Sobre o Mal:
Uma Entrevista com Alain Badiou
   
Por Christoph Cox e Molly Whalen, via Cabinet Magazine, traduzido por Hugo Gomes Penaranda
“Se tornar um sujeito (e não permanecer um simples animal humano), é participar no surgimento de uma novidade universal”.
Na filosofia e na teoria psicanalítica, o
 mal está de volta. A questão sobre o mal é, claro, antiga e venerável 
na filosofia ocidental, tendo fascinado filósofos desde Sócrates e 
Agostinho a Leibniz e Kant. Em grande parte dessa história, “a questão 
sobre o mal” é teológica: Se Deus é beneficente e onipotente, por que 
ele permite a existência de tanta maldade no mundo? Depois de Kant, a 
filosofia, em grande parte, cortou seus laços com a teologia e, com 
isso, a questão sobre o mal retrocedeu. O mal parecia não ser mais uma 
questão para a filosofia, mas ao invés, se tornara uma questão para a 
psiquiatria, sociologia e biologia. Entretanto, nos últimos anos, um 
grupo de filósofos e teóricos vagamente conectados, influenciados pelo 
trabalho de Kant e Jacques Lacan, retornou para a questão sobre o mal. 
Dentre eles está Alain Badiou, que em 1993 publicou Ética: Um Ensaio sobre o Entendimento do Mal.
 Uma análise, crítica e reformulação do discurso do mal no pensamento 
contemporâneo, o trabalho rejeita ambas interpretações, teológica e 
científica (psicológica, sociológica, etc.), sobre o mal, localizando, 
em vez disso, o bem e o mal na própria estrutura da subjetividade, 
agência e liberdade humanas. Christoph Cox e Molly Whalen entrevistaram 
Badiou por e-mail entre julho – agosto de 2001. Badiou solicitou a 
adição do parágrafo final dessa entrevista após os eventos do 11 de 
setembro.
Você argumenta que em nossos 
discursos filosóficos e políticos de hoje, o mal é “autoevidente” e que 
ambas, essa “autoevidência” e essa concepção sobre o “mal”, são 
problemáticas. Qual é a “nossa representação consensual sobre o mal” e o
 que há de errado com ela? 
A ideia de autoevidência do mal não é, na
 nossa sociedade, muito antiga. Ela data, na minha opinião, do final dos
 anos 1960, quando o grande movimento político dos anos 1960 tinha 
acabado. Nós então entramos em um período reativo, um período que eu 
chamo de Restauração. Você sabe que, na França, “Restauração” refere-se 
ao período do retorno do Rei, em 1815, após a Revolução e Napoleão. Nós 
estamos em período assim. Hoje, nós vemos o capitalismo liberal e o seu 
sistema político, o parlamentarismo, como a única solução natural e 
aceitável. Toda ideia revolucionária é considerada utópica e, no fim das
 contas, criminosa. Nós somos feitos para acreditar que a propagação 
global do capitalismo e o que é chamado de “democracia” é o sonho de 
toda a humanidade. E que o mundo todo quer a autoridade do Império 
Americano e sua polícia militar, OTAN.
Na verdade, nossos líderes e 
propagandistas sabem muito bem que o capitalismo liberal é um regime 
desigual, injusto, e inaceitável para a vasta maioria da humanidade. E 
eles também sabem que nossa “democracia” é uma ilusão: Onde está o poder
 do povo? Onde está o poder político para os camponeses do terceiro 
mundo, para a classe operária europeia, para os pobres de toda parte? 
Nós vivemos em uma contradição: um estado das coisas brutal, 
profundamente desigual — onde toda existência é avaliada exclusivamente 
em termos de dinheiro — nos é apresentada como ideal. Para justificar 
seu conservadorismo, os partidários da ordem estabelecida não podem 
realmente chamá-la de ideal ou maravilha. Então ao invés, eles decidiram
 dizer que todo o resto é horrível. Claro, eles dizem, nós podemos não 
viver em um mundo perfeito. Mas nós temos sorte de não vivermos em uma 
condição perversa. Nossa democracia não é perfeita. Mas é melhor que 
ditaduras sangrentas. O capitalismo é injusto. Mas não é criminosa como o
 stalinismo. Nós deixamos milhões de africanos morrerem de AIDS, mas nós
 não fazemos declarações nacionalistas racistas como Milosevic. Nós 
matamos iraquianos com nossos aviões, mas nós não cortamos suas 
gargantas com facões como eles fazem em Ruanda, etc.
É por isso que a ideia sobre o mal se 
tornou essencial. Nenhum intelectual irá defender o poder brutal do 
dinheiro e o desdém político pelos desprivilegiados ou trabalhadores 
manuais que o acompanha, mas muitos concordam em dizer que o mal real 
está em outro lugar. Quem hoje realmente poderia defender o terror 
stalinista, os genocídios africanos, os torturadores latino-americanos? 
Ninguém. É aí que o consenso em relação ao mal é decisivo. Sob o 
pretexto de não aceitar o mal, nós acabamos fazendo crer que nós temos, 
se não o bem, pelo menos o melhor estado das coisas possível — mesmo que
 esse melhor não seja tão bom. O refrão acerca dos “direitos humanos” 
não é nada além da ideologia do capitalismo liberal moderno: Nós não 
iremos massacrar vocês, nós não iremos torturar vocês em cavernas, então
 fique quieto e adore o bezerro dourado. Para aqueles que não querem 
adorá-lo, ou que não acreditam em nossa superioridade, sempre existirá o
 exército americano e seus minions europeus para faze-los ficar quietos.
Note que até Churchill disse que a 
democracia (em outras palavras o regime do capitalismo liberal) não era o
 melhor dos regimes políticos, mas o menos mal. A filosofia sempre foi 
crítica às opiniões frequentemente aceitas e sobre o que parece óbvio. 
Aceitar o que você tem porque todo o resto pertence ao mal é uma ideia 
óbvia, que deveria portanto ser imediatamente examinada e criticada.
Minha posição pessoal é a seguinte: É 
necessário examinar, de uma forma detalhada, a teoria contemporânea 
sobre o mal, a ideologia dos direitos humanos, o conceito de democracia.
 É necessário mostrar que nada disso leva na direção da real emancipação
 da humanidade. É necessário reconstruir o direto, tanto na vida 
cotidiana quanto na política, da verdade e do bem. Nossa habilidade de 
uma vez mais ter ideias reais e projetos reais depende disso.
Você diz que, para o capitalismo 
liberal, o mal sempre está em outro lugar, o temido outro, alguma coisa 
que o capitalismo liberal acredita ter, ainda bem, banido e mantido à 
distância. Porém ainda não existe, no imaginário coletivo, uma ideia 
poderosa do mal (social, psicológico, doméstica) interior? Por décadas, 
filmes populares e romances têm sido obsessivos com a ideia sobre o mal à
 espreita internamente (na mente, na casa, na vizinhança). O caso do 
Timothy McVeigh nos EUA parece ter renovado preocupações políticas sobre
 “o mal interior” (dentro de cada um de nós, dentro do coração dos EUA).
 Há apenas um mês, Andrea Yates, uma mãe texana, sistematicamente afogou
 suas cinco crianças, levando a um debate nacional sobre se somos ou não
 todos capazes de tal mal. Filosoficamente, o novo interesse no conceito
 de Kant sobre o “mal radical” (e sua reinterpretação lacaniana) parece 
ir ao encontro dessa ideia de mal interior (ao invés de exterior, 
político). Certamente, durante a maior parte da história do ocidente, 
poderia parecer que o mal foi concebido como “interior”, como algo que 
moralmente assombra cada um de nós. Então, minhas questões: Em adição à 
noção de mal “exterior” que você propõe, você também reconhece essa 
noção de mal “interior”? Essa ideia é perene, ou ela nos conta algo 
peculiar sobre nosso momento histórico? Você enxerga essas duas noções 
de mal (exterior e interior) como conectadas uma a outra de alguma 
forma?
Não há nenhuma contradição entre a 
afirmação de que o capitalismo liberal e a democracia são o bem e a 
afirmação de que o mal é uma permanente possibilidade para qualquer 
indivíduo. A segunda tese (o mal interior de cada um de nós) é 
simplesmente o complemento moral e religioso da primeira tese, que é 
político (capitalismo parlamentar como o bem). Existe até uma conexão 
“lógica” entre as duas afirmações, como segue:
- A história mostra que o capitalismo liberal democrático é o único regime econômico, político e social que é verdadeiramente humano, que verdadeiramente se conforma ao bem da humanidade.
 
- Qualquer outro regime político é uma ditadura monstruosa e sangrenta, completamente irracional.
 
- A prova desse fato é que todos os regimes políticos que têm lutado contra o liberalismo e a democracia dividem a mesma face do mal. Assim, fascismo e comunismo, que pareciam ser opostos, eram na verdade muito similares. Eles são ambos da família “totalitária”, que é oposta a família democrática-capitalista.
 
- Esses regimes monstruosos não podem produzir um projeto racional, uma ideia de justiça ou alguma coisa desse tipo. Aqueles que lideraram esses regimes (fascismo ou comunismo) eram necessariamente casos patológicos: É preciso estudar Hitler ou Stalin sob a ótica da psicologia criminal. Para aqueles que apoiaram eles, e foram centenas deles, eles foram alienados pela mística totalitária. Eles eram finalmente dirigidos por paixões más e destrutivas.
 
- Se milhares de pessoas foram capazes de participar de tal empreendimento ridículo e criminoso, isso é obviamente porque a possibilidade de estar fascinado pelo mal existe em cada um de nós. Essa possibilidade será chamada de “aversão pelo Outro”. A conclusão será que, primeiro, nós devemos apoiar a democracia liberal em todos os lugares e que, segundo, nós devemos ensinar nossas crianças o imperativo ético do amor ao Outro.
 
Minha posição é obviamente que esse 
“raciocínio” é puramente ideologia ilusória. Primeiro, o capitalismo 
liberal não é o bem da humanidade de forma alguma. Muito pelo contrário;
 é o veículo do niilismo selvagem, destrutivo. Segundo, as revoluções 
comunistas do século XX representaram esforços grandiosos para criar um 
universo histórico e político completamente diferente. Política não é a 
gestão do poder do Estado. Política é primeiro a invenção e o exercício 
de uma realidade absolutamente nova e concreta. A política é a criação 
do pensamento. O Lenin que escreveu Que Fazer?, o Trotsky que escreveu História da Revolução Russa (tradução literal) e o Mao Zedong que escreveu A Correta Abordagem das Contradições Entre as Pessoas
 (tradução literal) são gênios intelectuais, comparáveis a Freud ou 
Einstein. Certamente, as políticas de emancipação, ou políticas 
igualitárias, não foram, até agora, capazes de resolver o problema do 
poder do Estado. Elas tentaram um terror que é no limite inútil. Mas 
isso deveria nos encorajar a tomar a questão onde eles a deixaram, ao 
invés de unir-se ao inimigo capitalista, imperialista. Terceiro, a 
categoria “totalitarismo” é intelectualmente muito fraca. Há, do lado do
 comunismo, um desejo universal pela emancipação, enquanto que do lado 
do fascismo, há um desejo nacional e racial. Esses são dois projetos 
radicalmente opostos. A guerra entre os dois tem sido realmente entre a 
guerra entre ideia da política universal e a ideia da dominação racial. 
Quarto, o uso do terror em circunstâncias revolucionárias ou de guerra 
civil não significa de forma alguma que os líderes e os militantes estão
 insanos ou que eles expressam a possibilidade do mal interior. O terror
 é uma ferramenta política que tem sido usada desde quando as sociedades
 humanas têm existido. Ele deveria dessa forma ser julgado como uma 
ferramenta política, e não submetida a um julgamento moral 
infantilizado. Deveria ser adicionado que existem diferentes tipos de 
terror. Nossos países liberais sabem como usá-lo perfeitamente. O 
colossal exército americano exerce chantagem terrorista em uma escala 
global, e prisões e execuções exercem uma chantagem interior não menos 
violenta. Quinto, a única teoria coerente sobre o sujeito (minha, eu 
devo adicionar, um gracejo!) não reconhece nisso nenhuma disposição 
particular para o mal. Até a pulsão de morte de Freud não é 
particularmente vinculada ao mal. A pulsão de morte é um componente 
necessário de sublimação e criação, assim como o é para o assassinato e 
suicídio. Quanto ao amor pelo Outro, ou, pior, o “reconhecimento do 
Outro”, isso não é nada além de confeites cristãos. Nunca há “o Outro” 
enquanto tal. Existem projetos de pensamentos, ou de ações, na base da 
qual nós distinguimos entre aqueles que são amigos, aqueles que são 
inimigos, e aqueles que podem ser considerados neutros. A questão de 
saber como tratar inimigos ou neutros depende inteiramente do projeto 
concernido, o pensamento que o constitui, e as circunstâncias concretas 
(O projeto está em uma fase ascendente? Ele é perigoso? etc.).
Dado o que você disse, alguém pode 
esperar que você vire a mesa ao afirmar que, ao contrário da visão 
predominante, o capitalismo liberal é o “mal” em si. Mas você não faz 
isso. Ao invés, você oferece uma teoria alternativa sobre o mal. 
Se fosse para eu virar a mesa, como você 
sugere, eu deixaria tudo no lugar. Dizer que o capitalismo liberal é mal
 não mudaria nada. Eu ainda estaria subordinando a política à moralidade
 humanista e cristã: Eu diria: “Vamos lutar contra o mal.” Mas eu já 
tive o bastante de “lutar contra”, de “desconstrução”, de “insuperável”,
 de “colocar um fim em”, etc. Minha filosofia deseja afirmação. Eu quero
 lutar por; eu quero saber o que eu tenho para o bem e colocar isso para
 trabalhar. E me recuso a me contentar com o “menos mal”. Está muito na 
moda agora ser modesto, não pensar grande. A grandeza é considerada um 
mal metafísico. Eu, eu sou pela grandeza, eu sou pelo heroísmo. Eu sou 
pela afirmação do pensamento e da ação.
Certamente, é necessário propor outra 
teoria sobre o mal. Mas isso é dizer, essencialmente, outra teoria sobre
 o bem. O mal poderia comprometer a questão sobre o bem. Desistir é 
sempre mal. Desistir das políticas de liberação, renunciar à um amor 
apaixonado, renunciar à uma criação artística… O mal é o momento em que 
me falta a força de ser verdadeiro ao bem que me compele.
A verdadeira questão subjacente à questão
 sobre o mal é a seguinte: O que é o bem? Toda a minha filosofia luta 
para responder a essa questão. Por razões complexas, eu chamei o bem de 
“verdades” (no plural). Uma verdade é um processo concreto que se inicia
 por uma agitação (um encontro, uma revolta generalizada, uma nova 
invenção surpreendente), e se desenvolve com fidelidade à novidade então
 experimentada. Uma verdade é o desenvolvimento subjetivo sobre o que é 
de uma só vez ambos novo e universal. Novo: aquilo que é jamais visto 
pela ordem da criação. Universal: aquilo que pode interessar, 
perfeitamente, a cada indivíduo humano, de acordo com sua pura 
humanidade (que eu chamo sua humanidade genérica). Se tornar um sujeito 
(e não permanecer um simples animal humano), é participar no surgimento 
de uma novidade universal. Isso requer esforço, persistência, as vezes 
auto-privação. Eu digo frequentemente que é necessário ser “ativista” da
 verdade. Existe mal sempre que o egoísmo leva à renúncia da verdade. 
Então, o indivíduo é dessujeitivizado. Interesses próprios egoístas têm 
mão única, arriscando a interrupção de todo o progresso de uma verdade 
(e portanto do bem).
Alguém pode, assim, definir o mal em uma 
frase: o mal é a interrupção da verdade pela pressão de interesses 
particulares ou individuais. Mesmo o caso que você citou acima — a 
mulher que afogou suas cinco crianças — se origina dessa visão das 
coisas. O debate que você levanta é absurdo: Obviamente, todo mundo é 
“capaz” de tudo. Já se viu em toda parte pessoas boas se tornando 
torturadores, ou cidadãos pacíficos atacando brutalmente pessoas por 
coisas insignificantes. Essa consideração tem nenhum interesse. Ela 
somente nos lembra que as espécies humanas são uma espécie animal, 
governada pelos interesses mais baixos, cujo lucro capitalista é 
meramente a formalização legal. Tudo isso é falta de bem e mal, não é 
nada mais que o governo dos impulsos. A questão sobre o mal se inicia 
quando alguém pode dizer de qual bem se está falando. Estou convencido 
que o assassinato de cinco crianças está realmente relacionado a uma 
renúncia brutal do bem, na forma de um processo amoroso. Em todo caso, 
esse é o único caso em que se faz qualquer sentido falar sobre o mal. O 
mito que pensa isso é Medeia. Ela também matou suas crianças. E isso não
 é mal, no sentido trágico do termo, por que esse assassinato é 
inteiramente dependente de seu amor por Jason.
Na sua visão, então, o domínio animal
 humano está simplesmente abaixo do bem e do mal (de forma que atos de 
tortura, por exemplo, não são propriamente “maus”)? Um indivíduo não tem
 a obrigação moral de se tornar sujeito (ao invés de permanecer um 
animal humano)? E, portanto, a falha em se tornar sujeito não é uma 
falha moral?
A questão realmente combina duas 
concepções comuns de moralidade (e portanto da distinção entre o bem e o
 mal): a concepção “natural”, derivada de Rousseau, e a concepção 
“formal”, derivada de Kant:
- Existe uma moralidade “natural”, coisas que são obviamente más na opinião de qualquer consciência humana. Consequentemente, o mal existe para o animal humano. O exemplo dado é o da tortura.
 
- Existe uma moralidade “formal”, uma obrigação universal que está acima de qualquer situação particular. E, dessa forma, existe um mal universal, que, também, é independente das circunstâncias. O exemplo dado é o da obrigação de se tornar um sujeito, de colocar-se acima do animalismo humano básico. É ruim se recusar a se tornar um sujeito humano por completo, não importa quais os termos específicos dessa transformação.
 
Eu devo, claro, especificar que me oponho
 absolutamente a essas duas concepções. Eu sustento que o estado natural
 do animal humano não tem nada a ver com o bem ou o mal. E sustento que o
 tipo de obrigação moral formal descrito no imperativo categórico de 
Kant não existe realmente.
Pegue o exemplo da tortura. Em uma 
civilização tão sofisticada como o Império Romano, não só a tortura não é
 considerada um mal, como é considerada um espetáculo. Nas arenas, as 
pessoas são devoradas por tigres; elas são queimadas vivas; a audiência 
regozija-se ao ver combatentes cortarem uns aos outros as gargantas. 
Como, então, podemos pensar que a tortura é mal para todo animal humano?
 Não somos o mesmo animal que Sêneca ou Marcus Aurelius? Eu devo 
adicionar que as forças armadas do meu país, a França, com a aprovação 
dos governos do período e da maioria da opinião pública, torturou todos 
os prisioneiros durante a guerra da Argélia. A recusa da tortura é um 
fenômeno histórico e cultural, de forma alguma natural. De uma maneira 
geral, o animal humano conhece a crueldade assim como conhece a pena; 
uma é tão natural como a outra e nenhuma tem nada a ver com o bem ou o 
mal. Pode-se saber de situações cruciais onde a crueldade é necessária e
 útil, e outras situações onde a pena não é nada além de uma forma de 
desprezo pelos outros. Você não irá encontrar nada na estrutura do 
animal humano onde basear o conceito de mal, nem, ademais, o de bem.
Mas a solução formal não é nada melhor. 
Ao contrário, a obrigação de ser um sujeito não tem nenhum significado, 
pela seguinte razão: A possibilidade de se tornar um sujeito não depende
 de nós, mas daquilo que ocorre nas circunstâncias que são sempre 
singulares. A distinção entre bem e mal já pressupõe um sujeito, e 
portanto não se aplicam a ele. É para um sujeito, não para um animal 
humano pré-subjetivizado, que o mal é possível. Por exemplo, se, durante
 a ocupação da França pelos nazistas, eu me junto à resistência, eu me 
torno um sujeito de um momento histórico. Do interior dessa 
subjetivização, eu posso dizer o que é mau (trair meus companheiros, 
colaborar com os nazistas, etc.). Eu também posso decidir o que é bom 
fora das normas habituais. Assim a escritora Marguerite Duras relatou 
como, por razões relacionadas à resistência aos nazistas, participou de 
atos de tortura contra traidores. Toda a distinção entre o bem e o mal 
surge de dentro de um tornar-se-sujeito, e varia com esse tornar-se (que
 eu mesmo chamo de filosofia, o tornar-se de uma verdade).
Resumindo: Não existe uma definição 
natural do mal; o mal é sempre aquilo que, em uma situação particular, 
tende a enfraquecer ou destruir um sujeito. E a concepção de mal é 
portanto inteiramente dependente dos eventos nos quais um sujeito 
constitui a si mesmo. É o sujeito que prescreve o que é o mal, não uma 
ideia natural do mal que define o que um sujeito “moral” é. Também não 
existe um imperativo formal a partir do qual definir o mal, mesmo 
negativamente. De fato, todos os imperativos presumem que o sujeito do 
imperativo já está constituído, e em circunstâncias específicas. E assim
 não pode existir um imperativo para se tornar sujeito, exceto como uma 
declaração absolutamente vazia. É por isso também que não existe nenhuma
 forma geral do mal, porque o mal não existe, exceto como um julgamento,
 feito por um sujeito, em uma situação, e nas consequências de suas 
próprias ações nessa situação. Então o mesmo ato (matar, por exemplo) 
pode ser mal em certo contexto subjetivo, e uma necessidade do bem em 
outro.
Eu devo particularmente insistir que a 
fórmula “respeito pelo Outro” não tem nada a ver com nenhuma definição 
séria de bem e mal. O que “respeito pelo Outro” significa quando se está
 em uma guerra contra um inimigo, quando se é brutalmente deixado por 
uma mulher em função de outra pessoa, quando se precisa julgar o 
trabalho de um “artista” medíocre, quando a ciência é confrontada com 
seitas obscurantistas, etc.? Quase sempre, é o “respeitos pelos Outros” 
que é injuriosa, que é má. Especialmente quando é resistência contra os 
outros, ou até a aversão a outros, que anima uma ação subjetivamente 
justa. E é sempre nesses tipos de circunstâncias (conflitos violentos, 
mudanças brutais, amores apaixonados, criações artísticas) que a questão
 sobre o mal pode ser verdadeiramente perguntada por um sujeito. O mal 
não existe nem como natureza nem como lei. Ele existe, e varia, no ato 
singular tornar-se da verdade.
Em resposta a uma pergunta anterior, 
você destacou que “É necessário reconstruir o direto, tanto na vida 
cotidiana quanto na política, da verdade e do bem”. Você pode falar mais
 sobre como a ética da verdade pode ser mobilizada em termos práticos, e
 como isso pode constituir uma alternativa ao conceito atual de 
“direitos humanos”?
Pegue o exemplo mais próximo: o terrível 
ataque criminoso em Nova Iorque em setembro, com suas milhares de 
vítimas. Se você raciocinar em termos de moralidade dos direitos 
humanos, você diz, com o presidente Bush: “Esses são terroristas 
criminosos. Isso é uma luta do bem contra o mal”. Mas as polícias de 
Bush, na Palestina ou no Iraque por exemplo, são realmente boas? E, 
afirmando que essas pessoas são más, ou que eles não respeitam os 
direitos humanos, nós entendemos alguma coisa sobre a mentalidade 
daqueles que mataram a si mesmos com suas bombas? Não existe muito 
desespero e violência no mundo causadas pelo fato de que políticas das 
potências ocidentais, e do governo Americano em particular, são 
completamente destituídas de ingenuidade e valor? Frente a crimes, 
crimes terríveis, nós devermos pensar e agir de acordo com verdades 
políticas concretas, ao invés de sermos guiados por estereótipos de 
qualquer tipo de moralidade. O mundo todo entende que a verdadeira 
questão é a seguinte: Por que políticas das potências ocidentais, da 
OTAN, da Europa e dos EUA, parecem completamente injustas para dois de 
cada três habitantes do planeta? Por que cinco mil mortes de americanos 
são consideradas uma causa para guerra, enquanto quinhentas mil mortes 
em Ruanda e uma estimativa de dez milhões de mortes pela AIDS na África 
não são, na nossa opinião, merecedoras de indignação. Por que o 
bombardeio de civis nos EUA é mau, enquanto que o bombardeio de Bagdá ou
 Belgrado atualmente, ou de Hanói ou Panamá no passado, é bom? A ética 
das verdades que proponho procede de situações concretas, ao invés de um
 direito abstrato, ou um mal espetacular. O mundo todo entende essas 
situações, e o mundo todo pode agir de modo desinteressado quando 
incitado pela injustiça dessas situações. É fácil enxergar o mal na 
política: É a absoluta desigualdade em respeito à vida, à riqueza, ao 
poder. Bom é a igualdade. Por quanto tempo podemos aceitar o fato de que
 aquilo é preciso para fornecer água corrente, escolas, hospitais, e 
comida suficiente para toda a humanidade é uma soma que corresponde ao 
total gasto pelos países ricos do ocidente em perfume durante um ano? 
Isso não é uma questão sobre direitos humanos ou moralidade. É uma 
questão sobre a batalha fundamental por igualdade para todas as pessoas,
 contra a lei do lucro, seja pessoal ou nacional.
Do mesmo modo, o bem na ação artística é a
 invenção de novas formas que transmitem o significado de mundo. O bem 
na ciência é a audácia do pensamento livre, a alegria do conhecimento 
preciso. Igualmente, o bem no amor é o entendimento sobre o que a 
diferença realmente é, sobre o que é construir um mundo em que se é 
dois, e não um. E o mal, então, são ensaios acadêmicos ou comércio 
“cultural”; é o conhecimento a serviço do lucro capitalista; é a 
sexualidade considerada como uma mera técnica de prazer [jouissance].
 Vou repeti-lo: O mundo todo divide essas experiências. A ética da 
verdade sempre retorna, em circunstâncias precisas, para lutar pela 
verdade contra as quatro formas fundamentais de mal: obscurantismo, 
academicismo comercial, as políticas de lucro e a desigualdade, e a 
barbárie sexual.
Alain Badiou é um dos 
principais filósofos da França. Um estudante do filósofo Marxista Louis 
Althusser, Badiou liderou uma facção Maoista nos anos 1970 e continua a 
trabalhar como um ativista político. Ele é autor de L’Être et l’évenement and Ethics: An Essay on the Understanding of Evil (Verso).
Christoph Cox ensina filosofia, teoria crítica, e música contemporânea na Hampshire College. É um editor colaborador na Cabinet.
Molly Whalen é uma 
estudiosa de Literatura e Cultura do Início da Era Moderna, e Teoria 
Literária e Cultural. Ela vive em Amherst, Massachusetts.
   
Por Christoph Cox e Molly Whalen, via Cabinet Magazine, traduzido por Hugo Gomes Penaranda
“Se tornar um sujeito (e não permanecer um simples animal humano), é participar no surgimento de uma novidade universal”.
Na filosofia e na teoria psicanalítica, o
 mal está de volta. A questão sobre o mal é, claro, antiga e venerável 
na filosofia ocidental, tendo fascinado filósofos desde Sócrates e 
Agostinho a Leibniz e Kant. Em grande parte dessa história, “a questão 
sobre o mal” é teológica: Se Deus é beneficente e onipotente, por que 
ele permite a existência de tanta maldade no mundo? Depois de Kant, a 
filosofia, em grande parte, cortou seus laços com a teologia e, com 
isso, a questão sobre o mal retrocedeu. O mal parecia não ser mais uma 
questão para a filosofia, mas ao invés, se tornara uma questão para a 
psiquiatria, sociologia e biologia. Entretanto, nos últimos anos, um 
grupo de filósofos e teóricos vagamente conectados, influenciados pelo 
trabalho de Kant e Jacques Lacan, retornou para a questão sobre o mal. 
Dentre eles está Alain Badiou, que em 1993 publicou Ética: Um Ensaio sobre o Entendimento do Mal.
 Uma análise, crítica e reformulação do discurso do mal no pensamento 
contemporâneo, o trabalho rejeita ambas interpretações, teológica e 
científica (psicológica, sociológica, etc.), sobre o mal, localizando, 
em vez disso, o bem e o mal na própria estrutura da subjetividade, 
agência e liberdade humanas. Christoph Cox e Molly Whalen entrevistaram 
Badiou por e-mail entre julho – agosto de 2001. Badiou solicitou a 
adição do parágrafo final dessa entrevista após os eventos do 11 de 
setembro.
Você argumenta que em nossos 
discursos filosóficos e políticos de hoje, o mal é “autoevidente” e que 
ambas, essa “autoevidência” e essa concepção sobre o “mal”, são 
problemáticas. Qual é a “nossa representação consensual sobre o mal” e o
 que há de errado com ela? 
A ideia de autoevidência do mal não é, na
 nossa sociedade, muito antiga. Ela data, na minha opinião, do final dos
 anos 1960, quando o grande movimento político dos anos 1960 tinha 
acabado. Nós então entramos em um período reativo, um período que eu 
chamo de Restauração. Você sabe que, na França, “Restauração” refere-se 
ao período do retorno do Rei, em 1815, após a Revolução e Napoleão. Nós 
estamos em período assim. Hoje, nós vemos o capitalismo liberal e o seu 
sistema político, o parlamentarismo, como a única solução natural e 
aceitável. Toda ideia revolucionária é considerada utópica e, no fim das
 contas, criminosa. Nós somos feitos para acreditar que a propagação 
global do capitalismo e o que é chamado de “democracia” é o sonho de 
toda a humanidade. E que o mundo todo quer a autoridade do Império 
Americano e sua polícia militar, OTAN.
Na verdade, nossos líderes e 
propagandistas sabem muito bem que o capitalismo liberal é um regime 
desigual, injusto, e inaceitável para a vasta maioria da humanidade. E 
eles também sabem que nossa “democracia” é uma ilusão: Onde está o poder
 do povo? Onde está o poder político para os camponeses do terceiro 
mundo, para a classe operária europeia, para os pobres de toda parte? 
Nós vivemos em uma contradição: um estado das coisas brutal, 
profundamente desigual — onde toda existência é avaliada exclusivamente 
em termos de dinheiro — nos é apresentada como ideal. Para justificar 
seu conservadorismo, os partidários da ordem estabelecida não podem 
realmente chamá-la de ideal ou maravilha. Então ao invés, eles decidiram
 dizer que todo o resto é horrível. Claro, eles dizem, nós podemos não 
viver em um mundo perfeito. Mas nós temos sorte de não vivermos em uma 
condição perversa. Nossa democracia não é perfeita. Mas é melhor que 
ditaduras sangrentas. O capitalismo é injusto. Mas não é criminosa como o
 stalinismo. Nós deixamos milhões de africanos morrerem de AIDS, mas nós
 não fazemos declarações nacionalistas racistas como Milosevic. Nós 
matamos iraquianos com nossos aviões, mas nós não cortamos suas 
gargantas com facões como eles fazem em Ruanda, etc.
É por isso que a ideia sobre o mal se 
tornou essencial. Nenhum intelectual irá defender o poder brutal do 
dinheiro e o desdém político pelos desprivilegiados ou trabalhadores 
manuais que o acompanha, mas muitos concordam em dizer que o mal real 
está em outro lugar. Quem hoje realmente poderia defender o terror 
stalinista, os genocídios africanos, os torturadores latino-americanos? 
Ninguém. É aí que o consenso em relação ao mal é decisivo. Sob o 
pretexto de não aceitar o mal, nós acabamos fazendo crer que nós temos, 
se não o bem, pelo menos o melhor estado das coisas possível — mesmo que
 esse melhor não seja tão bom. O refrão acerca dos “direitos humanos” 
não é nada além da ideologia do capitalismo liberal moderno: Nós não 
iremos massacrar vocês, nós não iremos torturar vocês em cavernas, então
 fique quieto e adore o bezerro dourado. Para aqueles que não querem 
adorá-lo, ou que não acreditam em nossa superioridade, sempre existirá o
 exército americano e seus minions europeus para faze-los ficar quietos.
Note que até Churchill disse que a 
democracia (em outras palavras o regime do capitalismo liberal) não era o
 melhor dos regimes políticos, mas o menos mal. A filosofia sempre foi 
crítica às opiniões frequentemente aceitas e sobre o que parece óbvio. 
Aceitar o que você tem porque todo o resto pertence ao mal é uma ideia 
óbvia, que deveria portanto ser imediatamente examinada e criticada.
Minha posição pessoal é a seguinte: É 
necessário examinar, de uma forma detalhada, a teoria contemporânea 
sobre o mal, a ideologia dos direitos humanos, o conceito de democracia.
 É necessário mostrar que nada disso leva na direção da real emancipação
 da humanidade. É necessário reconstruir o direto, tanto na vida 
cotidiana quanto na política, da verdade e do bem. Nossa habilidade de 
uma vez mais ter ideias reais e projetos reais depende disso.
Você diz que, para o capitalismo 
liberal, o mal sempre está em outro lugar, o temido outro, alguma coisa 
que o capitalismo liberal acredita ter, ainda bem, banido e mantido à 
distância. Porém ainda não existe, no imaginário coletivo, uma ideia 
poderosa do mal (social, psicológico, doméstica) interior? Por décadas, 
filmes populares e romances têm sido obsessivos com a ideia sobre o mal à
 espreita internamente (na mente, na casa, na vizinhança). O caso do 
Timothy McVeigh nos EUA parece ter renovado preocupações políticas sobre
 “o mal interior” (dentro de cada um de nós, dentro do coração dos EUA).
 Há apenas um mês, Andrea Yates, uma mãe texana, sistematicamente afogou
 suas cinco crianças, levando a um debate nacional sobre se somos ou não
 todos capazes de tal mal. Filosoficamente, o novo interesse no conceito
 de Kant sobre o “mal radical” (e sua reinterpretação lacaniana) parece 
ir ao encontro dessa ideia de mal interior (ao invés de exterior, 
político). Certamente, durante a maior parte da história do ocidente, 
poderia parecer que o mal foi concebido como “interior”, como algo que 
moralmente assombra cada um de nós. Então, minhas questões: Em adição à 
noção de mal “exterior” que você propõe, você também reconhece essa 
noção de mal “interior”? Essa ideia é perene, ou ela nos conta algo 
peculiar sobre nosso momento histórico? Você enxerga essas duas noções 
de mal (exterior e interior) como conectadas uma a outra de alguma 
forma?
Não há nenhuma contradição entre a 
afirmação de que o capitalismo liberal e a democracia são o bem e a 
afirmação de que o mal é uma permanente possibilidade para qualquer 
indivíduo. A segunda tese (o mal interior de cada um de nós) é 
simplesmente o complemento moral e religioso da primeira tese, que é 
político (capitalismo parlamentar como o bem). Existe até uma conexão 
“lógica” entre as duas afirmações, como segue:
- A história mostra que o capitalismo liberal democrático é o único regime econômico, político e social que é verdadeiramente humano, que verdadeiramente se conforma ao bem da humanidade.
 
- Qualquer outro regime político é uma ditadura monstruosa e sangrenta, completamente irracional.
 
- A prova desse fato é que todos os regimes políticos que têm lutado contra o liberalismo e a democracia dividem a mesma face do mal. Assim, fascismo e comunismo, que pareciam ser opostos, eram na verdade muito similares. Eles são ambos da família “totalitária”, que é oposta a família democrática-capitalista.
 
- Esses regimes monstruosos não podem produzir um projeto racional, uma ideia de justiça ou alguma coisa desse tipo. Aqueles que lideraram esses regimes (fascismo ou comunismo) eram necessariamente casos patológicos: É preciso estudar Hitler ou Stalin sob a ótica da psicologia criminal. Para aqueles que apoiaram eles, e foram centenas deles, eles foram alienados pela mística totalitária. Eles eram finalmente dirigidos por paixões más e destrutivas.
 
- Se milhares de pessoas foram capazes de participar de tal empreendimento ridículo e criminoso, isso é obviamente porque a possibilidade de estar fascinado pelo mal existe em cada um de nós. Essa possibilidade será chamada de “aversão pelo Outro”. A conclusão será que, primeiro, nós devemos apoiar a democracia liberal em todos os lugares e que, segundo, nós devemos ensinar nossas crianças o imperativo ético do amor ao Outro.
 
Minha posição é obviamente que esse 
“raciocínio” é puramente ideologia ilusória. Primeiro, o capitalismo 
liberal não é o bem da humanidade de forma alguma. Muito pelo contrário;
 é o veículo do niilismo selvagem, destrutivo. Segundo, as revoluções 
comunistas do século XX representaram esforços grandiosos para criar um 
universo histórico e político completamente diferente. Política não é a 
gestão do poder do Estado. Política é primeiro a invenção e o exercício 
de uma realidade absolutamente nova e concreta. A política é a criação 
do pensamento. O Lenin que escreveu Que Fazer?, o Trotsky que escreveu História da Revolução Russa (tradução literal) e o Mao Zedong que escreveu A Correta Abordagem das Contradições Entre as Pessoas
 (tradução literal) são gênios intelectuais, comparáveis a Freud ou 
Einstein. Certamente, as políticas de emancipação, ou políticas 
igualitárias, não foram, até agora, capazes de resolver o problema do 
poder do Estado. Elas tentaram um terror que é no limite inútil. Mas 
isso deveria nos encorajar a tomar a questão onde eles a deixaram, ao 
invés de unir-se ao inimigo capitalista, imperialista. Terceiro, a 
categoria “totalitarismo” é intelectualmente muito fraca. Há, do lado do
 comunismo, um desejo universal pela emancipação, enquanto que do lado 
do fascismo, há um desejo nacional e racial. Esses são dois projetos 
radicalmente opostos. A guerra entre os dois tem sido realmente entre a 
guerra entre ideia da política universal e a ideia da dominação racial. 
Quarto, o uso do terror em circunstâncias revolucionárias ou de guerra 
civil não significa de forma alguma que os líderes e os militantes estão
 insanos ou que eles expressam a possibilidade do mal interior. O terror
 é uma ferramenta política que tem sido usada desde quando as sociedades
 humanas têm existido. Ele deveria dessa forma ser julgado como uma 
ferramenta política, e não submetida a um julgamento moral 
infantilizado. Deveria ser adicionado que existem diferentes tipos de 
terror. Nossos países liberais sabem como usá-lo perfeitamente. O 
colossal exército americano exerce chantagem terrorista em uma escala 
global, e prisões e execuções exercem uma chantagem interior não menos 
violenta. Quinto, a única teoria coerente sobre o sujeito (minha, eu 
devo adicionar, um gracejo!) não reconhece nisso nenhuma disposição 
particular para o mal. Até a pulsão de morte de Freud não é 
particularmente vinculada ao mal. A pulsão de morte é um componente 
necessário de sublimação e criação, assim como o é para o assassinato e 
suicídio. Quanto ao amor pelo Outro, ou, pior, o “reconhecimento do 
Outro”, isso não é nada além de confeites cristãos. Nunca há “o Outro” 
enquanto tal. Existem projetos de pensamentos, ou de ações, na base da 
qual nós distinguimos entre aqueles que são amigos, aqueles que são 
inimigos, e aqueles que podem ser considerados neutros. A questão de 
saber como tratar inimigos ou neutros depende inteiramente do projeto 
concernido, o pensamento que o constitui, e as circunstâncias concretas 
(O projeto está em uma fase ascendente? Ele é perigoso? etc.).
Dado o que você disse, alguém pode 
esperar que você vire a mesa ao afirmar que, ao contrário da visão 
predominante, o capitalismo liberal é o “mal” em si. Mas você não faz 
isso. Ao invés, você oferece uma teoria alternativa sobre o mal. 
Se fosse para eu virar a mesa, como você 
sugere, eu deixaria tudo no lugar. Dizer que o capitalismo liberal é mal
 não mudaria nada. Eu ainda estaria subordinando a política à moralidade
 humanista e cristã: Eu diria: “Vamos lutar contra o mal.” Mas eu já 
tive o bastante de “lutar contra”, de “desconstrução”, de “insuperável”,
 de “colocar um fim em”, etc. Minha filosofia deseja afirmação. Eu quero
 lutar por; eu quero saber o que eu tenho para o bem e colocar isso para
 trabalhar. E me recuso a me contentar com o “menos mal”. Está muito na 
moda agora ser modesto, não pensar grande. A grandeza é considerada um 
mal metafísico. Eu, eu sou pela grandeza, eu sou pelo heroísmo. Eu sou 
pela afirmação do pensamento e da ação.
Certamente, é necessário propor outra 
teoria sobre o mal. Mas isso é dizer, essencialmente, outra teoria sobre
 o bem. O mal poderia comprometer a questão sobre o bem. Desistir é 
sempre mal. Desistir das políticas de liberação, renunciar à um amor 
apaixonado, renunciar à uma criação artística… O mal é o momento em que 
me falta a força de ser verdadeiro ao bem que me compele.
A verdadeira questão subjacente à questão
 sobre o mal é a seguinte: O que é o bem? Toda a minha filosofia luta 
para responder a essa questão. Por razões complexas, eu chamei o bem de 
“verdades” (no plural). Uma verdade é um processo concreto que se inicia
 por uma agitação (um encontro, uma revolta generalizada, uma nova 
invenção surpreendente), e se desenvolve com fidelidade à novidade então
 experimentada. Uma verdade é o desenvolvimento subjetivo sobre o que é 
de uma só vez ambos novo e universal. Novo: aquilo que é jamais visto 
pela ordem da criação. Universal: aquilo que pode interessar, 
perfeitamente, a cada indivíduo humano, de acordo com sua pura 
humanidade (que eu chamo sua humanidade genérica). Se tornar um sujeito 
(e não permanecer um simples animal humano), é participar no surgimento 
de uma novidade universal. Isso requer esforço, persistência, as vezes 
auto-privação. Eu digo frequentemente que é necessário ser “ativista” da
 verdade. Existe mal sempre que o egoísmo leva à renúncia da verdade. 
Então, o indivíduo é dessujeitivizado. Interesses próprios egoístas têm 
mão única, arriscando a interrupção de todo o progresso de uma verdade 
(e portanto do bem).
Alguém pode, assim, definir o mal em uma 
frase: o mal é a interrupção da verdade pela pressão de interesses 
particulares ou individuais. Mesmo o caso que você citou acima — a 
mulher que afogou suas cinco crianças — se origina dessa visão das 
coisas. O debate que você levanta é absurdo: Obviamente, todo mundo é 
“capaz” de tudo. Já se viu em toda parte pessoas boas se tornando 
torturadores, ou cidadãos pacíficos atacando brutalmente pessoas por 
coisas insignificantes. Essa consideração tem nenhum interesse. Ela 
somente nos lembra que as espécies humanas são uma espécie animal, 
governada pelos interesses mais baixos, cujo lucro capitalista é 
meramente a formalização legal. Tudo isso é falta de bem e mal, não é 
nada mais que o governo dos impulsos. A questão sobre o mal se inicia 
quando alguém pode dizer de qual bem se está falando. Estou convencido 
que o assassinato de cinco crianças está realmente relacionado a uma 
renúncia brutal do bem, na forma de um processo amoroso. Em todo caso, 
esse é o único caso em que se faz qualquer sentido falar sobre o mal. O 
mito que pensa isso é Medeia. Ela também matou suas crianças. E isso não
 é mal, no sentido trágico do termo, por que esse assassinato é 
inteiramente dependente de seu amor por Jason.
Na sua visão, então, o domínio animal
 humano está simplesmente abaixo do bem e do mal (de forma que atos de 
tortura, por exemplo, não são propriamente “maus”)? Um indivíduo não tem
 a obrigação moral de se tornar sujeito (ao invés de permanecer um 
animal humano)? E, portanto, a falha em se tornar sujeito não é uma 
falha moral?
A questão realmente combina duas 
concepções comuns de moralidade (e portanto da distinção entre o bem e o
 mal): a concepção “natural”, derivada de Rousseau, e a concepção 
“formal”, derivada de Kant:
- Existe uma moralidade “natural”, coisas que são obviamente más na opinião de qualquer consciência humana. Consequentemente, o mal existe para o animal humano. O exemplo dado é o da tortura.
 
- Existe uma moralidade “formal”, uma obrigação universal que está acima de qualquer situação particular. E, dessa forma, existe um mal universal, que, também, é independente das circunstâncias. O exemplo dado é o da obrigação de se tornar um sujeito, de colocar-se acima do animalismo humano básico. É ruim se recusar a se tornar um sujeito humano por completo, não importa quais os termos específicos dessa transformação.
 
Eu devo, claro, especificar que me oponho
 absolutamente a essas duas concepções. Eu sustento que o estado natural
 do animal humano não tem nada a ver com o bem ou o mal. E sustento que o
 tipo de obrigação moral formal descrito no imperativo categórico de 
Kant não existe realmente.
Pegue o exemplo da tortura. Em uma 
civilização tão sofisticada como o Império Romano, não só a tortura não é
 considerada um mal, como é considerada um espetáculo. Nas arenas, as 
pessoas são devoradas por tigres; elas são queimadas vivas; a audiência 
regozija-se ao ver combatentes cortarem uns aos outros as gargantas. 
Como, então, podemos pensar que a tortura é mal para todo animal humano?
 Não somos o mesmo animal que Sêneca ou Marcus Aurelius? Eu devo 
adicionar que as forças armadas do meu país, a França, com a aprovação 
dos governos do período e da maioria da opinião pública, torturou todos 
os prisioneiros durante a guerra da Argélia. A recusa da tortura é um 
fenômeno histórico e cultural, de forma alguma natural. De uma maneira 
geral, o animal humano conhece a crueldade assim como conhece a pena; 
uma é tão natural como a outra e nenhuma tem nada a ver com o bem ou o 
mal. Pode-se saber de situações cruciais onde a crueldade é necessária e
 útil, e outras situações onde a pena não é nada além de uma forma de 
desprezo pelos outros. Você não irá encontrar nada na estrutura do 
animal humano onde basear o conceito de mal, nem, ademais, o de bem.
Mas a solução formal não é nada melhor. 
Ao contrário, a obrigação de ser um sujeito não tem nenhum significado, 
pela seguinte razão: A possibilidade de se tornar um sujeito não depende
 de nós, mas daquilo que ocorre nas circunstâncias que são sempre 
singulares. A distinção entre bem e mal já pressupõe um sujeito, e 
portanto não se aplicam a ele. É para um sujeito, não para um animal 
humano pré-subjetivizado, que o mal é possível. Por exemplo, se, durante
 a ocupação da França pelos nazistas, eu me junto à resistência, eu me 
torno um sujeito de um momento histórico. Do interior dessa 
subjetivização, eu posso dizer o que é mau (trair meus companheiros, 
colaborar com os nazistas, etc.). Eu também posso decidir o que é bom 
fora das normas habituais. Assim a escritora Marguerite Duras relatou 
como, por razões relacionadas à resistência aos nazistas, participou de 
atos de tortura contra traidores. Toda a distinção entre o bem e o mal 
surge de dentro de um tornar-se-sujeito, e varia com esse tornar-se (que
 eu mesmo chamo de filosofia, o tornar-se de uma verdade).
Resumindo: Não existe uma definição 
natural do mal; o mal é sempre aquilo que, em uma situação particular, 
tende a enfraquecer ou destruir um sujeito. E a concepção de mal é 
portanto inteiramente dependente dos eventos nos quais um sujeito 
constitui a si mesmo. É o sujeito que prescreve o que é o mal, não uma 
ideia natural do mal que define o que um sujeito “moral” é. Também não 
existe um imperativo formal a partir do qual definir o mal, mesmo 
negativamente. De fato, todos os imperativos presumem que o sujeito do 
imperativo já está constituído, e em circunstâncias específicas. E assim
 não pode existir um imperativo para se tornar sujeito, exceto como uma 
declaração absolutamente vazia. É por isso também que não existe nenhuma
 forma geral do mal, porque o mal não existe, exceto como um julgamento,
 feito por um sujeito, em uma situação, e nas consequências de suas 
próprias ações nessa situação. Então o mesmo ato (matar, por exemplo) 
pode ser mal em certo contexto subjetivo, e uma necessidade do bem em 
outro.
Eu devo particularmente insistir que a 
fórmula “respeito pelo Outro” não tem nada a ver com nenhuma definição 
séria de bem e mal. O que “respeito pelo Outro” significa quando se está
 em uma guerra contra um inimigo, quando se é brutalmente deixado por 
uma mulher em função de outra pessoa, quando se precisa julgar o 
trabalho de um “artista” medíocre, quando a ciência é confrontada com 
seitas obscurantistas, etc.? Quase sempre, é o “respeitos pelos Outros” 
que é injuriosa, que é má. Especialmente quando é resistência contra os 
outros, ou até a aversão a outros, que anima uma ação subjetivamente 
justa. E é sempre nesses tipos de circunstâncias (conflitos violentos, 
mudanças brutais, amores apaixonados, criações artísticas) que a questão
 sobre o mal pode ser verdadeiramente perguntada por um sujeito. O mal 
não existe nem como natureza nem como lei. Ele existe, e varia, no ato 
singular tornar-se da verdade.
Em resposta a uma pergunta anterior, 
você destacou que “É necessário reconstruir o direto, tanto na vida 
cotidiana quanto na política, da verdade e do bem”. Você pode falar mais
 sobre como a ética da verdade pode ser mobilizada em termos práticos, e
 como isso pode constituir uma alternativa ao conceito atual de 
“direitos humanos”?
Pegue o exemplo mais próximo: o terrível 
ataque criminoso em Nova Iorque em setembro, com suas milhares de 
vítimas. Se você raciocinar em termos de moralidade dos direitos 
humanos, você diz, com o presidente Bush: “Esses são terroristas 
criminosos. Isso é uma luta do bem contra o mal”. Mas as polícias de 
Bush, na Palestina ou no Iraque por exemplo, são realmente boas? E, 
afirmando que essas pessoas são más, ou que eles não respeitam os 
direitos humanos, nós entendemos alguma coisa sobre a mentalidade 
daqueles que mataram a si mesmos com suas bombas? Não existe muito 
desespero e violência no mundo causadas pelo fato de que políticas das 
potências ocidentais, e do governo Americano em particular, são 
completamente destituídas de ingenuidade e valor? Frente a crimes, 
crimes terríveis, nós devermos pensar e agir de acordo com verdades 
políticas concretas, ao invés de sermos guiados por estereótipos de 
qualquer tipo de moralidade. O mundo todo entende que a verdadeira 
questão é a seguinte: Por que políticas das potências ocidentais, da 
OTAN, da Europa e dos EUA, parecem completamente injustas para dois de 
cada três habitantes do planeta? Por que cinco mil mortes de americanos 
são consideradas uma causa para guerra, enquanto quinhentas mil mortes 
em Ruanda e uma estimativa de dez milhões de mortes pela AIDS na África 
não são, na nossa opinião, merecedoras de indignação. Por que o 
bombardeio de civis nos EUA é mau, enquanto que o bombardeio de Bagdá ou
 Belgrado atualmente, ou de Hanói ou Panamá no passado, é bom? A ética 
das verdades que proponho procede de situações concretas, ao invés de um
 direito abstrato, ou um mal espetacular. O mundo todo entende essas 
situações, e o mundo todo pode agir de modo desinteressado quando 
incitado pela injustiça dessas situações. É fácil enxergar o mal na 
política: É a absoluta desigualdade em respeito à vida, à riqueza, ao 
poder. Bom é a igualdade. Por quanto tempo podemos aceitar o fato de que
 aquilo é preciso para fornecer água corrente, escolas, hospitais, e 
comida suficiente para toda a humanidade é uma soma que corresponde ao 
total gasto pelos países ricos do ocidente em perfume durante um ano? 
Isso não é uma questão sobre direitos humanos ou moralidade. É uma 
questão sobre a batalha fundamental por igualdade para todas as pessoas,
 contra a lei do lucro, seja pessoal ou nacional.
Do mesmo modo, o bem na ação artística é a
 invenção de novas formas que transmitem o significado de mundo. O bem 
na ciência é a audácia do pensamento livre, a alegria do conhecimento 
preciso. Igualmente, o bem no amor é o entendimento sobre o que a 
diferença realmente é, sobre o que é construir um mundo em que se é 
dois, e não um. E o mal, então, são ensaios acadêmicos ou comércio 
“cultural”; é o conhecimento a serviço do lucro capitalista; é a 
sexualidade considerada como uma mera técnica de prazer [jouissance].
 Vou repeti-lo: O mundo todo divide essas experiências. A ética da 
verdade sempre retorna, em circunstâncias precisas, para lutar pela 
verdade contra as quatro formas fundamentais de mal: obscurantismo, 
academicismo comercial, as políticas de lucro e a desigualdade, e a 
barbárie sexual.
Alain Badiou é um dos 
principais filósofos da França. Um estudante do filósofo Marxista Louis 
Althusser, Badiou liderou uma facção Maoista nos anos 1970 e continua a 
trabalhar como um ativista político. Ele é autor de L’Être et l’évenement and Ethics: An Essay on the Understanding of Evil (Verso).
Christoph Cox ensina filosofia, teoria crítica, e música contemporânea na Hampshire College. É um editor colaborador na Cabinet.
Molly Whalen é uma 
estudiosa de Literatura e Cultura do Início da Era Moderna, e Teoria 
Literária e Cultural. Ela vive em Amherst, Massachusetts.
in LavraPalavra (com a devida vénia)
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