Recomeçar com Marx
Por Ivo Tonet.
Nosso objetivo, nesse texto, é fazer uma
rápida aproximação à questão da reconstrução da teoria marxiana,
buscando mostrar porque o caminho da ontologia do ser social é mais
produtivo para essa empreitada.
Para a maioria dos intelectuais, Marx não
passa, hoje, de um “cachorro morto” que qualquer um pode chutar à
vontade. Não por acaso, esses intelectuais também abriram mão, se alguma
vez a tiveram, de qualquer perspectiva revolucionária em relação à
atual ordem social.
Contudo, para aqueles que entendem que o
capitalismo não só não resolve como agrava cada vez mais os problemas da
humanidade e, portanto, deve ser superado, a reconstrução da teoria
revolucionária é uma das tarefas mais importantes neste momento. E, no
seu interior, o resgate do pensamento marxiano ocupa um lugar
centralíssimo. Ambas as tarefas têm uma enorme urgência e importância,
dado o extravio e a confusão em que se vê enredada a luta
anticapitalista na atualidade. Pretendemos, aqui, restringir-nos apenas à
problemática do marxismo.
A primeira questão, pois, que se coloca
é: qual o sentido deste resgate? Para alguns trata-se apenas de
defendê-lo dos ataques dos seus adversários e de corrigir eventuais
deformações historicamente situadas. Para outros, levando em
consideração as enormes mudanças que o mundo sofreu desde o surgimento
do marxismo até hoje, trata-se de buscar estabelecer “o que é vivo e o
que é morto” nele, atualizando-o face aos problemas do mundo atual. Para
isto, há quem advogue a necessidade de entrecruzá-lo com outras
correntes atuais, o que permitiria evitar todo dogmatismo e sectarismo e
traria mais produtividade ao próprio marxismo.
Não nos parece que estes sejam os
melhores caminhos para essa reconstrução. A nosso ver, quase nenhuma das
interpretações conseguiu captar ou restituir ao ideário marxiano aquele
caráter radicalmente crítico e revolucionário que é sua característica
mais essencial. Independente do quantum realizado e dos erros e acertos,
acreditamos que a vertente chamada de ontologia do ser social, cujo
expoente maior é G. Lukács, é a que melhor contribuiu para isso.
Gostaríamos de observar, no entanto, que não se trata de menosprezar
contribuições importantes trazidas por outras interpretações, mas apenas
de acentuar a decisiva importância que a impostação lukacsiana tem para
a restauração dos fundamentos da concepção marxiana.
György Lukács
Nesta perspectiva, não se trata só de
correções nem apenas de atualizações, e muito menos de entrecruzamentos
com outras correntes de pensamento. Considerando as variadas
interpretações, extravios e deformações que este pensamento sofreu ao
logo da sua trajetória, como resultado de todo um processo histórico,
impõe-se a necessidade de recomeçar ab initio.
Sabe-se que o pensamento marxiano se
configurou com uma clara perspectiva crítica e revolucionária, ou seja,
de compreensão do mundo até a raiz e de superação radical da ordem
burguesa. E foi precisamente este caráter radicalmente crítico e
revolucionário que ele foi perdendo ao longo da sua trajetória. Entre as
inúmeras deformações que ele sofreu está a redução desta radicalidade a
mera crítica teórica ou a crítica política, quando a questão é muito
mais ampla e profunda. Ser radical, como o próprio Marx diz, é ir à
raiz. Ora, continua ele, a raiz do homem é o próprio homem. Trata-se,
pois, a nosso ver, de retornar a Marx, não para encontrar o “verdadeiro
Marx” — tarefa impossível e sem sentido — mas, para buscar nele os
fundamentos (a raiz) de uma compreensão radical — e porque radical,
revolucionária — do mundo dos homens.
Defendemos a idéia — aparentemente
absurda diante da situação em que se encontra hoje o marxismo — de que
Marx realizou uma revolução teórica similar, mutatis mutandis, àquela
realizada pelos pensadores modernos dos séculos XVII e XVIII; de que
Marx lançou os fundamentos de uma concepção radicalmente nova de mundo e
de que por isso ele representa o patamar de conhecimento mais elevado
que a humanidade produziu até hoje. Fundamentos estes que não têm sua
validade limitada a determinado campo específico, mas que permitem
abordar qualquer fenômeno social com possibilidades superiores a
quaisquer outros instrumentais teóricos.
Para que não pairem dúvidas sobre o
sentido de uma afirmação tão contundente e ousada — especialmente em um
momento em que tudo parece demonstrar o contrário — esclarecemos que ela
se refere apenas aos fundamentos e de modo nenhum ao que Marx realizou a
partir deles. Quanto ele mesmo realizou em termos de conhecimento da
realidade social, quais os seus acertos e erros, o que tem ou não
validade para o mundo de hoje, são questões importantes, mas de outro
tipo. Também queremos deixar claro que não se trata de diminuir ou
menosprezar as contribuições — muitas vezes geniais — de outros autores.
O próprio Marx tinha consciência de que ele só pode fazer o que fez
porque subiu nos ombros de outros gigantes. O sentido preciso da nossa
afirmação é este: Marx lançou os fundamentos de uma concepção
radicalmente nova e superior de mundo e, portanto, de fazer ciência e
filosofia. E — ponto decisivo — desta própria compreensão decorre a
possibilidade e a necessidade de uma transformação radical do mundo.
Vale dizer: o fundamento da luta revolucionária está, primeiramente, na
ontologia e só depois na ética e na política. Vale, então, afirmar que
qualquer empreitada que pretenda restituir ao marxismo seu caráter
radicalmente crítico e revolucionário tem que repor nesse pensamento a
capacidade de compreender a origem, a natureza e as determinações
essenciais do processo de tornar-se homem do homem. Compreensão esta que
deve permitir explicar como os homens (e só eles) fazem a história, por
que a fizeram deste modo e como poderão prosseguir, superando a atual
forma de sociabilidade.
Como, então, fazer emergir este caráter
radicalmente crítico e revolucionário do pensamento marxiano? O que é
que lhe confere este caráter?
Entendemos que a resposta a essas
questões só pode ser obtida se observarmos três princípios metodológicos
fundamentais: buscar a gênese histórico-ontológica, a natureza
específica e a função social desse pensamento. Cremos que a observação
destes três princípios nos permitirá apreender o pensamento marxiano
como a concepção de mundo e o patamar de conhecimento mais elevado que a
humanidade atingiu até hoje e, por conseqüência, o melhor instrumento
teórico para orientar a transformação radical do mundo.
O argumento histórico
Parece não haver dúvida de que, na
passagem do feudalismo ao capitalismo, houve também uma revolução
teórica. E que os pensadores burgueses, expressando uma nova e emergente
forma de sociabilidade, liderada pela burguesia, realizaram a crítica
do modo greco-medieval de pensar (centrado no ser, metafisicamente
entendido) e lançaram as bases de uma nova forma de fazer ciência e
filosofia (centrado no conhecer, abstratamente concebido). Afinal, toda
classe que pretende alcançar o poder é obrigada a fazer a crítica do
modo de pensar das classes que combate e estabelecer fundamentos para um
conhecimento e uma ação adequados aos seus objetivos.
Ora, assim como a burguesia, por sua
natureza, põe os fundamentos de uma forma de sociabilidade regida pelo
capital, a classe trabalhadora tem o mesmo estatuto em relação a uma
forma de sociabilidade para além do capital. Deste modo, a classe
trabalhadora, por sua natureza (historicamente configurada), também põe
as bases para o surgimento de uma compreensão do mundo mais ampla, mais
profunda e mais radical. É a própria natureza da classe trabalhadora que
exige a transformação radical do mundo, a superação, pela raiz, da
forma da sociabilidade regida pelo capital. Mas, para que essa
transformação não fosse apenas um desejo, uma utopia, seria preciso uma
fundamentação sólida, uma demonstração rigorosa da radical historicidade
e socialidade do mundo dos homens. Vale dizer, seria preciso elevar ao
nível da consciência, dar forma teórica àquelas possibilidades
existentes na realidade social burguesa; demonstrar que a realidade
social é obra exclusiva — ainda que não absoluta — dos próprios homens.
E, para isso, seria preciso alterar radicalmente o ponto de partida.
Como o próprio Marx diz: em vez de partir do céu para a terra, ou seja,
de dogmas ou especulações arbitrárias, frutos da consciência, seria
preciso partir da terra para o céu, vale dizer, do real, do efetivamente
existente, do empiricamente verificável.
O argumento teórico
Como Marx faz isso? Tomando como ponto de
partida a realidade (social) efetivamente existente, ele resgata a
centralidade da objetividade (característica da perspectiva
greco-medieval), — daí o caráter ontológico do seu pensamento —
subordinando a esta a resolução de todas as questões relativas ao
conhecimento. Demonstra, porém, que esta objetividade é radicalmente histórica
e social. Nesta empreitada, três categorias são fundamentais: as
categorias da essência/fenômeno, da práxis e da totalidade. Por um lado,
ao historicizar a primeira e ao demonstrar a sua relação com o
fenômeno, ele resolve os problemas da relação entre unidade e
diversidade e entre permanência mudança no ser social. Por outro lado,
ao demonstrar como a realidade social é sempre o resultado da
determinação recíproca entre subjetividade e objetividade (teleologia e
causalidade), porém sob a regência da segunda, e como a práxis é a
categoria mediadora entre estes dois momentos, ele pode integrar
harmonicamente aquelas duas categorias, superando, ao mesmo tempo, o
idealismo e o materialismo mecanicista. E, por fim, ao apreender o modo
como as diversas categorias vão surgindo, a partir do trabalho e ao
longo do processo histórico-social, a categoria da totalidade emerge
como a peça-chave do edifício real e teórico.
Com isso, ele supera tanto a
unilateralidade da perspectiva greco-medieval (centrada no ser, mas
metafisicamente concebido), como a unilateralidade da perspectiva
moderna (centrada no conhecer, mas abstratamente entendido).
É no trabalho, portanto, ponto de partida
“empiricamente verificável”, (“os indivíduos reais, sua ação e suas
condições materiais de vida…”), que ele encontra a raiz, o fundamento
ontológico-primário do ser social. A análise deste ato fundante
permite-lhe demonstrar a radical historicidade e socialidade do mundo
dos homens bem como a natureza específica deste mundo. É também a
análise do trabalho que lhe permite mostrar como surgem, com natureza e
funções específicas, todas as outras dimensões sociais, garantindo,
deste modo, tanto o matrizamento ontológico quanto a autonomia relativa.
Como resultado, o ser social emerge como uma totalidade articulada em
processo, sem jamais perder essa característica, não importa quanta
fragmentação possa resultar do andamento concreto da história.
Com isto, velhos problemas, como a
questão da origem ontológica do homem e da natureza própria do mundo
social; da relação entre espírito e matéria, consciência e realidade
objetiva, ação e estrutura, unidade e diversidade, mudança e
permanência, liberdade e necessidade, indivíduo e sociedade, sujeito e
objeto, teoria e prática, ciência a ideologia, etc. têm sua resolução
encaminhada sob uma ótica profundamente diferente e mais apropriada.
Do mesmo modo, com esta impostação podem
ser facilmente refutadas quaisquer acusações de determinismo,
economicismo, dogmatismo, menosprezo do indivíduo, metafísica,
messianismo e tantas outras que resultam de leituras não ontológicas
deste pensamento.
Vale frisar: com isto não estão
resolvidos todos os problemas. Estão apenas (e isto é muitíssimo
importante) lançados os fundamentos, está aberto um patamar para a
abordagem de qualquer fenômeno social e para impulsionar a
compreensão, o mais profunda hoje possível, da realidade social. Parece
evidente que não vai nisto nenhum dogmatismo, pois estes fundamentos —
eles mesmos sempre necessitados de crítica e aprofundamento — não
garantem a correção e a superioridade do conhecimento produzido a partir
deles, apenas as tornam possíveis.
Infelizmente, nem a versão dominante do
marxismo — o marxismo da II Internacional e o chamado marxismo-leninismo
— nem a maioria das outras interpretações compreenderam essa revolução
filosófico-científica radical operada por Marx. As conseqüências
negativas desta incompreensão foram enormes para a luta contra o
capital. Impossível, sequer, mencioná-las, aqui. Mas, em síntese,
tornaram o marxismo incapaz de enfrentar a ideologia burguesa e
contribuíram poderosamente para extraviar a consciência dos que
pretendem lutar contra o capital. Daí a necessidade premente de
recomeçar com Marx, a partir dos fundamentos, na perspectiva ontológica
indicada por Lukács, para resgatar o caráter radicalmente crítico e
revolucionário do seu pensamento e, com isto, impulsionar a reconstrução
da teoria revolucionária.
Leituras sugeridas
Karl Marx, Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo, Boitempo, 2004.
Karl Marx, Crítica da filosofia do Direito de Hegel. “Introdução”. São Paulo, Boitempo, 2005.
Karl Marx, A miséria da filosofia. São Paulo, Boitempo, 2017 (no prelo).
Karl Marx e Friedrich Engels, A sagrada família, São Paulo, Boitempo, 2005.
Karl Marx, O capital: crítica da economia política. São Paulo, Boitempo, 2013.
Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã. São Paulo, Boitempo, 2007.
Friedrich Engels. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã.
György Lukács, Ontologia do ser social. São Paulo, Boitempo, 2013
György Lukács, “O que é marxismo ortodoxo?” In: História e consciência de classe. São Paulo, Martins Fontes, 2003
José Chasin, “Método dialético” (mimeo)
José Chasin, “A superação do liberalismo” (mimeo)
José Chasin, Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo, Boitempo, 2009
Sérgio Lessa, “Ontologia e historicidade”. In: sergilessa.com
Sérgio Lessa, Mundo dos homens: trabalho e ser social. São Paulo, Boitempo, 2002/Instituto Lukács, 2012.
José Paulo Netto, “Razão, ontologia e práxis”. Em: Serviço Social e Sociedade, n. 44
Ivo Tonet, Método científico: uma abordagem ontológica. São Paulo, Coletivo Veredas, 2016
***
Ivo Tonet é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas. É um dos autores da coletânea György Lukács e a emancipação humana, organizada por Marcos Del Roio. Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
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