ENTREVISTA A EFTICHIOS BITSAKIS – SOBRE A DIALÉCTICA DA NATUREZA
Posted by qmiguel em 10/03/2012
Eftichios Bitsakis é professor
de física teórica na Universidade de Atenas e ensina também filosofia na
Universidade de Ioannina. É autor de várias obras científicas entre as
quais: Física e Materialismo Dialéctico; Física e Materialismo; O novo
Realismo Científico. Deixamos aqui uma curta entrevista em torno da
dialéctica da natureza.
P: O que significa para si a expressão “Dialéctica da Natureza”?
E.B.: Essa expressão implica desde logo
uma certa concepção da natureza, cujas origens remontam às intuições dos
filósofos Pré-Socráticos, e que foi elaborada por Hegel no quadro de um
sistema idealista e posteriormente por Engels como parte constituinte
da visão materialista e dialéctica do mundo. Segundo esta concepção a
natureza é uma realidade objectiva que ainda para mais é “de si e por
si” (o princípio de asseidade é fundamental para o materialismo). A
matéria é ontológicamente una e, ao mesmo tempo, diversa nas suas
formas: unidade na diversidade. A natureza constitui assim uma
totalidade héterogénea e em devir. O movimento é um atributo imanente e
inalienável da matéria e realiza-se graças às interacções físicas;
graças ao jogo de oposições e de contradições que caracterizam as formas
materiais (a oposição e a contradição não são categorias meramente
epistémicas mas também ontológicas: referem-se ao ser e não apenas ao
nosso conhecimento). Desta forma a natureza caracteriza-se por uma
hierarquia de estruturas e de níveis que aparecem ao longo do tempo e
que desaparecem tomando outras formas. A criação e a destruição das
formas da matéria obedecem a um certo número de determinações. A mudança
qualitativa realiza-se por meio de “saltos”, isto é, rupturas da
continuidade, como negação da forma inicial e negação da negação. A
cosmogénese dá-se no espaço e no tempo, que são formas de existência da
matéria. Isto para expôr resumidamente alguns dos aspectos de uma
concepção dialética da natureza.
P: Será que é possível falar da
“dialéctica da natureza” em geral, ou será que devemos entender esta
expressão somente no plural? Será que ainda podemos falar de “leis” da
dialéctica naquilo que à física ou a cosmologia diz respeito?
E.B.: Existe hoje uma tendência, nalguns
meios marxistas, para conceber apenas dialéticas “locais” ou “regionais”
e rejeitar “A” dialética da natureza. As ciências da natureza de hoje
surgem de relações dialéticas e por meio destas é possível elaborar
dialéticas regionais. Vejamos:
1) A matéria apresenta-se hoje sob formas
extremamente heterogéneas. No entanto existe uma unidade ontológica
dessas formas, que se manifesta através de leis que são comuns para
todas as formas e níveis. Também ao nível microfísico existe uma
transformação de diferentes partículas elementares em formas diferentes e
opostas.
2) A matéria tem uma história. As formas
actuais caracterizam um certo estado de evolução do cosmos. Para além
disso, é quase certo que ainda hoje exista criação de matéria, que não é
mais que a emergência de particulas do “fundo” (do nível sub-quântico).
3) O vazio de Demócrito não era mais que
uma mera abstacção. Hoje em dia, considera-se o “vazio” como um oceano
de formas da matéria que passam, mediante certas condições, do potencial
ao actual.
4) Segundo algumas teorias relativistas,
existe uma unidade entre espaço, tempo e matéria. Neste caso, é a
matéria, e o seu movimento, que determina a forma do espaço e o fluxo do
tempo.
5) A cosmogénese não diz apenas respeito à
historicidade das formas da matéria do nível microfísico e às formas do
macrocosmo. Existe uma história da formação da terra, da aparição e
evolução da vida, da antropogénese e da noogénese.
6) As formas de existência e a sua
transformação obedecem a um certo número de tipos de determinação:
mecânica, dinâmica, estatística quântica e estatística clássica.
Penso que por meio do estudo concreto destas áreas é possível elaborar dialécticas regionais concretas.
Aceitemos que estas dialécticas regionais
são elaboradas através de uma valorização filosófica das leis das
ciências naturais. Elas podem assim ser legítimas do ponto de vista
epistemológico. Agora, será que podemos falar de “leis” no que diz
respeito à natureza considerada como um todo?
Sartre, por exemplo, achava que podiamos
falar de dialéctica da história, mas não de dialética da natureza, uma
vez que a natureza, segundo ele, não constitui uma totalidade. Hoje em
dia está provado que a natureza constitui uma totalidade, que inclui
diferença, oposição e contradição. A escola Althusseriana assumiu uma
posição reservada, pois para esta uma dialéctica da natureza poderia
significar uma nova ontologia dogmática. Para Altusser a filosofia não
tem história, as suas teses implicam uma espécie de eternidade. No
entanto, as diferentes teses filosóficas não surgem arbitrariamente, mas
antes em relação com a prática social e com as descobertas das ciência.
Desta forma e apesar da existência de um certo número de questões
eternas, as questões que a filosofia levanta têm uma história própria e o
seu conteúdo altera-se com o curso do tempo, de tal forma que as
aporias filosóficas vão sendo pouco a pouco esclarecidas. A filosofia
não consiste num mero elaborar de teses, ela é o reflexo de uma
concepção do mundo, e esta concepção nunca é arbitrária.
Como é que confluem então a ciência e a
filosofia? O desenvolvimento das ciências dá-se por meio de um duplo
movimento: especialização e generalização. Os conceitos científicos
aproximam-se das categorias filosóficas. Não é por acaso que os mesmos
termos (matéria, espaço, tempo, interacção, causalidade, etc…) são
utilizados tanto pelos cientistas como pelos filósofos. Estas palavras, a
que no domínio das ciências poderiamos chamar conceitos quase
filosóficos, exercem uma mediação entre as ciências e a filosofia. Assim
as categorias e as teses da filosofia não são vazias e anti-históricas,
mas plenas de conteúdo concreto. Consequentemente as “leis” da
dialéctica da natureza não são leis em sentido estrito, mas proposições
correctas, com sentido metafísico, que se acordam com as ciências. A
dialéctica da natureza não é uma ontologia axiomática, mas uma concepção
da natureza que se elabora através da generalização e superação dos
conhecimentos das ciências da natureza.
P: A dialéctica da natureza foi
desvalorizada pelo uso dogmático feito à época de Jdanov e Estaline.
Será que podemos distinguir a dialéctica da natureza do uso dogmático
que dela foi feito e relacioná-la com a evolução da ciência
contemporânea?
E.B.: A dogmatização da dialéctica da
natureza e em geral da filosofia marxista, pode ser explicada pelo
desvio global da União Soviética. No “Socialismo de Estado” a
dialéctica, por natureza crítica e revolucionária, adquiriu uma forma
simplificada e apologética. Hoje, as ciências contemporâneas abrem novas
prespectivas para uma dialética da natureza já livre do dogmatismo.
Engels dizia que à medida em que se dão grandes revoluções científicas, o
materialismo dialético (e a dialética da natureza em particular) deve
mudar de forma. Ora não se trata aqui de mudar de forma. As categorias
dialécticas e mesmo todo o edifício da dialéctica da natureza devem ser
novamente elaboradas, dando valor filosófico ao material concreto das
ciências da natureza. Como diria Hegel: a filosofia é hostil ao
abstracto e deve levar sempre ao concreto. O último capítulo do meu
livro trata das novas prespectivas da dialéctica da natureza.
P: Existe o perigo de uma nova ontologização da dialéctica?
E.B.: As palavras não nos devem fazer
medo. Uma teoria do ser, ou melhor, uma ontologia anti-dogmática, é hoje
possível. Esta teoria do ser refere-se ao ser por meio do nosso
conhecimento deste. É evidente que ela fala do ser por meio do nosso
conhecimento da natureza. Uma das condições para evitar desvios
indesejáveis é pensar a dialéctica que se encontra no materialismo.
P: Quais são então as descobertas ciêntíficas contemporâneas que podem ser interpretadas a partir de categorias dialécticas?
E.B.: As ciências “filosóficas” por
excelência são a física, a astrofísica, a cosmologia, a biologia e a
psicologia. Também a matemática se pode ligar à dialéctica, ainda que de
uma forma um tanto quanto indirecta. Interpretar dialécticamente não
significa procurar aquilo que se deseja, nem ter concepções de base
preestabelecidas, mas sim interpretar o material científico e
compreender as relações dialécticas que aí se encontram implicadas, e,
se quisermos, num movimento ao contrário, “interpretar” a ciência. A
filosofia não pode exercer uma função normativa em relação às ciências. A
sua função deve ser epistémológica: análise, critérios, compreensão das
relações e tendências em questão, assinalar os objectivos e os métodos.
P: Existe uma tendência para
“recitar” a filosofia de Marx e de Lénine, alguns guardando o
materialismo e rejeitando a dialéctica, outros procedendo em sentido
inverso… Na sua opinião o que é que se perde quando se perde a
referência ao materialismo dialéctico?
E.B.: Como disse ainda há pouco: pensar a
dialéctica que está no materialismo. Marx era claro no que respeita à
unidade indissolúvel da dialéctica e do materialismo. Engels também.
Quando a Lénine, apesar de existirem diferênças no que diz respeito aos
problemas e ao estilo, ele continua e desenvolve as concepções de Marx e
Engels. Há uma unidade imanente destes três autores clássicos da
filosofia marxista. O materialismo sem a dialéctica é um materialismo
vulgar, a dialéctica sem o materialismo é uma dialéctica oca, e em
ultima análise impossível.
(Entrevista publicada originalmente na revista Etincelles nº8 em 2003, traduzida do francês)
Posted in Filosofia, Marxismo | Com as etiquetas : Dialéctica, Dialéctica da Natureza, Física, Filosofia, Lénine, Marx, Marxismo, Natureza | Leave a Comment »
Sem comentários:
Enviar um comentário