Losurdo: Mundo vive luta contra a nova contra-revolução colonial
O
filósofo italiano Domenico Losurdo é, sem sombra de dúvidas, um dos
maiores pensadores marxistas ocidentais vivos. Losurdo se destaca como
um pensador comunista, estudioso de Gramsci e Hegel, polemista em defesa
do legado do movimento comunista na forma do chamado socialismo real. É
um intelectual comprometido com a luta contra o imperialismo, sendo
este o ponto de referência de sua obra. Também escreveu uma extensa
biografia intelectual de Friedrich Nietzsche.
Em visita ao Brasil para lançar seu novo livro, “Guerra e Revolução – O mundo um Século após Outubro de 1917” (disponível na Livraria da Opera),
o professor da Universidade de Urbino, na Itália, se dispôs a conceder
uma entrevista ao editor-chefe da Revista Opera, Pedro Marin, e ao
colunista e ex-correspondente internacional, André Ortega.
O que segue é a íntegra da primeira parte de três da entrevista. Confira aqui a segunda e a terceira parte.
Revista Opera: Bem,
gostaríamos de lhe agradecer por tomar seu tempo para nos conceder esta
entrevista. Gostaríamos também que você começasse falando do livro que
está sendo lançado no Brasil pela Boitempo, “Guerra e Revolução”.
Domenico Losurdo: Esse
livro está sendo lançado não somente no Brasil, e ele é uma
interpretação do século 20. O título em inglês é “War and the Revolution
– Rethinking the Twentieth Century”. Eu só posso dizer algumas coisas
do conteúdo, porque o livro é muito grande [risos]. Mas eu posso dizer
que o conteúdo fundamental do século 20 foi a luta entre o colonialismo e
anticolonialismo. É claro que os partidos anticoloniais eram dirigidos
pelo Partido Comunista, mas nós não podemos entender o conteúdo do
século 20 se não considerarmos esta luta entre o colonialismo e o
anticolonialismo.
Nós vimos, após a Revolução de Outubro, não somente o desenvolvimento da
revolução anticolonial mundial… antes da Revolução de Outubro, todo o
mundo era propriedade de alguns poucos poderes capitalistas e
imperialistas. A África era uma colônia, a Índia era uma colônia, a
China uma semicolônia, Indonésia era uma colônia, a América Latina era
uma semicolônia graças à Doutrina Monroe, e esse mundo foi mudado
radicalmente em consequência da Revolução de Outubro e da revolução
anticolonial mundial, que nasce da Revolução de Outubro.
Mas, eu digo que o conteúdo fundamental é a luta entre o colonialismo e o
anticolonialismo em um sentido mais profundo; se nós considerarmos a
história da União Soviética e da Rússia Soviética, Hitler se esforçou
para executar a realização das “Índias Alemãs” no Leste Europeu, Hitler
disse: “Nós teremos o nosso extremo oeste [far-west, faroeste] alemão no
Leste Europeu”, ou seja, o clássico faroeste norte-americano, onde os
brancos dizimaram os nativos, e onde os que sobreviveram estavam
destinados a se tornarem escravos a serviço da classe de senhores, e
portanto no Leste Europeu os bolcheviques, identificados com os judeus,
estavam destinados a serem exterminados. Esse era o programa de Hitler.
Eu cito frequentemente [Heinrich] Himmler, que era um dos líderes do
Terceiro Reich, e temos as conversas secretas dos nazistas, fechadas ao
público, onde Himmler diz: “Agora que falo somente com nazistas, posso
falar livremente. A Alemanha precisa de escravos” – no sentido literal
da palavra – e diz que eles achariam seus escravos no Leste Europeu e,
particularmente, na União Soviética. Ou seja, a luta da União Soviética
foi até mesmo uma luta contra a tentativa de colonizar e escravizar os
povos da União Soviética.
A essência do Terceiro Reich foi a ambição de desenvolver, radicalizar e
expandir a tradição colonial. Portanto, a falha de Hitler de construir
no Leste Europeu as “Índias Alemãs” foi o começo da libertação das
Índias Inglesas, também. Mais tarde temos a Revolução Chinesa, que
podemos considerar, talvez, a maior revolução anticolonial na história
do mundo. E agora, a conclusão breve; a primeira contra-revolução
colonial, a contra-revolução colonial de Hitler, é derrotada. Agora nós
vemos outra tentativa de desenvolver uma contra-revolução colonial,
imediatamente após a conclusão da Guerra Fria, nós vemos, por exemplo, o
filósofo Carl Popper, que era o filósofo oficial da chamada “Open
Society”, que disse abertamente que o ocidente “cometeu o erro de
libertar esses povos muito cedo”, que os povos coloniais não estavam
maduros o suficiente para serem livres.
E agora o perigo de uma grande guerra é o perigo provocado pela
tentativa, por parte dos Estados Unidos, de bloquear a revolução
anticolonial e de construir uma nova contra-revolução colonial, e o
perigo da guerra, que é EUA contra a China, mas podemos até considerar a
posição da Rússia… Em meus livros, eu insisto em um ponto que é,
talvez, negligenciado: a história da Rússia em geral – não da Rússia
Soviética, mas da Rússia em geral – é, de um lado, que a Rússia era, de
fato, um poder imperialista, expansionista, mas que há só um aspecto da
realidade histórica: por muito tempo a Rússia perigava de se tornar uma
colônia.
Todos sabem da invasão de Hitler, de Napoleão, de
Charles XII, dos mongóis. Por exemplo: se considerarmos o começo do
século 17, em Moscou o poder era exercido pelos poloneses. Imediatamente
após a 1ª Guerra Mundial, ou seja, após a derrota da Rússia Czarista, a
Rússia estava em perigo de ser balcanizada, de se transformar em uma
colônia, e eu cito em muitas vezes Stálin, que disse que para o ocidente
a Rússia era como a África Central, e que o ocidente tentava fazer a
Rússia entrar naquela guerra em nome do capitalismo e imperialismo
ocidental.
Imediatamente após a conclusão da Guerra Fria, que foi um triunfo para o
ocidente e para os EUA, a Rússia estava em perigo de se tornar uma
colônia, porque a massiva privatização da colônia não era só uma traição
contra as classes trabalhadores da União Soviética e da Rússia, mas
também uma traição contra a nação russa, porque a perspectiva era de que
o ocidente queria possuir imensos recursos energéticos no país. Os EUA
estava a ponto de possuir esses recursos energéticos imensos.
Yeltsin foi o “grande campeão” dessa colonização da Rússia pelo
ocidente. Putin, é claro, não é um comunista, mas ele queria evitar essa
colonização e buscou reafirmar o poder russo sobre esses recursos
energéticos. Ou seja, neste contexto, podemos falar de uma luta contra a
nova contra-revolução colonial, podemos falar de uma luta entre os
poderes imperialistas e colonialistas, principalmente os EUA, de um
lado, e de outro lado nós vemos a China, o terceiro mundo. E desse
grande terceiro mundo a Rússia é uma parte integral, porque estava em
perigo de se tornar uma colônia do ocidente. Essa é minha filosofia da
história mundial, a dizer. E eu peço desculpas pelo meu inglês [risos].
Revista Opera: Seu
inglês é perfeito, professor, perfeito. Como dissemos, seria melhor que
nós falássemos italiano ao invés de usar inglês, mas você fala desta
contra-revolução colonial no momento…
Domenico Losurdo: É a segunda, talvez a terceira contra-revolução colonial…
Revista Opera: Como
você descreveria a posição do imperialismo na política global de hoje?
Essa luta contra a contra-revolução colonial é uma luta fundamental,
porque temos até alguns pensadores e acadêmicos de esquerda que se dizem
“pós-colonialistas”, que não dão este tipo de atenção à questão do
imperialismo, porque para eles é algo ultrapassado.
Domenico Losurdo: Primeiro,
podemos citar Lênin, que com uma visão muito clara fez uma distinção
entre o colonialismo clássico e o neocolonialismo. Ele disse, no começo
do século 20, que o colonialismo, no sentido clássico do termo, é a
anexação política, ou seja, que um país ou um povo não tem independência
política, que é não considerado digno para ser independente. Esse é o
colonialismo clássico, com a anexação política de um país ou de um povo
por um poder imperialista, colonialista e capitalista.
No entanto, Lênin disse também que há um outro tipo de anexação, que é a
anexação econômica. E esse é o neocolonialismo. Hoje nós temos um
exemplo do colonialismo clássico, que é a situação da Palestina. Lá
vemos o colonialismo clássico. É claro, vemos Israel expandindo seus
assentamentos, expandindo o território israelense, e vemos que o povo
palestino como os índios no faroeste; eles são expropriados, deportados
e, algumas vezes, mortos. Este é o colonialismo clássico.
Mas existe outra forma de colonialismo; o neocolonialismo. E nestes dias
eu gosto de fazer duas citações; Mao [Tsé Tung], após conquistar o
poder, que disse: “Se nós, os chineses, continuarmos dependentes da
farinha americana para o nosso pão, nós seremos uma semicolônia dos
EUA”, ou seja, a independência política será somente formal, não
substancial. E eu cito outro clássico da revolução anticolonial, Frantz
Fanon, que foi um grande campeão da revolução anticolonial da Argélia, e
que disse algo muito importante: “Quando um poder colonialista e
imperialista é compelido a dar a independência para um povo, este poder
imperialista diz: ‘você quer é a independência? Então tome e morra de
fome.” Porque os imperialistas continuam a ter o poder econômico, podem
condenar o povo à fome, por meio de bloqueios, embargos ou pelo
subdesenvolvimento.
Ou seja, Mao e Fanon são personalidades muito diferentes, mas os dois
entenderam que a revolução anticolonial tem dois estágios; o primeiro, o
estágio da rebelião militar, da revolução militar. O segundo; o
desenvolvimento econômico. A chamada “esquerda” que não entendeu este
segundo estágio não está em condição de entender a revolução
anticolonial. O que vemos agora é o desenvolvimento do terceiro mundo, e
esse desenvolvimento não é só um evento econômico, mas um grande evento
político. A tentativa da China, hoje, de quebrar o monopólio ocidental
da alta tecnologia é a continuação da revolução anticolonial.
E eu acredito, no sentido de que concordo totalmente com você, que essa
esquerda conseguiu entender a revolução anticolonial quando os Estados
Unidos bombardearam o Vietnã, mas não consegue entender a pretensão do
imperialismo de exercer o poder econômico no mundo todo, e essa esquerda
não consegue entender o segundo estágio da revolução anticolonial, que é
feito por meio do desenvolvimento econômico e tecnológico.
Revista Opera: Também
no que se refere ao imperialismo, alguns argumentam que a eleição de
Donald Trump, nos EUA, representa uma virada na natureza do imperialismo
norte-americano. Qual é a sua opinião?
Domenico Losurdo: Uma
certa “esquerda” fala de Trump como uma mudança, mas essa esquerda dá a
impressão de que considera Hillary Clinton uma representante da
esquerda, ou da paz; isso é completamente errado. Hillary Clinton não é
melhor que Trump e, talvez, seja pior. Ou seja, Trump, ao menos nas
palavras, expressa sua intenção de melhorar as relações com a Rússia, e,
no sentindo contrário, Hillary Clinton queria tensionar com a China e
Rússia.
Para entender a profunda divisão na classe dominante e no imperialismo,
talvez devamos seguir uma outra análise. Nos EUA há um debate: os
Estados Unidos estão em condição de lutar, ao mesmo tempo, contra a
Rússia e a China? É melhor para os EUA dividir a frente China-Rússia?
Como podemos dividir essa frente? Talvez possamos – e essa é a posição
de Trump – fazer as pazes com a Rússia para lutar melhor contra a China.
Outros têm a esperança – e talvez a ilusão – de que os EUA poderão realizar uma mudança de regime (regime-change) na
Rússia e, se o fizessem, a China ficaria totalmente isolada. Ou seja,
há estratégias imperialistas diferentes, não se trata de uma diferença
entre “esquerda” e “direita”, ou a guerra, Trump, e a paz, Hillary. Isso
é totalmente ridículo – Hillary Clinton é a pessoa que fez guerras
cruéis nos EUA. Por exemplo, contra a Líbia, ela se disse muito feliz
pela morte de Kaddafi, apesar do fato de que sua morte foi contra os
direitos humanos, foi uma tortura terrível. Mas eu acredito que Hillary
Clinton talvez seja a pior.
De qualquer forma, não podemos ter nenhuma ilusão no que se refere ao
imperialismo americano, nós temos diferenças, mesmo grandes diferenças,
em relação à estratégia, mas infelizmente até o momento eu não vejo um
grande movimento pela paz nos EUA. Uma pequena demonstração: Trump tem
sido criticado por tudo, tem sido criticado e condenado por sua
tentativa de melhorar as relações com a Rússia, mas ninguém o criticou
ou condenou pelo grande aumento no orçamento militar. Ou seja, eu
acredito que, infelizmente, neste momento, o imperialismo
norte-americano tem um grande consenso.
Opera Revista Independente
http://revistaopera.com.br/2017/03/31/losurdo-mundo-vive-luta-contra-nova-contra-revolucao-colonial-parte-13/
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