem curiosas similitudes com a que prevaleceu na Líbia: a) o epicentro inicial da revolta síria não se encontrava na capital mas numa região fronteiriça (contrariamente ao que aconteceu na Tunísia e no Egipto); b) uma “nova antiga” bandeira apareceu com estandarte dos insurrectos; c) a fase não-violenta da revolta foi muito curta; d) a implicação militar estrangeira (directa ou indirecta) rapidamente transformou os tumultos não-violentos numa sangrenta guerra civil. Com efeito, quando a teoria de Gene Sharp [3] não funciona e os ensinamentos da CANVAS não dão frutos, como nos casos da Líbia e da Síria, as manifestações transformam-se muito rapidamente numa guerra civil. Esta metamorfose ocorre graças a uma ostensiva ingerência estrangeira dos países antes referidos, através da NATO no caso da Líbia, ou de coligações heteróclitas como sucedeu na Síria).
Assim, ajudados pelos seus aliados árabes e regionais, os países ocidentais podem passar, sem quaisquer problemas de consciência, duma abordagem não-violenta à Gene Sharp a uma guerra mortífera e sangrenta onde correm rios de sangue árabe.
A efémera fase sharpiana de manifestações populares foi mesmo utilizada para justificar a intervenção militar da NATO na Líbia ou da coligação anti-Bachar na Síria. A resolução 1973 da ONU que permitiu a destruição da Líbia foi justificada pela falsa acusação que as forças leais a Kadhafi tinham feito entre a população civil, pelo menos 6.000 mortos. Na verdade, numerosos países entenderam que os Estados Unidos, a França, a Grã-Bretanha e seus aliados deturparam e abusaram desta resolução permitindo à NATO violar o mandato do Conselho de Segurança. Tendo em conta «a lição da Resolução 1973» países como a Rússia e a China opõem-se hoje a uma resolução das Nações Unidas de condenação da Síria ou do seu presidente, Bachar al-Assad. Se não fosse isso, os media de dominantes de todo o mundo ter-nos-iam mostrado imagens do presidente Bachar com o coração ou a cabeça arrancados pelos especialistas jihadistas no assunto que pululam na Síria graças à activa colaboração dos ocidentais e dos seus aliados.
Acrescente-se que o estudo dos e-mails da senhora Hillary Clinton mostrou que as motivações para eliminar Kadhafi nada tinham a ver com qualquer democratização da Líbia, mas sim com interesses estratégicos, económicos, políticos, e do ouro de um tesouro famoso. O mesmo se pode dizer em relação ao presidente sírio.
É também interessante notar que investigações muito sérias realizadas por especialistas americanos mostraram que a guerra na Líbia não era necessária, que ela podia ter sido evitada se essa fosse a vontade dos Estados Unidos. Mostraram também que a administração americana possibilitou o fornecimento de armas e apoio militar a grupos ligados à Al-Qaida.
Por outro lado, o contra-almirante americano Charles R. Kubic, na reforma, revelou que Kadhafi estava disposto a abandonar a Líbia e permitir o estabelecimento de um governo de transição, sob duas condições: assegurar que após a sua saída permanecesse uma força militar para expulsar a Al-Qaida; e a concessão de um livre-trânsito e o levantamento das sanções contra ele, a sua família e os seus colaboradores mais próximos.
Por seu turno, o antigo presidente da Finlândia (1994-2000) e Prémio Nobel da Paz (2008), Martti Ahtisaari, disse ter sido mandatado pela administração russa, no começo do ano de 2012, para encontrar uma solução pacífica para o conflito sírio.
O plano da resolução do conflito sírio proposto aos representantes dos cinco países membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas compreendia três pontos:
1) não armar a oposição;
2) organizar o diálogo entre a oposição e Bachar al-Assad;
3) permitir uma retirada digna de Bachar al-Assad.
Segundo Marti Ahtisaari, nada foi feito após a apresentação desta proposta aos representantes americano, britânico e francês.
Parece claro que o objectivo desta “Primavera” não tem nada a ver com a democracia e os direitos humanos na Líbia e na Síria ou Médio Oriente e Norte de África, mas sim com a eliminação física dos presidentes Kadhafi e Bachar al-Assad, que permite destruir estes dois países, liquidar milhares de árabes, e financiar jihadistas comedores de corações e degoladores.
Nos casos líbio e sírio, o que chamam “primaveras” são exemplos pedagógicos de guerras civis fomentadas a partir do estrangeiro sob a capa de direitos humanos e humanismo.
Actualmente, estes dois países são terras de instabilidade geopolítica, covis de jihadistas daechianos abertamente financiados por países ocidentais, países árabes e potências regionais [3].
No quadro desta forte turbulência política e de agressiva ingerência estrangeira, a Argélia foi e continua a ser um dos principais alvos. Lembremos que jovens argelinos também participaram em formações de sérvios da CANVAS e que numerosos países apostaram na “primaverização” (violenta ou não) da Argélia. As más recordações do decénio negro e a efemeridade da CNCD (Coordenação Nacional para a Mudança e a Democracia) forçaram uma decisão diferente.
Hoje, a situação líbia é evidentemente muito preocupante para a segurança e estabilidade da Argélia. Alguns observadores calculam que haja 300 grupos de milícias armadas na Líbia e notam que elas estão fortemente ligadas às suas congéneres tunisinas. De facto, segundo um relatório da Comissão de Negócios Estrangeiros da Assembleia Nacional Francesa, datado de Novembro de 2015, “o conjunto de atentados recentes na Tunísia foram organizados e planificados a partir da Líbia”.
Contrariamente às declarações belicosas e mal-intencionadas de Nicolas Sarkozy – um dos maiores responsáveis pela destruição da Líbia –, deveria ser a Argélia a lamentar-se da sua localização geográfica fronteiriça com a Tunísia e a Líbia. Isso é tanto mais verdade quanto é certo que a colaboração entre o Daech na Líbia e os movimentos terroristas do Sahel é cada vez mais evidente, o que dá ainda mais razões à Argélia para tornar seguro o sul do país.
Vê-se bemque mesmo que a Argélia não tenha sido tocada directamente por esta lúgubre estação, a “primaverização” a que foram sujeitos os seus vizinhos coloca-lhe enormes desafios.
– No seu livro Arabesque$, de que acaba de aparecer uma nova edição revista e enriquecida, a tese que defende é a de uma grande implicação e de uma grande responsabilidade dos Estados Unidos nas “primaveras árabes”, um envolvimento norte-americano que classifica, nada mais, nada menos, como operações de desestabilização de Estados e de regimes instalados no mundo árabe. Até que ponto continua a defender esta análise?
– Quando a primeira versão do meu livro intitulado Arabesco americano, foi publicada, em Abril de 2011, ela foi acolhida com muito cepticismo porque a tese que ali era desenvolvida opunha-se à euforia “primaveril” dominante e introduzia uma nota discordante no unanimismo inebriante. Esta benevolência face a uma “revolução” árabe imaculada, orquestrada por uma bela juventude instruída e impetuosa, não devia em nenhuma circunstância ser manchada por acusações que, de toda a maneira, não podiam ser senão caluniosas. Este discurso foi repetido pelos media dominantes e por numerosos especialistas “catódicos”, dos quais subsistem ainda alguns espécimes recalcitrantes.
É preciso reconhecer que opor-se ao romantismo revolucionário no seu auge, algumas semanas apenas depois da queda de Ben Ali e de Moubarak, relevava certamente de uma inconsciência temerária.
Contudo, a tese apresentada neste livro – que inclui mais de 260 referências facilmente comprováveis – foi meticulosamente elaborada graças à análise de numerosos livros, documentos oficiais, relatórios de actividades, telegramas Wikileaks, etc..
É claro que não foram os Estados Unidos que provocaram a “Primavera” árabe. Como foi explicado antes, a situação política e sócio-económica dos países árabes é um terreno fértil para a dissidência e a revolta. Contudo, a implicação americana no processo não é inócua, longe disso. Confirmam-no o papel primordial dos organismos especializados na “exportação” da democracia e maioritariamente subvencionados pelo governo americano, as formações teóricas e práticas sobre a resistência não-violenta dadas pela CANVAS, a constituição de uma “liga árabe da Net” dominando as novas tecnologias, a elaboração de ferramentas de navegação anónima distribuídas gratuitamente aos ciberactivistas, a estreita colaboração entre os ciberdissidentes e as embaixadas norte-americanas nos países árabes, as enormes somas investidas, o envolvimento militar e as manobras diplomáticas a alto nível. E como a política externa dos Estados Unidos nunca foi um modelo de filantropia, é preciso reconhecer a evidência de que os americanos influenciaram fortemente o curso dos acontecimentos. Não se pode esquecer que todas estas acções foram empreendidas durante anos, antes do começo da “Primavera” árabe.
À medida que o tempo avançava, a natureza pérfida destas “revoluções” foi revelada, as línguas soltaram-se e novos documentos apareceram. Nada do a partir de então apareceu desmente a minha tese, pelo contrário ela foi amplamente confirmada. Foi isso que justificou a redacção de uma nova versão do livro, intitulada Arabesco$ – Inquérito sobre o papel dos Estados Unidos nas revoltas árabes, editada em Setembro de 2015. Em comparação com a obra anterior, o novo livro inclui mais de 600 documentos e o número de páginas quase triplicou. Entre outros documentos explícitos, citemos, por exemplo, o estudo realizado em 2008 pela corporação RAND (gabinete de estudos do Exército dos Estados Unidos), que serviu de fundamento à política americana de “exportação” da democracia para os países árabes, baseada na formação, apoio e organização em rede de activistas provenientes desses países.
Um outro documento merece também ser mencionado. Trata-se de um relatório saído do Departamento de Estado americano, redigido em 2010 e obtido em 2014 graças à lei para a liberdade de informação.
Esse relatório explica claramente “a estrutura elaborada de programas do Departamento de Estado visando criar organizações da ‘sociedade civil’, em particular as organizações não-governamentais (ONG), para modificar a política interna dos países seleccionados a favor da política estrangeira dos Estados Unidos e dos seus objectivos de segurança nacional”. Utilizando uma linguagem diplomática, o documento precisa que o objectivo é “a promoção e a monitorização de mudanças políticas nos países alvos”.
A implicação dos Estados Unidos na “Primavera” árabe não é uma especulação intelectual. A sua existência é abertamente reconhecida pela própria administração americana. É o que explico pormenorizadamente no livro Arabesco$.
– Partilha a ideia de que as “primaveras árabes” acabaram? Que cenários possíveis prevê, sobretudo para a Líbia, país em que os actores não conseguem entender-se sobre uma solução política promovida por uma já prevista intervenção militar europeia?
– Que se diga: a “Primavera” árabe nunca foi uma Primavera, se tivermos em conta as consequências desastrosas para as populações, nem intrinsecamente árabe, porque os movimentos de contestação foram infiltrados decisivamente por organismos estrangeiros, nomeadamente estadounidenses.
O processo de “primaverização” do mundo árabe chega ao fim? Certamente.
Os povos árabes não são cegos. Os exemplos da selvagem destruição da Líbia, da Síria e do Iémen são suficientes para convencer mesmo os mais renitentes.
O mundo árabe tem imperativamente necessidade de fazer enormes transformações em diferentes domínios da sociedade; político, sócio-económico, cultural, de liberdade de expressão, dos direitos humanos, etc.. Mas para realizar estas mudanças é preciso destrui os países e fomentar o ressurgimento de práticas medievais, de semear a morte, o ódio e a desolação? É evidente que não.
Por outro lado, estas mudanças de forma alguma devem obedecer ou beneficiar agendas estrangeiras; os países árabes não devem agir de modo que as suas terras se tornem o campo de jogo das potências, no qual se travem guerras “low cost”, onde só sangue é derramado.
É o caso da Síria, na medida em que este país é actualmente o cenário de confrontos (directos e indirectos) de numerosos beligerantes, cada um tendo as suas próprias agendas e ambições, distantes das dos sírios.
No que diz respeito à Líbia, qualquer nova intervenção militar ocidental neste país corre o risco de provocar consequências indesejáveis no território argelino. É por esta razão que a Argélia se opõe firmemente a tal eventualidade e não exclui nenhum esforço para encontrar uma solução política para o conflito e fazer sentar-se à volta da mesma mesa as diferentes facções.
Apenas permitindo aos cidadãos de um país discutir em conjunto, de boa-fé, tendo em conta os seus interesses nacionais e não os de outros países, o mundo árabe conseguirá sair da situação de decadência para onde foi empurrado.
Notas do tradutor:
[1] Movimentos ocorridos a partir de 2000 em alguns países saídos do desmembramento da União Soviética e que em geral substituíram os regimes pró-russos por governos pró-ocidentais. Como por exemplo a “Revolução Rosa”, na Geórgia (2003), a “Revolução Laranja”, na Ucrânia (2004) ou a “Revolução das Tulipas”, no Quirguistão (2005). Esses e outros golpes de estado, mais contra-revoluções do que revoluções, quer tenham tido êxito ou não, foram apoiados pelos Estados Unidos e seus aliados locais.
[2] NED – National Endowment for Democracy, organização privada norte-americana, criada em 1983 (entre outros, pelo presidente Ronald Reagan), com o apoio financeiro do Congresso dos EUA e de agências governamentais como a USAID, com o objectivo de “fortalecer as instituições democráticas em todo o mundo”. A NED é suspeita de ser um instrumento da CIA, não de promoção mas de subversão da democracia, e para tal financia organizações não-governamentais (ONG) e grupos “pró-democracia” em mais de 90 países.
[3] Sharp, importa recordar, é um académico norte-americano, acusado de estar ligado à CIA, autor de um muito difundido livro (Da ditadura à democracia) sobre as técnicas e os meios “pacíficos” de se chegar à “democracia”, um autêntico manual de golpes de estado suaves, cujas recomendações foram seguidas, com êxito, em várias “revoluções coloridas”, e com menos sucesso noutros casos, como, recentemente, em Hong Kong ou em Angola…
[4] Quando insiste nas “potências regionais”, o autor refere-se provavelmente a Israel, que ocupa território sírio desde 1967 e é o grande aliado dos Estados Unidos no Médio Oriente, e ao Irão, país que, não sendo árabe, é de maioria muçulmana xiita e que apoia política e militarmente o regime sírio.
* Nordine Azzouz é director do diário argelino Reporters
** odiario.info publicou já um texto de Ahmed Bensaada em:
http://www.odiario.info/index.php?autman=Ahmed+Bensaada
Este texto foi publicado em:
http://www.afrique-asie.fr/component/content/article/75-a-la-une/9837-ahmed-bensaada-les-printemps-n-ont-genere-que-le-chaos-la-mort-la-haine-l-exil-et-la-desolation-dans-plusieurs-pays-arabes
– Cinco anos são passados desde as chamadas “primaveras árabes”. O balanço é não muito satisfatório, em muitos dos países envolvidos é mesmo catastrófico. Porquê, em sua opinião?
– “Não muito satisfatório”, diz? Estas perturbações maiores que o pensamento ocidental precipitada e falaciosamente baptizou como “primaveras” não geraram senão o caos, a morte, a raiva, o exílio e a desolação em vários países árabes. Seria necessário talvez perguntar aos cidadãos dos países árabes “primaverados” se a situação desastrosa em que eles hoje vivem pode ser qualificada de primaveril.
Os dados são eloquentes. Um estudo recente mostrou que esta funesta estação causou, em cinco anos, mais de 1 milhão e 400 mil vítimas (mortos e feridos), às quais é preciso ajuntar mais de 14 milhões de refugiados. Esta “primavera” custou aos países árabes mais de 833 mil milhões de dólares, dos quais 461 mil milhões em infra-estruturas destruídas e em locais históricos devastados. Por outro lado, a região MENA (Middle East and North Africa) perdeu mais de 103 milhões de turistas, uma verdadeira calamidade para a sua economia.
Na primeira versão do meu livro, “Arabesco americano” (Abril de 2011), pus em evidência a ingerência estrangeira nestas revoltas que tocaram a rua árabe, assim como a falta de espontaneidade desses movimentos. Antes destes acontecimentos os países árabes estavam num estado efectiva de decrepitude: ausência de alternativa política, desemprego elevado, democracia embrionária, uma vida má, direitos fundamentais não respeitados, falta de liberdade de expressão, corrupção a todos os níveis, nepotismo, fuga de cérebros, etc.. Tudo “terreno fértil” para a desestabilização. Mas embora as reivindicações da rua árabe sejam reais, as pesquisas realizadas mostraram que os jovens manifestantes e ciberactivistas árabes eram formados e financiados por organismos americanos especializados na “exportação” da democracia, tais como a USAID, a NED, a Freedom House ou a Open Society do multimilionário George Soros. E tudo isso antes da imolação pelo fogo de Mohamed Bouazizi.
Esses manifestantes, que paralisaram as cidades árabes e que expulsaram os velhos autocratas árabes instalados no poder há decénios, representavam uma juventude cheia de arrebatamento e de promessas.
Uma juventude instruída, manejando com brio as técnicas da resistência não-violenta e com slogans incisivos. Essas mesmas técnicas que foram teorizadas pelo filósofo americano Gene Sharp e postas em prática pelos activistas sérvios do Otpor nas revoluções coloridas do Leste da Europa. Técnicas ensinadas aos jovens manifestantes árabes pelos fundadores do Otpor, no seu centro CANVAS (Center for Applied Non Violent Action and Strategies), especialmente concebido para formação de dissidentes.
Uma juventude viciada em novas tecnologias, cujos líderes foram seleccionados, formados, organizados em rede, e apoiados pelos gigantes americanos da Net por intermédio de organismos americanos como a AYM (Alliance of Youth Movements).
Mas, tal como os activistas das “revoluções coloridas” [1], os ciberdissidentes árabes foram treinados apenas para decapitar os regimes. Eles são “comandados” – provavelmente sem o saberem – para levar a cabo a queda do topo da pirâmide do poder. Mas não têm nenhuma interferência na marcha dos acontecimentos que se seguem depois de os autocratas serem expulsos e provocarem o vazio no poder. Não têm nenhuma aptidão política para concretizar a transição democrática que deveria seguir-se a essa mudança maior.
Num artigo sobre as “revoluções coloridas”, escrito em 2007 pelo jornalista Hernando Calvo Ospina nas colunas do Le Monde Diplomatique, pode ler-se: “A distância entre governantes e governados facilita a tarefa da NED [2] e da sua rede de organizações, que fabricam milhares de ‘dissidentes’ graças aos dólares e à propaganda. Uma vez alcançada a mudança, a maior parte desses ‘dissidentes’ e das suas organizações de todo o género, desaparecem da circulação, sem honra nem glória”.
Assim, quando o papel atribuído aos ciberactivistas termina, são as forças políticas locais, contrárias a qualquer mudança profunda, que ocupam o vazio criado pelo desaparecimento do antigo poder. No caso da Tunísia e do Egipto, foram os movimentos islamistas que, num primeiro momento, aproveitaram a situação, evidentemente ajudados pelos seus aliados, como os Estados Unidos, certos países ocidentais e árabes e a Turquia, que devia servir de modelo.
É claro que esta “primavera” não tem nada a ver com os slogans corajosamente entoados pelos jovens ciberactivistas nas ruas árabes e o abuso da palavra democracia não passa de uma armadilha. De facto, como não colocar sérias interrogações sobre esta “primavera” quando se sabe que os únicos países que sofreram esta estação foram repúblicas? Será por mero acaso que nenhuma monarquia árabe tenha sido atingida por este tsunami “primaveril”, como se esses países fossem santuários da democracia, da liberdade e dos direitos humanos?
A única tentativa de sublevação anti-monárquica, a do Bahrein, foi violentamente sufocada pela colaboração militar do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), o silêncio cúmplice dos media dominantes e a conivência de certos políticos, sempre tão loquazes quando acontecimentos análogos tocaram certas repúblicas árabes.
Estas “primaveras” visam desestabilizar países árabes bem identificados num quadro geopolítico muito mais vasto, certamente o “Grande Médio Oriente”. Esta doutrina preconiza a reformulação das fronteiras de uma região geográfica reagrupando os países árabes e certos países da vizinhança, pondo assim fim às fronteiras herdadas dos acordos Sykes-Picot. Embora lançado sob a liderança do presidente G. W. Bush e dos seus falcões neoconservadores, este projecto inspira-se numa ideia teorizada em 1982 por Oded Yinon, um alto funcionário do ministério dos Negócios Estrangeiros israelita. O “Plano Yinon”, como é originalmente chamado, tinha o objectivo de “desfazer todos os estados árabes existentes e reorganizar o conjunto da região em pequenas entidades frágeis, maleáveis e incapazes de enfrentar os israelitas”.
E essa divisão está infelizmente em curso…
– Neste quadro, ainda assim a Tunísia é uma excepção. Como explica isso?
– Comparativamente com a Líbia, a Síria ou o Iémen, a situação na Tunísia pode parecer interessante. Mas de facto a Tunísia não representa um modelo conseguido como nos querem fazer crer os media dominantes. E não é o Prémio Nobel da Paz recentemente outorgado à Tunísia que muda o que quer que seja. Quando se vê a quem foi atribuído nestes últimos anos, pergunta-se para que serve este prémio. E os tunisinos, que vivem há cinco anos a “primaverização” do seu país, conhecem bem este assunto. Comentando este quinto aniversário, alguns bloggers não estiveram com meias medidas. “Único país democrático do Magrebe+Prémio Nobel, tudo o resto é pior do que o período ZABA (Zine el-Abidine Ben Ali)”. Ou então, com uma ponta de humor: “Injustiça social, tortura, impunidade, estamos nas tintas, temos o Prémio Nobel”.
Numa recente entrevista ao Figaro, um meu amigo tunisino, o filósofo Mezri Haddad, declarou: “Em toda a parte – incluindo na Tunísia, que se apresenta como o paradigma revolucionário bom, e o país a que se atribuiu o Prémio Nobel da Paz em vez de perdoar a dívida externa que se tornou vertiginosa em menos de cinco anos e apoiar a sua economia hoje agonizante – a ‘Primavera árabe’ destruiu mais do que construiu”. Antes de acrescentar: “Depois de 2011, a Tunísia tornou-se o primeiro país exportador de mão-de-obra islâmica-terrorista tanto para a Líbia como para a Síria. Os relatórios das Nações Unidas são esmagadores para o tunisino que sou. O autor do último atentado suicida em Zliten, na Líbia, é um tunisino, como o que atacou a mesquita de Valência ou o que acaba de ser abatido diante do comissariado de polícia do 18.º distrito de Paris”.
Com efeito, a Tunísia ainda é, de longe, o maior fornecedor de jihadistas do Estado Islâmico na Síria. Triste recorde para um país que quer passar pela excepção que justifica a terminologia primaveril. E tudo isso sem contar os assassínios políticos, os atentados terroristas cegos que enlutaram o país e as sórdidas histórias de “jihad al-nikah”, popularizada pelos jovens tunisinos radicalizados.
E também não será a mudança da família do Goncourt para o Museu do Bardo, ainda marcado pelos estigmas do atentado de 18 de Março de 2015, que dará à Tunísia o rótulo de um país que conseguiu a sua transição democrática. Este “empurrão” francês não apagará de maneira nenhuma o lapso da ministra francesa Michèle Alliot-Marie que ofereceu o saber-fazer francês à polícia de Ben Ali para “resolver situações securitárias” e pôr fim à impertinência dos manifestantes que tinham invadido a Avenida Bourguiba.
Estes manifestantes que arvoravam a sua juventude como bandeira de um futuro radioso, o que pensam da idade dos “dinossauros políticos” actuais depois de terem afastado o presidente Ben Ali? Vejam só: Moncef Marzouki (71 anos), Rached Ghannouchi (75 anos) e, sobretudo, o presidente actual, Béji Caid Essebsi (90 anos).
Podem aqueles manifestantes acreditar realmente que uma revolta fundamentalmente jovem, qualificada de “facebookiana”, possa ser representada por gerontocratas, velhos caciques de regimes odiados, islamistas belicosos ou pelos que confundem o interesse do país com o interesse supranacional, da sua confraria?
Pensavam eles que um dia uma lei eleitoral seria aprovada para reabilitar os antigos apoiantes de Ben Ali, contra quem combateram com determinação?
Teriam eles imaginado que, cinco anos depois da partida de Ben Ali, um jovem diplomado tunisino, Ridha Yahyaoui, se mataria em Kasserine para protestar contra o favoritismo na admissão para um emprego, flagelo que eles tinham denunciado e contra o qual se tinham batido? E que os distúrbios que se seguiram a este drama seriam tão duramente reprimidos?
O que houve de tão positivo nesta “Primavera” tunisina se, cinco anos passados, Yahyaoui pelas mesmas razões imita Bouazizi?
– Na sua opinião que diferenças há nas realidades actuais de países como a Síria ou a Líbia, se tivermos em conta que este último país tanto diz à Tunísia, dada a sua proximidade?
– A guerra civil que devasta actualmente a Síria tem curiosas similitudes com a que prevaleceu na Líbia: a) o epicentro inicial da revolta síria não se encontrava na capital mas numa região fronteiriça (contrariamente ao que aconteceu na Tunísia e no Egipto); b) uma “nova antiga” bandeira apareceu com estandarte dos insurrectos; c) a fase não-violenta da revolta foi muito curta; d) a implicação militar estrangeira (directa ou indirecta) rapidamente transformou os tumultos não-violentos numa sangrenta guerra civil. Com efeito, quando a teoria de Gene Sharp [3] não funciona e os ensinamentos da CANVAS não dão frutos, como nos casos da Líbia e da Síria, as manifestações transformam-se muito rapidamente numa guerra civil. Esta metamorfose ocorre graças a uma ostensiva ingerência estrangeira dos países antes referidos, através da NATO no caso da Líbia, ou de coligações heteróclitas como sucedeu na Síria).
Assim, ajudados pelos seus aliados árabes e regionais, os países ocidentais podem passar, sem quaisquer problemas de consciência, duma abordagem não-violenta à Gene Sharp a uma guerra mortífera e sangrenta onde correm rios de sangue árabe.
A efémera fase sharpiana de manifestações populares foi mesmo utilizada para justificar a intervenção militar da NATO na Líbia ou da coligação anti-Bachar na Síria. A resolução 1973 da ONU que permitiu a destruição da Líbia foi justificada pela falsa acusação que as forças leais a Kadhafi tinham feito entre a população civil, pelo menos 6.000 mortos. Na verdade, numerosos países entenderam que os Estados Unidos, a França, a Grã-Bretanha e seus aliados deturparam e abusaram desta resolução permitindo à NATO violar o mandato do Conselho de Segurança. Tendo em conta «a lição da Resolução 1973» países como a Rússia e a China opõem-se hoje a uma resolução das Nações Unidas de condenação da Síria ou do seu presidente, Bachar al-Assad. Se não fosse isso, os media de dominantes de todo o mundo ter-nos-iam mostrado imagens do presidente Bachar com o coração ou a cabeça arrancados pelos especialistas jihadistas no assunto que pululam na Síria graças à activa colaboração dos ocidentais e dos seus aliados.
Acrescente-se que o estudo dos e-mails da senhora Hillary Clinton mostrou que as motivações para eliminar Kadhafi nada tinham a ver com qualquer democratização da Líbia, mas sim com interesses estratégicos, económicos, políticos, e do ouro de um tesouro famoso. O mesmo se pode dizer em relação ao presidente sírio.
É também interessante notar que investigações muito sérias realizadas por especialistas americanos mostraram que a guerra na Líbia não era necessária, que ela podia ter sido evitada se essa fosse a vontade dos Estados Unidos. Mostraram também que a administração americana possibilitou o fornecimento de armas e apoio militar a grupos ligados à Al-Qaida.
Por outro lado, o contra-almirante americano Charles R. Kubic, na reforma, revelou que Kadhafi estava disposto a abandonar a Líbia e permitir o estabelecimento de um governo de transição, sob duas condições: assegurar que após a sua saída permanecesse uma força militar para expulsar a Al-Qaida; e a concessão de um livre-trânsito e o levantamento das sanções contra ele, a sua família e os seus colaboradores mais próximos.
Por seu turno, o antigo presidente da Finlândia (1994-2000) e Prémio Nobel da Paz (2008), Martti Ahtisaari, disse ter sido mandatado pela administração russa, no começo do ano de 2012, para encontrar uma solução pacífica para o conflito sírio.
O plano da resolução do conflito sírio proposto aos representantes dos cinco países membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas compreendia três pontos:
1) não armar a oposição;
2) organizar o diálogo entre a oposição e Bachar al-Assad;
3) permitir uma retirada digna de Bachar al-Assad.
Segundo Marti Ahtisaari, nada foi feito após a apresentação desta proposta aos representantes americano, britânico e francês.
Parece claro que o objectivo desta “Primavera” não tem nada a ver com a democracia e os direitos humanos na Líbia e na Síria ou Médio Oriente e Norte de África, mas sim com a eliminação física dos presidentes Kadhafi e Bachar al-Assad, que permite destruir estes dois países, liquidar milhares de árabes, e financiar jihadistas comedores de corações e degoladores.
Nos casos líbio e sírio, o que chamam “primaveras” são exemplos pedagógicos de guerras civis fomentadas a partir do estrangeiro sob a capa de direitos humanos e humanismo.
Actualmente, estes dois países são terras de instabilidade geopolítica, covis de jihadistas daechianos abertamente financiados por países ocidentais, países árabes e potências regionais [3].
No quadro desta forte turbulência política e de agressiva ingerência estrangeira, a Argélia foi e continua a ser um dos principais alvos. Lembremos que jovens argelinos também participaram em formações de sérvios da CANVAS e que numerosos países apostaram na “primaverização” (violenta ou não) da Argélia. As más recordações do decénio negro e a efemeridade da CNCD (Coordenação Nacional para a Mudança e a Democracia) forçaram uma decisão diferente.
Hoje, a situação líbia é evidentemente muito preocupante para a segurança e estabilidade da Argélia. Alguns observadores calculam que haja 300 grupos de milícias armadas na Líbia e notam que elas estão fortemente ligadas às suas congéneres tunisinas. De facto, segundo um relatório da Comissão de Negócios Estrangeiros da Assembleia Nacional Francesa, datado de Novembro de 2015, “o conjunto de atentados recentes na Tunísia foram organizados e planificados a partir da Líbia”.
Contrariamente às declarações belicosas e mal-intencionadas de Nicolas Sarkozy – um dos maiores responsáveis pela destruição da Líbia –, deveria ser a Argélia a lamentar-se da sua localização geográfica fronteiriça com a Tunísia e a Líbia. Isso é tanto mais verdade quanto é certo que a colaboração entre o Daech na Líbia e os movimentos terroristas do Sahel é cada vez mais evidente, o que dá ainda mais razões à Argélia para tornar seguro o sul do país.
Vê-se bemque mesmo que a Argélia não tenha sido tocada directamente por esta lúgubre estação, a “primaverização” a que foram sujeitos os seus vizinhos coloca-lhe enormes desafios.
– No seu livro Arabesque$, de que acaba de aparecer uma nova edição revista e enriquecida, a tese que defende é a de uma grande implicação e de uma grande responsabilidade dos Estados Unidos nas “primaveras árabes”, um envolvimento norte-americano que classifica, nada mais, nada menos, como operações de desestabilização de Estados e de regimes instalados no mundo árabe. Até que ponto continua a defender esta análise?
– Quando a primeira versão do meu livro intitulado Arabesco americano, foi publicada, em Abril de 2011, ela foi acolhida com muito cepticismo porque a tese que ali era desenvolvida opunha-se à euforia “primaveril” dominante e introduzia uma nota discordante no unanimismo inebriante. Esta benevolência face a uma “revolução” árabe imaculada, orquestrada por uma bela juventude instruída e impetuosa, não devia em nenhuma circunstância ser manchada por acusações que, de toda a maneira, não podiam ser senão caluniosas. Este discurso foi repetido pelos media dominantes e por numerosos especialistas “catódicos”, dos quais subsistem ainda alguns espécimes recalcitrantes.
É preciso reconhecer que opor-se ao romantismo revolucionário no seu auge, algumas semanas apenas depois da queda de Ben Ali e de Moubarak, relevava certamente de uma inconsciência temerária.
Contudo, a tese apresentada neste livro – que inclui mais de 260 referências facilmente comprováveis – foi meticulosamente elaborada graças à análise de numerosos livros, documentos oficiais, relatórios de actividades, telegramas Wikileaks, etc..
É claro que não foram os Estados Unidos que provocaram a “Primavera” árabe. Como foi explicado antes, a situação política e sócio-económica dos países árabes é um terreno fértil para a dissidência e a revolta. Contudo, a implicação americana no processo não é inócua, longe disso. Confirmam-no o papel primordial dos organismos especializados na “exportação” da democracia e maioritariamente subvencionados pelo governo americano, as formações teóricas e práticas sobre a resistência não-violenta dadas pela CANVAS, a constituição de uma “liga árabe da Net” dominando as novas tecnologias, a elaboração de ferramentas de navegação anónima distribuídas gratuitamente aos ciberactivistas, a estreita colaboração entre os ciberdissidentes e as embaixadas norte-americanas nos países árabes, as enormes somas investidas, o envolvimento militar e as manobras diplomáticas a alto nível. E como a política externa dos Estados Unidos nunca foi um modelo de filantropia, é preciso reconhecer a evidência de que os americanos influenciaram fortemente o curso dos acontecimentos. Não se pode esquecer que todas estas acções foram empreendidas durante anos, antes do começo da “Primavera” árabe.
À medida que o tempo avançava, a natureza pérfida destas “revoluções” foi revelada, as línguas soltaram-se e novos documentos apareceram. Nada do a partir de então apareceu desmente a minha tese, pelo contrário ela foi amplamente confirmada. Foi isso que justificou a redacção de uma nova versão do livro, intitulada Arabesco$ – Inquérito sobre o papel dos Estados Unidos nas revoltas árabes, editada em Setembro de 2015. Em comparação com a obra anterior, o novo livro inclui mais de 600 documentos e o número de páginas quase triplicou. Entre outros documentos explícitos, citemos, por exemplo, o estudo realizado em 2008 pela corporação RAND (gabinete de estudos do Exército dos Estados Unidos), que serviu de fundamento à política americana de “exportação” da democracia para os países árabes, baseada na formação, apoio e organização em rede de activistas provenientes desses países.
Um outro documento merece também ser mencionado. Trata-se de um relatório saído do Departamento de Estado americano, redigido em 2010 e obtido em 2014 graças à lei para a liberdade de informação.
Esse relatório explica claramente “a estrutura elaborada de programas do Departamento de Estado visando criar organizações da ‘sociedade civil’, em particular as organizações não-governamentais (ONG), para modificar a política interna dos países seleccionados a favor da política estrangeira dos Estados Unidos e dos seus objectivos de segurança nacional”. Utilizando uma linguagem diplomática, o documento precisa que o objectivo é “a promoção e a monitorização de mudanças políticas nos países alvos”.
A implicação dos Estados Unidos na “Primavera” árabe não é uma especulação intelectual. A sua existência é abertamente reconhecida pela própria administração americana. É o que explico pormenorizadamente no livro Arabesco$.
– Partilha a ideia de que as “primaveras árabes” acabaram? Que cenários possíveis prevê, sobretudo para a Líbia, país em que os actores não conseguem entender-se sobre uma solução política promovida por uma já prevista intervenção militar europeia?
– Que se diga: a “Primavera” árabe nunca foi uma Primavera, se tivermos em conta as consequências desastrosas para as populações, nem intrinsecamente árabe, porque os movimentos de contestação foram infiltrados decisivamente por organismos estrangeiros, nomeadamente estadounidenses.
O processo de “primaverização” do mundo árabe chega ao fim? Certamente.
Os povos árabes não são cegos. Os exemplos da selvagem destruição da Líbia, da Síria e do Iémen são suficientes para convencer mesmo os mais renitentes.
O mundo árabe tem imperativamente necessidade de fazer enormes transformações em diferentes domínios da sociedade; político, sócio-económico, cultural, de liberdade de expressão, dos direitos humanos, etc.. Mas para realizar estas mudanças é preciso destrui os países e fomentar o ressurgimento de práticas medievais, de semear a morte, o ódio e a desolação? É evidente que não.
Por outro lado, estas mudanças de forma alguma devem obedecer ou beneficiar agendas estrangeiras; os países árabes não devem agir de modo que as suas terras se tornem o campo de jogo das potências, no qual se travem guerras “low cost”, onde só sangue é derramado.
É o caso da Síria, na medida em que este país é actualmente o cenário de confrontos (directos e indirectos) de numerosos beligerantes, cada um tendo as suas próprias agendas e ambições, distantes das dos sírios.
No que diz respeito à Líbia, qualquer nova intervenção militar ocidental neste país corre o risco de provocar consequências indesejáveis no território argelino. É por esta razão que a Argélia se opõe firmemente a tal eventualidade e não exclui nenhum esforço para encontrar uma solução política para o conflito e fazer sentar-se à volta da mesma mesa as diferentes facções.
Apenas permitindo aos cidadãos de um país discutir em conjunto, de boa-fé, tendo em conta os seus interesses nacionais e não os de outros países, o mundo árabe conseguirá sair da situação de decadência para onde foi empurrado.
Notas do tradutor:
[1] Movimentos ocorridos a partir de 2000 em alguns países saídos do desmembramento da União Soviética e que em geral substituíram os regimes pró-russos por governos pró-ocidentais. Como por exemplo a “Revolução Rosa”, na Geórgia (2003), a “Revolução Laranja”, na Ucrânia (2004) ou a “Revolução das Tulipas”, no Quirguistão (2005). Esses e outros golpes de estado, mais contra-revoluções do que revoluções, quer tenham tido êxito ou não, foram apoiados pelos Estados Unidos e seus aliados locais.
[2] NED – National Endowment for Democracy, organização privada norte-americana, criada em 1983 (entre outros, pelo presidente Ronald Reagan), com o apoio financeiro do Congresso dos EUA e de agências governamentais como a USAID, com o objectivo de “fortalecer as instituições democráticas em todo o mundo”. A NED é suspeita de ser um instrumento da CIA, não de promoção mas de subversão da democracia, e para tal financia organizações não-governamentais (ONG) e grupos “pró-democracia” em mais de 90 países.
[3] Sharp, importa recordar, é um académico norte-americano, acusado de estar ligado à CIA, autor de um muito difundido livro (Da ditadura à democracia) sobre as técnicas e os meios “pacíficos” de se chegar à “democracia”, um autêntico manual de golpes de estado suaves, cujas recomendações foram seguidas, com êxito, em várias “revoluções coloridas”, e com menos sucesso noutros casos, como, recentemente, em Hong Kong ou em Angola…
[4] Quando insiste nas “potências regionais”, o autor refere-se provavelmente a Israel, que ocupa território sírio desde 1967 e é o grande aliado dos Estados Unidos no Médio Oriente, e ao Irão, país que, não sendo árabe, é de maioria muçulmana xiita e que apoia política e militarmente o regime sírio.
* Nordine Azzouz é director do diário argelino Reporters
** odiario.info publicou já um texto de Ahmed Bensaada em:
http://www.odiario.info/index.php?autman=Ahmed+Bensaada
Este texto foi publicado em:
http://www.afrique-asie.fr/component/content/article/75-a-la-une/9837-ahmed-bensaada-les-printemps-n-ont-genere-que-le-chaos-la-mort-la-haine-l-exil-et-la-desolation-dans-plusieurs-pays-arabes
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