Infelizmente, não temos uma palavra melhor para “marxismo”. O próprio Marx já disse que não se considerava um “marxista” se determinadas interpretações enviesadas de suas teorias sobre o materialismo histórico e o capitalismo fossem “marxistas”. Parte do problema é que as teorias e processos que Marx ajudou a criar são grandes demais para se concentrarem em apenas um único “ismo”. Marx foi um filósofo (e, de certa forma, historiador) da economia política, ou seja, ele estudou a produção e o comércio em relação com as leis, os costumes, os sistemas humanos, cujas teorias ajudaram a estabelecer princípios em diversas outras disciplinas e práticas: economia, sociologia, história, literatura e política, entre outras.

A analogia mais próxima que consigo pensar é com aquilo que chamamos hoje de “darwinismo“, que são as teorias do biólogo do século XIX, Charles Darwin. Darwin não inventou a biologia, a paleontologia, a genética ou qualquer outra das várias disciplinas e práticas que beberam do “darwinismo”. E, na verdade, há diversos aspectos do “darwinismo clássico” – as teorias e conclusões a que chegaram Darwin e seus discípulos imediatos – que foram completamente revisadas ou rejeitadas por pessoas que ainda hoje continuam se considerando “darwinistas”. Desde que Darwin publicou  A Origem das Espécies e A Descendência do Homem, centenas (se não milhares) de cientistas e filósofos expandiram e aprimoraram suas teorias (a chamada “síntese moderna”) – o que era necessário, obviamente, uma vez que, durante a vida de Darwin, não havia nenhum conceito aprofundado de genética molecular. 

É útil pensar no marxismo da mesma maneira. O marxismo não é um plano detalhado de como se criar o socialismo; também não é uma filosofia moral, da forma como os filósofos do Iluminismo e seus descendentes (como John Rawls) tentaram desenvolver sistemas morais a partir de princípios iniciais para determinar o que seria mais “justo”. Ele não nos instrui a participar de insurreições violentas.

Marx, por meio de suas análises da sociedade humana, nos trouxe uma compreensão das leis que regem a forma como a sociedade se desenvolve e como podemos entender o processo da história. Suas teorias sobre a alienação e a luta de classes nos informam sobre as causas da miséria humana e os obstáculos ao florescimento da humanidade. Trata-se do “materialismo histórico”, que é a linha mais sólida de seu trabalho. O materialismo histórico é, de forma resumida, a teoria de que as sociedades humanas se desenvolvem de acordo com como se organizam as “forças produtivas” e de que as características de uma sociedade estarão, em última instância, relacionadas com essa organização. As pessoas se relacionarão com o sistema de forças produtivas por meio de “classes”. Portanto, o principal conflito em uma sociedade tem sido travado pelas classes nos lados opostos do sistema de produção. Esta é a parte dialética de sua teoria.

Assim como Darwin não foi o primeiro “evolucionista”, Marx não foi, de forma nenhuma, o primeiro socialista. E, assim como com Darwin e o termo “evolução”, “socialismo” tinha um significado totalmente diferente antes de Marx. O socialismo era, basicamente, um sistema moral, às vezes vinculado a valores cristãos, de caráter utópico e justificável com base naquilo que seria “justo”. Marx e Engels dedicaram grande parte de sua vida ativa para diferenciar suas teorias das anteriores, de um socialismo “utópico” baseado na persuasão moral. Engels foi ainda mais longe, publicando um panfleto do tamanho de um livro sobre isso, Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico.

Darwin revolucionou as teorias “evolucionárias” existentes, apresentando o conceito de seleção natural ao longo do tempo geológico.  Ele deveria ser mais lembrado pela teoria da seleção natural do que da evolução, até o título inicial do livro “A Origem das Espécies” era a “A Seleção Natural”.  Da mesma forma, Karl Marx aplicou à análise histórica e filosófica existente sobre a sociedade humana e a economia política uma abordagem objetiva a partir da qual desenvolveu sua teoria do materialismo histórico/dialético.

O que o marxismo nos ensina é simplesmente a abordar as questões da sociedade a partir de uma base material: como a vida humana persiste? Por meio da produção dos bens e serviços de que precisamos para viver. Como esses itens são produzidos em uma sociedade capitalista? Por meio da exploração da mão de obra da classe trabalhadora, ou seja, necessitando que uma classe de pessoas venda sua mão de obra como mercadoria para outra classe, para produzir itens de valor. Qual é o resultado desse sistema? Que os trabalhadores são “alienados” de seu trabalho, ou seja, que em grande parte do tempo que passam acordados, se exige constantemente que produzam cada vez mais, com um acesso sempre precário aos meios de subsistência.

Se quisermos nos enveredar na competição política e análise do que Marx teria chamado de “economia política”, não há uma alternativa ao marxismo que se aproxime minimamente de seu poder explanatória ou  de sua capacidade de orientação. Dito isso, eu compreendo a cautela que vários socialistas ou social-democratas têm em se alinhar ao marxismo. Marx se concentrava na “luta” de classes, na “derrubada” da classe capitalista, e na “ditadura do proletariado”, termos que podem sugerir aos ouvintes ocidentais modernos incitações à violência e ao autoritarismo.

É importante entender o que Marx queria dizer com esses termos.

A luta de classes não significa necessariamente barricadas nas ruas e a execução sumária dos plutocratas. Que esses atos podem resultar da luta de classes é um fato histórico, mas a “luta” da qual Marx fala é a competição política e social entre as classes, que está sempre presente: seja na forma de reivindicações salariais, petições, alterações legislativas, greves, não conformidades e todas as demais alternativas, até chegar na revolta armada. No Manifesto, Marx descreve como, às vezes, os capitalistas cedem às pressões realizadas por manifestações e greves; em outras ocasiões, eles resistirão até que consigam extrair dos movimentos concessões à força. É só a força relativa de ambos os lados o que vai determinar a natureza dessa luta. O ponto central do método de Marx é entender que a luta é inerente ao sistema capitalista, é um dado objetivo. Já a maneira estratégica como os socialistas escolhem enfrentar a luta depende de vários fatores, incluindo as vias disponíveis para eles conquistarem mudanças no sistema – isso é subjetivo. Gostemos ou não, a forma como as mercadorias são produzidas no sistema capitalista sempre envolverá uma luta entre as classes: os trabalhadores sempre querem mais; já os capitalistas sempre querem que os trabalhadores tenham cada vez menos.

Sobre a “derrubada”, Marx analisa como os sistemas de produção anteriores findaram e se transformaram em novas formas: do caçadores-coletores ao militarizados; aos domínios de chefes e reis escravizadores; ao feudalismo e, por fim, ao capitalismo. É verdade que essas transições foram geralmente marcadas por períodos de competição violenta, mas (assim como no darwinismo) os estudos históricos mostram que as crises violentas não foram o elemento principal, mas apenas os meios de tais transformações. Na verdade, décadas – por vezes séculos – de pequenas mudanças acumuladas ao longo do tempo pressionaram os sistemas existentes e culminaram em grandes transformações. Isso é especialmente verdade em relação ao capitalismo, que não se instalou de uma vez na Europa após a França ter decapitado vários nobres, e sim ao longo de um amplo período, se iniciando no século XIV. O crescimento de reinos que funcionavam como Estados; cidades com comércio “livre”; crescentes mudanças tecnológicas; melhorias nas comunicações e na logística; e transformações nos sistemas jurídicos foram erodindo as bases do feudalismo, e a Revolução Francesa foi um episódio de um processo de transformações bem mais longo e abrangente.

Talvez mais mal interpretada seja a ideia da “ditadura do proletariado”, que aparece no Manifesto e em uma obra chamada Crítica do Programa de Gotha, mas que é frequentemente interpretada de acordo com as teorias posteriores de Vladimir Lênin. A ditadura do proletariado não significa o terror revolucionário contra os inimigos de classe e a morte da liberdade; significa algo muito simples: olhe ao seu redor. Você consegue ver como, nas democracias de “livre-mercado”, o poder político é monopolizado (ou praticamente monopolizado) pela classe de proprietários? A “ditadura” do proletariado inverte essa lógica. Para os marxistas, a ditadura do proletariado significa apenas um período em que o poder político é controlado em comum pelo benefício da classe trabalhadora. Chegar a esse ponto requer que a classe trabalhadora perceba que ela representa, na verdade, uma única classe; e que ela aja para atender aos seus próprios interesses. Isso não significa que essa ação necessariamente deveria vir acompanhada de revolução violenta.

Ditadura é algo ruim. Hoje em dia, nós vivemos sob uma forma de ditadura: aquela em benefício da classe capitalista. Isso não significa que os integrantes da classe trabalhadora não possuem nenhuma liberdade; mas quer dizer que os Estados em que vivemos são especificamente organizados para proteger o sistema capitalista de relações sociais. Algumas pessoas são donas dos meios de produção, e o resto de nós tem que vender sua força de trabalho para sobreviver. A ditadura do proletariado apenas inverte essa ordem: ela organiza o Estado para preservar a propriedade comum dos meios de produção.

Marx e Engels eram críticos de argumentos morais e baseados na “justiça” em nome do socialismo por não serem históricos, lhes faltava uma base realmente racional e, portanto, eram formados apenas por uma ideologia da classe dominante. Isso também não é exclusivo de Marx: um filósofo contemporâneo, Bernard Williams (que não era socialista), está entre os filósofos morais que rejeitam a ideia de que seria possível racionalizar o caminho para a moralidade. Historicamente, as forças de produção (aquilo que determina o florescimento humano) nunca foram reordenadas por meio de argumentos morais; foi sempre necessário se engajar na luta, na competição política. Marx não estava tentando incitar a violência nas pessoas, estava apenas expondo e reconhecendo o fato de que as forças de produção criam a luta de classes, que se resolverá em uma mudança nas forças de produção.

Como socialistas pós-Marx, assim como os biólogos pós-Darwin, nós apenas aceitamos a realidade material do sistema em que vivemos. As forças de produção se apoiam na exploração para extrair a “mais-valia” e requerem a mercadificação do trabalho, o que aliena os trabalhadores. A luta é inerente ao sistema capitalista. Apenas quando os trabalhadores se tornarem conscientes de si mesmos enquanto classe e agirem em seu próprio benefício, agirão de modo afirmativo para acabar com o sistema. Não há uma questão moral aqui. Não se trata de justiça. É sobre a luta entre aqueles que controlam seu próprio destino e não são alienados de seus meios de subsistência (os capitalistas) e aqueles que desejam ter essas condições para si, mas são impedidos disso (a classe trabalhadora).

Vamos falar um pouco sobre violência. Assim como a maioria das pessoas, eu abomino a violência. A violência degrada quem a perpetra e prejudica suas vítimas. Marx não incita violência, embora ele a trate como um resultado óbvio de períodos de transformações drásticas nas forças de produção. Ou seja, nos períodos de “derrubada”. Precisamos nos perguntar se as grandes transformações sociais já conseguiram evitar violência, e de onde essa violência veio. Considere, por exemplo, o movimento de luta por Direitos Civis nos Estados Unidos, tratado historicamente como o melhor exemplo de transformações “sem violência”. Mas será que realmente não houve violência? O fato é que o Estado e muitos indivíduos reagiram às demandas do povo negro com violência. Ocorreu muita violência durante o movimento de luta por Direitos Civis, mas essa violência não foi praticada em grande escala por aqueles que exigiam seus direitos. E, assim que essas demandas foram atendidas, a violência dispensada foi de outro tipo. Quando o Estado passou a processar e prender os membros de grupos de ódio, como a Ku Klux Klan, por exemplo, ele praticou um tipo de violência estatal que consideramos apropriada. Isso sem mencionar os ataques contra aqueles que lutavam por liberdade, fossem eles viajantes da liberdade, advogados pelos direitos civis ou qualquer pessoa que protegesse seu lar contra tentativas de linchamento, o que sempre envolvia muita violência.

E o quanto ao movimento dos trabalhadores? Desde guardas particulares a polícias locais e até ao exército, a violência sempre reprimiu aqueles engajados em lutas por direitos no ambiente de trabalho. O movimento dos trabalhadores dos Estados Unidos, na verdade, foi especialmente marcado pela violência, mais ainda que seus colegas europeus, em especial na região oeste do país, em que os setores de minas e energia com frequência invocavam as forças armadas para acabar com as greves. As lutas dos trabalhadores consistiam em greves e descumprimento de ordens, enquanto a reação era a violência.

Ao longo da história, os mais ligados ao sistema sob ataque são exatamente aqueles que recorrem primeiro a uma resolução violenta. Ser marxista não requer a crença em um levante armado para o surgimento de um novo mundo, na transformação violenta ou no autoritarismo. Significa reconhecer como um fato algo que já existe: a luta de classes. É nossa tarefa determinar e desenvolver as táticas e estratégias das quais os trabalhadores se valerão para criar consciência de classe e acabar com o sistema de exploração.

A razão pela qual o socialismo contemporâneo está entrelaçado ao marxismo é o entendimento de como a história se desenvolve e continuará se desenvolvendo com base não nos argumentos morais que evocamos, mas nas condições objetivas em que vivemos. Os trabalhadores não lutam contra princípios abstratos, mas contra seres humanos com interesses materiais. No “18 de Brumário de Luís Bonaparte“, Marx escreveu que “os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade”. Nós só podemos transformar o mundo se realmente compreendermos as forças que nos cercam. Se quisermos mudar o mundo, precisamos fazer parte dele, construir a partir dele – e para realmente fazer parte dele, precisamos compreendê-lo. É isso o que nos faz marxistas.

Sobre os autores

mora e trabalha em Chicago.