Os 120 anos do «Pobre B. B.»
16.03.18
José Carlos Faria
REVOLUCIONAR A ARTE. Quando, às 4.30 da madrugada de 10 de Fevereiro de 1898, veio ao mundo na cidade alemã de Augsburgo Eugen Bertold Friedrich Brecht, filho de um próspero industrial, Marx (falecido em 1883) tinha nascido há 80 anos, o Manifesto Comunista, com o espectro que percorria a Europa, fora editado há meio século e, na Rússia czarista, Konstantin Stanislavsky e Nemirovitch-Dantchenko fundavam o Teatro de Arte de Moscovo.
O jovem, criado no seio da burguesia,
viria mais tarde a mudar o seu nome para Bertolt Brecht, assinando, por
vezes, Bert Brecht ou mesmo b. b. (em minúsculas).
Num poema, relata:
Eu cresci como filho
De gente abastada. (…)
Quando era já crescido e olhei à minha roda,
Não me agradou a gente da minha classe;
Nem o mandar nem ser servido.
E eu abandonei a minha classe e juntei-me
À gente pequena.
Assim criaram eles um traidor, educaram-no
Nas suas artes, e ele
Atraiçoa-os ao inimigo. (…)
Desmonto a balança da sua justiça
E mostro os pesos falsos.
Os espiões deles informam-nos
De que estou com os espoliados
A preparar a revolta.
Admoestaram-me e tiraram-me
O que ganhei com o meu trabalho. Como não me emendei
Deram-me caça. (…)
Perseguiram-me com um mandato de captura
Que me acusava de opiniões baixas, isto é:
Das opiniões dos de baixo.
Aonde chego, fico marcado
Pra todos os possidentes, mas os que nada têm
Lêem o mandato e
Dão-me abrigo. «A ti» – ouço eu dizer –
«Expulsaram-te eles, e
Com razão».
«O pobre B. B., vindo das negras
florestas para o asfalto das cidades», poeta, dramaturgo, encenador,
ensaísta e teórico, viria a revolucionar a arte teatral, propondo e
definindo o modelo de uma nova concepção estética, materialista e
dialéctica, de empenhamento político visando a transformação da
realidade social, operada pela superação da alienação e pelo incremento
da consciência crítica dos espectadores.
Dizia:
O pior analfabeto é o analfabeto político.
Ele não houve, não fala, nem participa nos acontecimentos políticos.
Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha,
da renda de casa, do sapato e do remédio dependem das decisões
políticas.
O analfabeto político é tão burro que se orgulha e incha o peito dizendo
que odeia a política.
Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta,
o menor abandonado, o assaltante e o pior de todos os bandidos,
que é o político vigarista, reles, o corrupto e lacaio das empresas
nacionais e multinacionais.
Em 1917, Brecht é incorporado no
exército, como enfermeiro num hospital da rectaguarda e rapidamente
desmobilizado devido à sua frágil saúde, aliada a uma evidente
desmotivação. Escreve depois «Tambores na Noite», que virá a ganhar o
Prémio Kleist em 1920. A experiência vivida no período de contacto com a
realidade da I Guerra Mundial e da derrotada Revolução Espartaquista
que se seguiu, viria a ter influência na sua adesão ao marxismo, ao qual
atribuiu enorme importância:
«Tenho de confessar que foi só depois de
ler “O Estado e a Revolução”, de Lenine, e, em seguida, “O Capital”, de
Marx, que compreendi a minha posição no plano filosófico». «Lendo “O
Capital”, compreendi as minhas peças. Bem entendido, não descobri que
tinha escrito involuntariamente um monte de peças marxistas. Mas este
Marx era o único espectador que eu conseguia conceber para as minhas
peças. Só um homem com tais preocupações podia interessar-se por peças
como as minhas. Não por serem inteligentes, mas porque ele o era. Elas
ofereciam-lhe materiais de observação».
Vai então escrever as chamadas peças
didácticas sobre as contradições da engrenagem capitalista, as quais
irão ser montadas quer em regime profissional quer em grupos de amadores
estudantis ou ligados aos sindicatos. 1928 é o ano da estreia de «A
ópera dos 3 Vinténs», que põe em causa todo um sistema social, toda uma
ordem, a da sociedade burguesa (O que é o assalto a um banco, comparado
com a fundação de um banco?), e que, com a música de Kurt Weill, irá
obter um retumbante sucesso mundial.
A verdade está na vida real
O crash da Bolsa de Nova Iorque e as
suas repercussões, em 1929 (ano do casamento com a actriz comunista
Helen Weigel), suscitar-lhe-á um processo de análise e desmontagem: Sou
um autor de peças. Mostro aquilo que vi. Nos mercados dos homens vi como
o homem era negociado. Isso é o que eu mostro, eu, o autor de peças. A
barbárie não provém da barbárie, mas dos negócios – surge quando os
homens de negócios deixam de poder negociar sem ela.
Brecht iria então elaborar a teoria do
Teatro Épico, concretizada no «Pequeno Organon para o Teatro» e na
«Compra do Latão», através de alguns pontos fundamentais: a forma épica
faz do espectador um observador mas desperta-lhe a consciência crítica e
exige-lhe decisões; visão do mundo; o espectador é colocado diante de
alguma coisa e os sentimentos são elevados a uma tomada de consciência; o
ser social determina o pensamento.
Insistindo que o texto não deve ser
sentimental ou moralizante, mas sim mostrar a moral e a
sentimentalidade, cabe pois ao público reflectir e agir fora do teatro. A
verdade não está no palco mas na vida real. Compreender a realidade e,
se possível, transformá-la. Tal tarefa não pertence ao teatro – que ele
se contente, pelos seus meios, em nos fazer ver essa necessidade; já não
será pouco. Um teatro que mostre a realidade mas que, de igual modo,
esteja apto a transformar o espectáculo num prazer.
A ferramenta para o trabalho do actor
vai ser o Verfremdungseffeckt, também por muitos designado Efeito V, que
preconiza a distanciação, o estranhamento, a não identificação – aos
actores cabe então uma dupla função: representar as suas personagens e,
em simultâneo, serem os juízes críticos dessas mesmas personagens
através do gestus social, ou seja, a expressão e gestos que acontecem
entre pessoas de uma determinada época. A historicização, próxima das
formulações sobre o condicionamento histórico da Arte em Marx, assume um
carácter decisivo, em que os acontecimentos, mesmo os quotidianos,
devem ser apresentados como transitórios. Todavia Brecht não deixou de
alertar para os perigos desse Efeito V ser tomado como um fim em si
mesmo, isto é, o espectador fascinado pelo processo da crítica sem ser
tocado pelo significado da crítica.
Quando Hitler sobe ao poder, a 30 de
Janeiro de 1933, tem início um período extremamente conturbado. O
parlamento é dissolvido de imediato e a 27 de Fevereiro, incendiado. No
dia seguinte, Brecht abandona a Alemanha, com a sua mulher e os dois
filhos, Stefan e Barbara, escapando assim à vaga de enorme repressão,
com prisões e assassinatos, que se vai abater sobre antifascistas, em
especial sindicalistas, intelectuais, estudantes e membros de partidos
de esquerda. Tempos sombrios em que falar sobre uma árvore é quase um
crime, porque equivale a calar tantas perfídias, como deixará patente
num lamento magoado. O exílio, para Brecht, a quem os nazis retiram a
cidadania alemã, vai fazer-se, trocando de país como de sapatos, através
das guerras de classes, numa rota que passa pela Checoslováquia, Suíça,
Dinamarca, Suécia, Finlândia, União Soviética, para se concluir nos
EUA. Fixa-se na Califórnia, tentando trabalho como argumentista em
Hollywood, escreve peças de resistência à ofensiva nazi-fascista («As
espingardas da Senhora Carrar», a propósito da Guerra Civil de Espanha e
«Terror e Miséria do III Reich»), poemas introduzidos e distribuídos
clandestinamente em território alemão e ainda outros textos teatrais que
virão posteriormente a ser estreados após o final da II Guerra Mundial.
A 30 de Outubro de 1947 é intimado a
comparecer perante a Comissão de Actividades Anti-Americanas, criada com
o objectivo de conduzir uma caça às bruxas contra as «actividades
subversivas». Brecht considera este interrogatório como «uma execução
fria, como lá se chama guerra fria a uma certa forma de paz. O
delinquente não é privado de vida, mas de qualquer meio de vida; o seu
nome não aparece nas listas cronológicas mas figura nas listas negras».
Despistando os seus juízes, recorrendo à astúcia e à ironia, uma vez
mais, logo no dia seguinte, parte rumo à Europa num voo da Air France.
Curiosamente, sete meses depois, a Academia Americana de Artes e Letras
iria anunciar o seu nome como um dos 15 autores contemplados com um
prémio de mil dólares por mérito artístico.
Fidelidade ao ideal comunista
Para construir o socialismo não bastam decretos e proclamações
Com o surgimento da RDA, em 1949, Brecht vai viver em Berlim-Leste e funda, com Helen Weigel, o Berliner Ensemble.
A 17 de Junho de 1953, fortes convulsões
sociais ocorrem devido à urgente necessidade de bens de consumo e
alimentação provocadas por um plano ocidental, que, por via do mercado
negro, pretendia destruir o valor da moeda da RDA, arruinando a sua
estrutura financeira. Brecht, numa longa carta ao 1.º Ministro com
críticas e sugestões, de que os jornais só publicariam a parte final, na
qual exprimia identificação com o Partido e o regime, escrevia:
«Espero agora que os provocadores sejam
isolados e que as suas redes sejam destruídas; mas também que não se
coloque no mesmo nível estes provocadores e os operários que se
manifestaram para exprimir o seu justo descontentamento, a fim de não
perturbar no futuro a discussão tão necessária sobre os erros cometidos
pelos dois lados».
O governo dava conta de que para construir o socialismo não bastam decretos e proclamações e Brecht chamava a atenção para isso:
Após a insurreição de 17 de Junho
O secretário da União de Escritores
Fez distribuir panfletos na Avenida Estaline
Em que se lia que, por culpa sua,
O povo perdera a confiança do governo
E só à custa de esforços redobrados
A poderia recuperar. Mas não seria
Mais simples para o governo
Dissolver o povo
E eleger outro?
Porém, a fidelidade ao ideal comunista permanecia firme:
LOUVOR DO COMUNISMO
É razoável, quem quer o entende. É fácil
Tu não és nenhum explorador, podes compreendê-lo.
É bom para ti, informa-te dele.
Os estúpidos chamam-lhe estúpido e os porcos chamam-lhe porco.
Ele é contra a porcaria e a estupidez.
Os exploradores chamam-lhe crime
Mas nós sabemos:
Ele é o fim dos crimes.
Não é nenhuma loucura, mas sim o fim da loucura.
Não é o enigma
Mas sim a solução.
É o fácil que é difícil de fazer.
Assim como está não fica
Em 1954, a digressão parisiense do
Berliner Ensemble ao festival do Théâtre des Nations, com «A Mãe» e «Mãe
Coragem e os seus filhos» resulta num êxito estrondoso.
Brecht, entretanto, com a figura do sr.
Keuner, o seu irónico alter ego filosófico, e também através da poesia
de sarcasmo e erotismo, prosseguia a crítica da moral burguesa a que se
entregava desde a juventude.
A 14 de Agosto de 1956, a meio dos
ensaios de «A Vida de Galileu», Brecht morre com um enfarte de
miocárdio. Pouco tempo antes tinha escrito:
Dispenso a pedra tumular, mas
Se fizerem questão de me dar uma
Gostaria que nela fosse escrito:
Ele deu sugestões. Nós aceitámo-las.
Tal inscrição
A todos honraria.
No dia 17 é enterrado junto ao túmulo de
Hegel, filósofo que tanto apreciava pelos seus estudos sobre a
Dialéctica, cujo louvor Brecht tinha celebrado:
A injustiça caminha hoje com passo firme.
Os opressores instalam-se pra dez mil anos.
A força afirma: Como está, assim é que fica.
Voz nenhuma soa além da voz dos dominadores
E nas feiras diz alto a exploração: Agora é que eu começo.
Mas dos oprimidos dizem muitos agora:
O que nós queremos, nunca pode ser.
Quem ainda vive, que não diga nunca!
O certo não é certo.
Assim como está não fica.
Quando os dominadores tiverem falado
Falarão os dominados.
Quem se atreve a dizer: nunca?
De quem depende que a opressão continue? De nós.
De quem depende que ela seja quebrada? Igualmente de nós.
Quem for derrubado, que se levante!
Quem estiver perdido, lute!
A quem reconheceu a sua situação, quem poderá detê-lo?
Pois os vencidos de hoje são os vencedores de amanhã
E do Nunca se faz: Hoje ainda!
Fonte: publicado no jornal Avante! n.º 2308, de 2018/02/22 e em http://www.avante.pt/pt/2308/temas/148810/
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