Quando se acenderam as primeiras estrelas do Universo
A época inicial de trevas no Universo terminou
muito antes do que se pensava, segundo observações de uma equipa
norte-americana. Ao fim de 180 milhões de anos após o Big Bang, a
“explosão” que deu origem a tudo o que existe, as estrelas já estavam a
nascer.
Ilustração artística das primeiras estrelas do Universo, que eram azuis
N. R. Fuller/National Science Foundation dos EUA
Houve um tempo em que não havia nem estrelas,
nem galáxias, nem planetas, e muito menos a nossa Terra. E então as
primeiras estrelas acenderam-se e o Universo saía da Era das Trevas.
Propõe-se agora que as primeiríssimas estrelas nasceram quando o
Universo tinha “apenas” 180 milhões de anos, e não 550 milhões, como se
supunha ultimamente. Esta nova versão científica sobre o momento em que o
Universo deixou de estar às escuras vem relatada esta quinta-feira na revista Nature.
O Universo nasceu há 13.800 milhões de anos, com o Big Bang. Nos seus primeiros 380 mil anos
era opaco. Havia uma sopa tão densa e quente de protões, electrões e
fotões (luz) que estes não conseguiam viajar livremente. Os fotões
colidiam com frequência com os electrões. É por isso que não conseguimos
ver a luz dos primeiros 380 mil anos do Universo. Mas quando os núcleos
atómicos e os electrões se juntaram e formaram átomos leves (sobretudo
hidrogénio mas também deutério, trítio e hélio), o caminho ficou livre
para a passagem dos fotões. O Universo tornou-se transparente à luz.
Essa luz de há 380 mil anos é assim a mais antiga que conseguimos
ver. Está espalhada por todo o Universo, hoje na forma de radiação
microondas (ondas rádio). Chama-se radiação cósmica de fundo. Diz-se que
é um eco do Big Bang porque permite inferir sobre o que se terá passado
nos primórdios do Universo.
Para esta nova história agora contada na Nature a radiação
cósmica de fundo é importante porque foi precisamente nessa luz que as
primeiras estrelas a iluminar o Universo deixaram uma “assinatura”, uma
impressão digital.
Mas nessa altura continuava a não haver
estrelas nem galáxias, que são gigantescas ilhas de matéria formadas por
milhões e milhões de estrelas. O Universo tornado transparente estava
então cheio de um nevoeiro de hidrogénio electricamente neutro (forma de
hidrogénio só com um protão e um electrão).
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PÚBLICO -Foto
Nova cronologia proposta para a história do Universo, já com as estrelas ao fim de 180 milhões de anos após o Big Bang
Nova cronologia proposta para a história do Universo, já com as estrelas ao fim de 180 milhões de anos após o Big Bang
N. R. Fuller/National Science Foundation dos EUA
À medida que os milhões de anos se foram sucedendo, nas regiões com
mais hidrogénio gasoso a gravidade foi exercendo a sua acção. Esse gás
foi sendo atraído e agregado lentamente nessas zonas, que se foram
tornando cada vez mais densas, ao ponto de os átomos de hidrogénio
começarem a fundir-se em reacções nucleares – e foi então que as
estrelas se acenderam.
No entanto, ainda não era ponto assente
(como em tantas outras coisas do edifício sempre em construção da
ciência) quando surgiram estes primeiros candeeiros cósmicos que tiraram
do escuro o Universo. Procurando uma resposta, uma equipa de cientistas
dos Estados Unidos, coordenada por Judd Bowman, astrofísico da
Universidade Estadual do Arizona, concebeu uma experiência e esperou
durante 12 anos por resultados. Chegaram agora.
Os investigadores
desenvolveram e foram aperfeiçoando uma pequena antena do tamanho de um
frigorífico, que foi colocada numa zona remota da Austrália (no
Observatório de Radioastronomia de Murchison), onde há menos ondas rádio
de origem humana que pudessem interferir com as ondas de rádio vindas
do Universo distante. Ao longo da experiência, foram fazendo alterações
nos equipamentos e na análise dos dados recolhidos, repetiram mesmo a
recolha de dados numa segunda antena, tudo para eliminar contaminações e
erros nos sinais captados. O objectivo era precisamente captar a
radiação cósmica de fundo, que nos chega, recorde-se, como microondas.
Ou melhor, captar alterações, as tais impressões digitais, deixadas
pelas primeiras estrelas na radiação cósmica de fundo.
Foto
A antena no Observatório de Radioastronomia de Murchison, Austrália Ocidental
CSIRO Austrália
Adeus trevas, olá re-ionização
Segundo os modelos teóricos,
as primeiras estrelas eram azuis. O que significa que tinham muita
massa, eram muito quentes e emitiam muita radiação ultravioleta. Também
consumiam rapidamente o seu combustível, pelo que morriam depressa.
Quando uma estrela muito maciça morre como as estrelas azuis, o
resultado é a sua transformação num buraco negro, um objecto tão denso
que a luz, uma vez lá caída, já não consegue escapar-se.
Ainda
segundo os modelos teóricos, a radiação ultravioleta emitida pelas
primeiras estrelas interagiu com os átomos de hidrogénio gasoso
espalhados pelo Universo primordial, arrancando-lhes o seu electrão – um
processo chamado ionização.
Por causa da separação entre o protão
e o electrão que constituem o átomo de hidrogénio, os electrões
voltaram a andar à solta e a colidir com a radiação cósmica de fundo que
está por todo o Universo. O hidrogénio gasoso passou assim a “absorver”
fotões da radiação cósmica de fundo, impedindo outra vez que alguma
dessa luz viajasse livremente. Ora esse acontecimento na história do
Universo deixou marcas nesta forma de luz.
Deixando para trás as
trevas, a nova época do Universo iluminada pelas estrelas é justamente a
Era da Re-ionização. Depois de ter estado ionizado até aos 380 mil anos
e de se ter tornado transparente, voltava agora a ser ionizado. A
radiação ultravioleta libertada pelas primeiras estrelas ionizava o gás à
sua volta. Eram os vestígios dessa época de re-ionização que a equipa
de Judd Bowman procurava. Apropriadamente, o seu projecto chama-se
EDGES, a sigla em inglês de Experiência para Detectar a Assinatura
Global da Época da Re-ionização.
O que a equipa detectou foi uma
pequena “descida na intensidade da radiação cósmica de fundo”, como
refere um dos comunicados sobre o trabalho. Através da detecção dessa
alteração na radiação cósmica de fundo provocada pelas primeiras
estrelas, a equipa pôde concluir que elas surgiram 180 milhões de anos
após o Big Bang. Como o Universo tem agora 13.800 milhões de anos, estes
resultados levam-nos à conclusão de que as primeiras fontes de
iluminação cósmica sugiram há cerca de 13.620 milhões de anos.
“Detectar
este sinal minúsculo abriu uma janela nova para o Universo primitivo.
Os telescópios não conseguem ver suficientemente longe para termos uma
imagem dessas estrelas antigas, mas nós vimos, nas ondas de rádio que
chegam do espaço, quando é que elas se ligaram”, sublinha Judd Bowman,
citado num dos comunicados sobre o trabalho. “Esta detecção é um grande
desafio técnico. As fontes de ruídos podem ser dez mil vezes mais
intensas do que o sinal – é como estar no meio de um furacão e tentar
ouvir o bater de asas de um colibri”, nota por sua vez Peter Kurczynski,
da National Science Foundation dos EUA, que financiou a experiência.
“Começámos
a ver o gás de hidrogénio em determinadas frequências de rádio. É o
primeiro sinal real de que as estrelas estavam a começar a formar-se e a
afectar o meio à sua volta”, explica outro investigador da equipa, Alan
Rogers, do Observatório Haystack do Instituto de Tecnologia do
Massachusetts (MIT). “A assinatura desta característica de absorção está
associada unicamente às primeiras estrelas. Elas são a fonte mais
plausível de radiação para produzir este sinal”, nota por sua vez Colin
Lonsdale, director do Observatório Haystack.
Grãos de areia numa praia
Para
o astrofísico Domingos Barbosa, do Instituto de Telecomunicações em
Aveiro, “é uma descoberta fantástica”. O investigador português é o
coordenador da participação portuguesa num radiotelescópio
intercontinental que vai ser construído, o Square Kilometre Array
(SKA), que terá as suas antenas espalhada na Austrália, a África do sul
e outros países africanos. Portugal fará parte dos membros fundadores
do SKA, a partir deste ano. “Num dos melhores locais do planeta
escolhidos para instalação do SKA, este resultado sobre a detecção da
luz das primeiras estrelas formadas no Universo antecipa uma ciência
muito promissora com o SKA. Tirando partido das novas tecnologias de
tratamento de Informação, o SKA terá capacidades únicas para resolver ou
identificar algumas dessas primeiras fontes cósmicas”, nota Domingos
Barbosa.
Perante as observações da antena na Austrália Ocidental, a
equipa norte-americana sugere agora uma nova cronologia para a história
do Universo. Em 2015, tinha-se avançado que as observações do
telescópio espacial Planck, lançado pela Agência Espacial Europeia para
medir a radiação cósmica de fundo, indicavam que as primeiras estrelas
teriam 550 milhões de anos.
Assim que as primeiras estrelas foram
morrendo, os buracos negros e outros objectos maciços que elas deixaram
para trás continuaram o processo de ionização do restante hidrogénio
gasoso espalhado pelo Universo. Os discos de gases que rodopiavam os
restos mortais das estrelas geraram raios X, que por sua vez aqueceram o
hidrogénio gasoso primordial. “A certa altura, o gás [o hidrogénio]
ficou mais quente do que a radiação cósmica de fundo, acabando com a
absorção do sinal”, escreve a equipa norte-americana no seu artigo na Nature.
A época de re-ionização estava portanto a chegar ao fim, o que nos
dados da equipa aconteceu ao fim de 250 milhões de anos após o Big Bang.
E o Universo foi seguindo o seu curso, formando galáxias, até
chegarmos ao nascimento do pontinho azul-claro que é a nossa casa
terrestre à volta de uma estrela, há cerca de 4500 milhões de anos, e
aos dias de hoje. Terminamos com as palavras de Neil deGrasse Tyson,
astrónomo norte-americano que publicou Astrofísica para Gente com Pressa – Uma Viagem Rápida e Iluminante ao Cosmos (Gradiva),
pondo tudo em perspectiva. “Há mais estrelas no Universo do que grãos
de areia em qualquer praia, mais estrelas do que segundos desde que a
Terra se formou, mais estrelas do que palavras e sons alguma vez
pronunciados por todos os seres humanos que já viveram.”
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