Não
restam hoje dúvidas de que a estrutura mercenária do Daesh funciona
como um corpo clandestino do Pentágono, da própria NATO, no quadro da
privatização crescente das operações militares nos campos de batalha.
Comboio
de veículos e combatentes do chamado Estado Islâmico do Iraque e da
Síria (Daesh), em rota na província de Anbar, Iraque. The Washington
Times, 10/09/2014.CréditosNão creditado / AP
Derrotado,
mas não liquidado. O Estado Islâmico ou Daesh, por certo a organização
criminosa de maior envergadura montada sob a fachada do «extremismo
islâmico» para servir nas guerras de agressão e expansão lançadas este
século, capitulou às mãos dos exércitos iraquiano e sírio, reforçados
com o apoio de forças militares russas chamadas pelo governo legítimo de
Damasco. Não, a chamada «coligação internacional anti-Daesh», comandada
pelo Pentágono, nada teve a ver com o desfecho, antes pelo contrário,
exceptuando o caso da sangrenta reconquista da cidade de Mossul, no
Iraque.
Tornado ineficaz em termos de consolidação dos objectivos
que originalmente lhe foram estabelecidos, designadamente o
desmembramento do Iraque e da Síria e a remodelação das fronteiras
estabelecidas no primeiro quartel do século XX naquela região do Médio
Oriente, o Daesh está a ser reciclado para novas funções, definidas de
acordo com os interesses transnacionais e globais de quem mais se tem
servido dele, em primeiro lugar o Pentágono e a NATO.
Do
«Califado» instaurado durante o ano de 2014 em territórios sírios e do
Iraque, com centros nevrálgicos em Raqqa, Deir ez-Zor, Bukamal e Mossul,
já nada resta para aquartelar os seus efectivos monstruosos: 240 mil
mercenários com mil e uma origens, congregados sob as bandeiras do
Estado Islâmico no Iraque e no Levante (Daesh na sigla árabe). Entre
esses, é bastante provável que os membros do contingente de 80 mil
antigos soldados do exército de Saddam Hussein recrutados pelas forças
norte-americanas de ocupação do Iraque, no âmbito da estratégia para
criação de um «Sunistão» que concretizasse a divisão dos territórios do
Iraque e da Síria, regressem às suas regiões de origem.
«Reciclar»: quem, onde, como
Mas
restam dois terços dos terroristas para «reciclar». Começam, porém, a
conhecer-se alguns dos seus destinos. Chefes do Daesh estão a ser
«amnistiados» pela Unidade de Protecção do Povo (YPG), uma organização
curda actuando no Norte da Síria sob enquadramento do Pentágono, como
via para integrar unidades de jihadistas nas «forças de segurança» das
novas «fronteiras» regionais. Como a administração Trump vetou a criação
desse corpo – no quadro da discordância entre a França e os Estados
Unidos sobre a essência do projecto «Rojava» – os terroristas derrotados
aguardam ainda a definição das novas funções, acampados à saída da base
de Kasham, recinto militar ao serviço da ocupação norte-americana. É
nesta espécie de limbo que os mercenários do Daesh transitam da condição
de extremistas islâmicos ao serviço da jihad para gendarmes de causas
que se afirmam laicas e são também atlantistas.
A reciclagem de
outros efectivos do Daesh compete à ditadura de Erdogan na Turquia. Os
mercenários estão a ser reintegrados no «Exército Livre da Síria»,
entidade fundada por potências da NATO no início da agressão ao povo e
ao território sírio, em 2012, segundo a fábula de que se destinava a
acolher os desertores do Exército Nacional, colocando-os ao serviço da
«oposição». Na verdade encheu-se de jovens recrutados em todo o mundo
árabe e também nos subúrbios de grandes cidades europeias; e que,
enquadrados agora pelo exército de Ancara, combatem na região síria de
Afrin contra os curdos da YPG e, por extensão, contra muitos mercenários
que, até há dias, eram seus correligionários debaixo das bandeiras do
Daesh. Destapando assim, por outro lado, um estranho cenário de
confronto directo entre dois membros da NATO.
Outros mercenários
do derrotado Estado Islâmico estão a ser transferidos para países como o
Afeganistão, a Índia, o Bangladesh e Myanmar. As operações de resgate
na Síria são efectuadas por aviões da Força Aérea norte-americana, que
os transportam numa primeira etapa para o Afeganistão, de acordo com
informações transmitidas pelo Irão à Rússia.
Já é possível
conhecer funções que lhes serão distribuídas na Índia, uma vez
integrados nas milícias hindus do partido nacionalista BJP do
primeiro-ministro Narendra Modi, as mesmas que assassinaram o Mahatma
Gandhi. Terroristas que ainda há dias fuzilavam e decapitavam em massa
ao serviço da jihad ou «guerra santa» islâmica vão agora combater os
rebeldes muçulmanos de Cachemira.
No Afeganistão, admite-se que
alguns dos «desmobilizados» do Daesh integrem as operações de tráfico de
ópio e heroína que o ex-presidente Hamid Karzai, um dos barões de tão
rentável negócio monopolista à escala mundial, transferiu das máfias
kosovares para o Estado Islâmico e suas redes europeias e africanas.
Como
se percebe, esta reciclagem diversificada abre novos ciclos, sem fechar
os objectivos que os criadores e mentores do Daesh definiram para o
ciclo anterior. A partilha do Iraque não está consumada, embora o
Curdistão se considere independente – porém não reconhecido
internacionalmente. E o governo legítimo da Síria continua em funções,
embora parcelas do território estejam ocupadas por extensões da NATO,
com base até em limpezas étnicas – como aconteceu no Norte, onde as
vítimas foram comunidades cristãs e árabes expulsas à força para deixar
espaço aos curdos da YPG.
Por outro lado, estes acontecimentos
permitem conhecer melhor os episódios soltos que escrevem a história
sangrenta do Daesh, de maneira a compor o sinistro quebra-cabeças desta
operação terrorista que está na origem de uma carnificina próxima de um
milhão de mortos.
A verdade sobre a origem do Daesh
Corria
o ano de 2006. Três anos depois da invasão do Iraque, a Casa Branca e o
Pentágono desesperavam perante a mobilização dos iraquianos contra a
ocupação, apesar do colaboracionismo dos mais altos dirigentes,
confinados ao quarteirão do poder em Bagdade definido pela chamada Linha
Verde.
John Negroponte, embaixador norte-americano em Bagdade,
depois director nacional de espionagem e um especialista em operações
subversivas clandestinas, decidiu então traçar uma estratégia para minar
a resistência iraquiana. É muito rico o currículo do experiente
embaixador, espião e conspirador Negroponte: por exemplo, assassínios
selectivos no Vietname (Operação Phoenix da CIA); organização da guerra
civil em El Salvador; montagem da operação Irão-Contras para tentar
reverter a Revolução Sandinista na Nicarágua; liquidação da revolução de
Chiapas no México.
Financiada e treinadapeloPentágono, a organizaçãoterroristasunitaassimcriada, enquadradapelapolícia especial («Brigada dos Lobos»), foi baptizadacomoExércitoIslâmico no Iraque e ficounominalmente a ser dirigida por Abu BakrAl-Baghdadi, maistarde o «califa» do Daesh, até que as armasrussaspuseramtermo aos seusdias em territóriosírio.
Em termos gerais, John Negroponte recorreu ao princípio básico de
dividir para reinar, lançando sunitas contra xiitas e espalhando o
terror entre as populações civis. No campo sunita, baseou-se na
estrutura da Al-Qaida no Iraque para formar uma coligação tribal
islamita. Requisitou os serviços do coronel James Steele, que colaborara
com ele em El Salvador, e este recrutou os futuros dirigentes do grupo
no campo de concentração de Bucca; organizou depois a sua formação na
tristemente célebre prisão de Abu Ghraib, onde foram submetidos a
métodos de lavagem cerebral elaborados pelos professores Albert Biderman
e Martin Seligman, também usados em Guantánamo. A preparação dos chefes
terroristas em métodos de tortura seguiu, por sua vez, os cânones
experimentados na polícia política da Formosa, onde Steele leccionou, e
na Escola das Américas, instrumento de elite para instrução dos
aparelhos repressivos das ditaduras fascistas latino-americanas.
Com
a chegada do general David Petraeus ao Iraque para chefiar a ocupação
norte-americana, a nova milícia tornou-se uma unidade do regime. O
coronel John Coffman foi agregado ao trabalho de Steele, respondendo
directamente perante Petraeus; e o diplomata Brett McGurk ficou
destacado para assegurar a ligação permanente do próprio presidente
George W. Bush ao processo. Apenas dois anos depois de ter participado,
com elevadas responsabilidades, na criação e condução do Estado Islâmico
no Iraque o diplomata Brett McGurk foi designado como enviado especial
do presidente Obama para supervisionar a chamada «coligação anti-Daesh».
O
grupo extremista que deu corpo à ideia de Negroponte cumpriu a sua
missão na guerra civil e foi muito aplicado na estratégia – ainda que
falhada - de criação do «Sunistão» que partiria o Iraque em três zonas,
juntamente com a curda e a xiita.
Rua de Aleppo, Síria.CréditosHosan Katan/Reuters /
Em Abril de 2013, quase um ano depois de as principais potências da NATO e as petroditaduras do Golfo terem lançado a «Operação Vulcão em Damasco e Sismo na Síria» para desmantelar este país, já o EstadoIslâmico no Iraque estava presente em operações de desestabilização desenvolvidas em territóriosírio; por isso, ampliou a sua designação para «e no Levante» (completando a sigla
Daesh). No mês seguinte, guiado por uma associação sionista
norte-americana, a Syrian Emergence Task Force, o senador direitista
John McCain, um dos principais conselheiros de Obama para o Médio Oriente, avistou-se clandestinamente com dirigentes do terrorismo islâmico no interior da Síria. Entre os presentes, como
pode testemunhar-se em fotos postas a circular pelos serviços de
comunicação do senador, encontrava-se Abu Bakr Al-Baghdadi, o chefe do
Daesh em pessoa. Para que, no entanto, não ficassem dúvidas, o senador
McCain declarou a uma televisão do seu país que conhece pessoalmente os
dirigentes do Daesh e está «em contacto permanente com eles».
Maio
de 2013. Encontro de John McCain com terroristas, em teritório sírio
ocupado por estes. À esquerda Ibrahim al-Badri, com quem o senador
americano dialoga. Ibrahim al-Badri, mais conhecido por Abu Bakr
al-Baghdadi, criou e dirigiu o chamado «Estado Islâmico».
Fonte:SenegalPress
Nessa
ocasião já os Estados Unidos faziam constar, entre alguns parceiros de
guerra, a intenção de montarem um dispositivo terrorista de grande
envergadura para reforçar as intervenções no Iraque e na Síria. Estava
em curso, entretanto, uma acção de transferência para a Turquia, com
destino à Síria, de mercenários islâmicos que tinham actuado sob o
comando da NATO na operação de destruição da Líbia. Em 18 de Fevereiro
de 2014, a conselheira nacional de segurança dos Estados Unidos, Susan
Rice, convocou os chefes dos serviços secretos da Arábia Saudita, da
Turquia, do Qatar e da Jordânia para Amã, onde lhes comunicou a
reestruturação do «Exército Livre da Síria» e, nesse âmbito, a montagem,
com supervisão saudita, de uma vasta operação secreta para remodelar as
fronteiras regionais.
Estado Islâmico, versão actualizada
Entrou
assim em funções a versão actualizada do Estado Islâmico no Iraque e no
Levante, o Daesh. Abdelakim Belhadj, chefe terrorista líbio que a NATO
escolhera como governador militar de Tripoli e a Interpol identificou
como chefe do Estado Islâmico no Magreb, foi então enviado a Paris onde,
recebido no Ministério dos Negócios Estrangeiros, aconselhou a França a
transferir para o Daesh o apoio prestado à Al-Qaida – que o ministro
Laurent Fabius considerava estar a fazer «um bom trabalho». Três campos
de treino de jihadistas foram montados pelo Pentágono e pela NATO na
Turquia, prontos a receber mercenários de todo o mundo com destino ao
Daesh: em Sanliurfa, Osmanyie e Karaman.
Dotado com uma enorme
frota de veículos todo-o-terreno da marca Toyota novinhos em folha,
equipado com armamento avançado que os Estados Unidos forneciam usando o
Exército do Iraque como falso destino, beneficiando de um sistema de
túneis e bunkers atempadamente criado pela Lafarge, maior empresa
mundial de construção civil, o Daesh avançou pelo Iraque com uma
dinâmica que parecia imparável. Através de uma cavalgada na qual se
sucederam os fuzilamentos em massa de populações civis, instaurando um
terror bárbaro por onde passavam e onde se instalavam, os mercenários
«islamitas» tomaram aeroportos, instalações petrolíferas, chegaram a
poucas dezenas de quilómetros de Bagdade e, sem mais demoras, criaram um
«Califado» em território conquistado dos dois lados da fronteira entre a
Síria e o Iraque, cortando o movimento na estrada internacional
Beirute-Damasco-Bagdade-Teerão. Tudo isto num ápice, em poucas semanas.
O
contrabando de petróleo tornou-se uma das maiores fontes de
financiamento do Daesh, com escoamento garantido por embarcações
fretadas pela família Erdogan ou por milhares de camiões cisterna da
empresa Powertrans, que tinha como proprietário remoto o próprio genro
do ditador turco. Refinado pela Turkish Petroleum Refineries, o petróleo
que sustentava a actividade terrorista saía através dos portos turcos
para a Europa, destino que tinha também grande parte do produto «lavado»
em Israel através da atribuição de falsos certificados de origem. Jana
Hybaskova, representante da União Europeia em Bagdade, explicou este
processo no Parlamento Europeu, pelo que os Estados membros não podem
alegar desconhecimento da possibilidade de estarem a financiar
indirectamente o terrorismo.
Pressionado pelas imagens aterradoras
das decapitações de cidadãos ocidentais que o Daesh distribuía através
do seu sistema de comunicação, em cuja génese estiveram peritos do MI6,
serviço de espionagem britânico, Barack Obama viu-se forçado a lançar
uma «coligação anti-Daesh».
Os efeitos dessa decisão na estrutura
terrorista, porém, foram escassos. O mesmo não poderá dizer-se das
centenas de vítimas civis sírias provocadas pelos bombardeamentos da
«coligação» e dos entraves por ela colocados à acção do exército
soberano de Damasco, principalmente quando estava em vias de concretizar
vitórias estratégicas sobre os terroristas. Sem esquecer as abundantes
denúncias segundo as quais a «coligação internacional» dizia combater os
jihadistas enquanto continuava a municiá-los, através de armamento
largado em para-quedas para as zonas sob seu controlo. Assim
demonstrando, como se ainda fosse necessário, que o desmantelamento da
Síria e o derrube do seu governo foram sempre os verdadeiros objectivos
das potências da NATO, sobrepondo-se a qualquer variante da «guerra
contra o terrorismo».
Não restam hoje dúvidas de que a estrutura
mercenária do Daesh funciona como um corpo clandestino do Pentágono, da
própria NATO, no quadro da privatização crescente das operações
militares nos campos de batalha. A ideia, contudo, não é nova: tal como
montou a estrutura clandestina e terrorista da Gládio, a NATO manipula
agora um sucedâneo, o Daesh, adequado às condições e circunstâncias das
regiões a dominar e policiar.
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