Portugal gosta de acreditar que lidou bem com a sua história, que foi um colonizador brando e que não é racista
No
‘Deus-dará’ escreve que “Portugal foi o maior esclavagista do Oceano
Atântico” e que “o Império Português tirou 5,8 milhões de pessoas de
África para usar como escravas”. Portugal já fez a reconciliação com o
passado?
Portugal foi objectivamente o maior
esclavagista do Atlântico. Com o tamanho minúsculo que tem tirou quase
metade (47 por cento) dos escravizados de África, enquanto as outras
potências europeias (Espanha, França, Inglaterra, Holanda), todas
juntas, são responsáveis pelo restante. E Portugal inaugurou o tráfico
atlântico, a triangulação Europa-África-América, que não existia. Os
números variam um pouco consoante as fontes, mas se pecam será por
defeito, porque nos faltam registos, porque havia tráfico clandestino,
etc. Seja como for, apenas com o que já se sabe, é inquestionável que a
escala foi gigantesca. E é a percepção desta escala, para começar, que
até hoje não existe, em geral, em Portugal.
Académicos e artistas
têm trabalhado sobre isto, mas desde o ensino básico aos discursos
políticos continua a perpetuar-se um discurso sobre os “Descobrimentos”
que ignora a escala do que aconteceu. A escravatura é transformada numa
espécie de borrão em que todos estavam metidos, e era assim, e já foi
muito tempo, e pronto. Mas esta história, esta corda de mortos, está em
grande parte por desenterrar no espaço público, fora da academia.
Primeiro, o horror do que aconteceu, a quantidade de gente de que
estamos a falar — o mesmo número de pessoas do Holocausto —, o que
passaram, como eram tratadas, como morreram. Depois, quem eram, como
lutaram, como resistiram, como viviam, todas as narrativas que lhes
foram negadas enquanto seres humanos. E como tudo isso se liga à
discriminação, à repressão, ao racismo ao longo da história até hoje.
Dos
manuais escolares aos discursos políticos, Portugal gosta de acreditar
que lidou bem com a sua história, que foi um colonizador brando e que
não é racista. Não foi um colonizador brando, tem inúmeras situações de
racismo e a prova de que não lidou bem com a sua história é a violência
que este tema evoca sempre que se debate, a resistência, o
contra-ataque, e acima de tudo a ausência total em Lisboa de um
memorial, museu ou espaço que reflicta tudo isto.
Lisboa foi a
grande capital esclavagista do mundo, depois de pelo menos um milhão de
ameríndios já terem morrido na sequência da chegada dos portugueses ao
Brasil. Mas todos estes milhões de pessoas, ameríndios e escravizados
africanos, não existem em Belém, o epicentro da memória imperial
portuguesa, nem noutro ponto da cidade. Não existe o horror do que lhes
aconteceu, tal como não existe quem eles eram: narrativas, artes, lutas.
E esse vazio serve o racismo contemporâneo, mantém invisíveis os fios
que ligam esses mortos aos afrodescendentes e ameríndios de hoje. É uma
negação de toda a história, de que do lado deles também há uma história,
da tal corda que liga passado e presente em contínuo, e que fará o
futuro.
No último ano, parece-me que pessoas e movimentos em
Portugal, uns há muito no terreno, outros recentes, de proveniências e
formações várias, começam a confluir, a unirem esforços para que esta
situação mude em vários sentidos. Não vejo como pode não mudar. Não
podemos continuar a ter o Padrão dos Descobrimentos e o Mosteiro dos
Jerónimos sem nada nas redondezas que amplie largamente as narrativas do
que se passou, e continua a passar.
No vazio do que nunca enfrentámos historicamente há também o vazio das mulheresNo
livro denuncia o facto de “dos manuais escolares ao discurso público, a
tónica portuguesa, hoje, é celebrar ‘Os Descobrimentos’ como se não
tivesse acontecido o extermínio de pelo menos um milhão de ameríndios e o
tráfico de quase seis milhões de africanos”. Como se perpetuaram, na
sociedade portuguesa, as ideias de luso-tropicalismo e de uma suposta
brandura dos portugueses durante o colonialismo?
O Estado
Novo foi decisivo nisso. O Padrão dos Descobrimentos é feito para a
Exposição do Mundo Português de 1940, em que Salazar se enfeita com o
Império colonial, e o projecta para o futuro. Depois da Segunda Guerra
precisou de novos argumentos, perante um mundo em mudança, que já não
via com bons olhos impérios coloniais. E usou para esse objectivo a tese
luso-tropicalista do brasileiro Gilberto Freyre, segundo a qual
Portugal seria um colonizador de excepção, com uma propensão histórica
para a mistura racial desde judeus e mouros, mais adaptativo, mais
brando. Freyre é uma figura complexa, com extensa obra anterior, e não
deve ser reduzido a isso, mas dispôs-se a ser passeado pelo Império
colonial português, e carimbou-o intelectualmente em livros. As colónias
passaram a ser chamadas “províncias” do Ultramar. Uma longa história de
mistificação que o Estado Novo vendeu aos portugueses, à custa de todo o
tipo de abusos e discriminações, e depois de uma guerra brutal em
África até 1974, que custou mais de 8000 vidas a portugueses e talvez
cem mil a africanos. E essa mistificação cultivada no Estado Novo,
herdeira também do sonho de um Quinto Império, continua a moldar a visão
de um Portugal de excepção, uma nação especial, destinada a grandes
feitos, em que muitos até hoje acreditam. Sendo que isto convive com um
gosto pelo fado e pelo lamento, com um cíclico sentimento de impotência
ou injustiça. Uma bipolaridade entre o eleito e o desgraçado.
Quanto
à miscigenação, em que assenta a tese do luso-tropicalismo, comecemos
por pensar nisto: foi violação em massa. Os portugueses levaram menos
mulheres do que outros europeus para o Novo Mundo e violaram muito mais,
índias e negras. Mesmo quando não se tratava de uma relação sexual
imposta pela força, tratava-se de uma relação de poder, domínio,
subjugação, não de uma escolha livre. No vazio do que nunca enfrentámos
historicamente há também o vazio das mulheres. As brancas que ficavam na
metrópole, e as índias e negras, milhões, que foram violadas e
violentadas ao longo de séculos, para povoar e embranquecer as colónias.
O que aconteceu desde o século XV foi enterrado como se não tivesse relação com o presente e o futuroHá uma relação direta entre o nosso passado colonial e os episódios de racismo existentes em Portugal?
Sim,
por tudo o que acabo de dizer. Depois do 25 de Abril começámos
lentamente a enfrentar os fantasmas mais recentes, relacionados com a
guerra colonial nos anos 1960-70 em África. Mas o que aconteceu desde o
século XV foi enterrado como se não tivesse relação com o presente e o
futuro. Para muita gente, aliás, português é automaticamente branco, os
negros são vistos como quem veio de fora, pertence a outra terra, quando
há gerações de negros aqui há séculos. Em Portugal nunca houve uma
descolonização do pensamento, de facto. E essa descolonização tem de
começar lá atrás. Para que os fios sejam reconstituídos, as narrativas,
os antepassados dos que agora estão vivos. Porque é que tantos
portugueses acham normal orgulharem-se do [Vasco da] Gama e do [Pedro
Álvares] Cabral, e visitarem os monumentos, e acham estranho que se
queira falar do resto que aconteceu nessa altura? É como se índios e
negros não contassem como gente igual aos brancos, lá atrás. O passado
só serve para enfeitar a lapela? Não serve para pensar que as coisas
foram mais complexas, que milhões de pessoas ficaram invisíveis, estão
invisíveis até hoje? O facto de estarem invisíveis é racismo,
preconceito, sobranceria eurocêntrica, para além de uma enorme cobardia
histórica, de saber quem somos de facto, de nos olharmos ao espelho. E o
facto de continuarem invisíveis perpetua o racismo e o abismo.
O facto de 18 agentes da PSP poderem ser responsabilizados nos termos duros em que estão a ser quebra um status quoAcredita
que a acusação histórica do Ministério Público aos 18 agentes da PSP de
Alfragide poderá mudar a forma como a questão do racismo é abordada em
Portugal?
É uma acusação histórica, sim. Terá de se
provar a culpa, não se trata de nos anteciparmos ao tribunal. Mas o
facto de 18 agentes da PSP poderem ser responsabilizados nos termos
duros em que estão a ser quebra um status quo, muda o prisma, sublinha o
racismo como crime punível. Tudo isto contribui para uma outra
percepção do que é aceitável e do que não é, para dissuadir
comportamentos preconceituosos, para exigir da polícia uma outra
consciência, e será uma oportunidade decisiva para a polícia se
comprometer seriamente com isso.
Para além da sua paixão
pelo Brasil, o Médio Oriente sempre assumiu um grande destaque na sua
escrita, nomeadamente na reportagem e na crónica. Como olha para o
estado atual da região?
Seriam muitas respostas, Síria,
Iraque, Egitpo. Fico-me por Israel/Palestina, de onde acabo de voltar
depois de um mês em reportagem. Tudo está pior do que nunca. Tudo quer
dizer, a esperança dos palestinianos, a vida dos israelitas está ok, e
por isso é que Israel não vai fazer absolutamente nada na direcção da
paz. Gaza é um caso único no mundo, dois milhões de pessoas a
enlouquecerem sem poderem sair de uma nesga de território, controlada
por Israel a partir de ar, mar e terra. Um escândalo de que toda a gente
é responsável, Israel à cabeça, depois o dito quarteto das negociações,
EUA, UE, Rússia, ONU.
in Notícias aos Minuto
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