O Princípio de Tudo: um livro para destruir “mitos” que já abriu o debate
David Wengrow e David Graeber atiraram a Harari, Pinker e outros. Houve polémica e reflexão. “É possível pensar em formas diferentes” de viver – no passado e no presente.
- A história da Humanidade está mal contada? David Wengrow e David Graeber acham que sim e escreveram O Princípio de Tudo. Leia a entrevista com David Wengrow
“David Wengrow e o problema de reescrever a história humana. Ele e o falecido co-autor [David] Graeber, com motivação política, de forma simplista, usam-me, a Harari e a Diamond como contrastes, apesar de os nossos livros apenas relatarem o óbvio”, tweetou Steven Pinker acerca de O Princípio de Tudo. Na mesma linha, o filósofo Kwame Anthony Appiah acusou a dupla de autores de “escavar” na História à procura de “utopia”, veiculando interpretações ideológicas. Já o historiador holandês Rutger Bregman elogiou “um livro que vai gerar debate nos próximos anos” e o linguista e pensador Noam Chomsky classificou-o como um trabalho “desafiante” que nos leva a “repensar a natureza das capacidades humanas, bem como os momentos mais dignos de orgulho da nossa história”.
A edição de O Princípio de Tudo abalou parte do meio intelectual: eis um livro que arrisca contar uma história nova da Humanidade, procurando desmontar velhos “mitos” que, segundo os autores, já foram postos em causa pela arqueologia e antropologia. Sem medo da polémica, Graeber e Wengrow refutam as ideias de Pinker, Yuval Noah Harari, Jared Diamond e de outros autores best-sellers.
Ao Ípsilon, a quem concedeu uma longa entrevista, David Wengrow diz-se “impressionado” pela reacção ao livro, que atribuiu em parte ao carisma de David Graeber. “A sua presença aparece, muito poderosa, no livro graças à sua capacidade para dar vida a estas coisas e torná-las relevantes para o leitor de uma forma que ele sente ser pessoal e urgente.” Falecido em 2020, Graeber não pôde ver o debate “que já está a acontecer” em torno do livro. Este ano, foram editados em Portugal outros livros de David Graeber: Dívida - Os Primeiros 5000 Anos e Trabalhos de Merda (ambos Edições 70).
Wengrow diz que os textos de “Grande História” de Harari e companhia “recuperam, de forma explícita, ideias especulativas de há centenas de anos”, particularmente as de Jean-Jacques Rousseau e Thomas Hobbes. O primeiro dizia que o ser humano vivera num estado pacífico, feliz e estúpido, e dele saíra com a chegada da “civilização” e do Estado; o segundo afirmava que, sem o Estado, os seres humanos não controlariam os seus impulsos de guerrear, o seu estado original. Seja como for, a conclusão é pouca animadora: o mundo de hoje era inevitável, o produto lógico da evolução. O Princípio de Tudo rejeita isto e proclama: “Não há uma forma ‘original’ de sociedade humana.”
As histórias simples de Rousseau e Hobbes são “muito, muito poderosas”, afirma o autor ao Ípsilon. “São os nossos mitos culturais. São mitos europeus acerca das origens da desigualdade e são muito difíceis de remover porque os mitos não são apenas má história ou ciência pouco rigorosa, são muito mais do que isso: são as estruturas que aparecem antes das estruturas.”
O Princípio de Tudo — Uma Nova História da Humanidade
Autoria: David Graeber e David Wengrow
Editora: Bertrand
728 págs., 27,70€
Ao fazermos uma pergunta como “Quais são as origens da desigualdade?” estamos a aceitar que houve um período de pureza, sem desigualdade, do qual “caímos” – como uma queda do Paraíso. No livro, propõem-se novas perguntas: “Como é que ficámos presos? Como é que acabámos num único modo? Como é que perdemos aquela consciência política, outrora tão típica da nossa espécie?”
Hype justificado
O interesse pela “Grande História” é inegável, mas as pessoas “estão a ler as coisas erradas”, atira o antropólogo Miguel Vale de Almeida. Por isso, elogia O Princípio de Tudo, que desmonta “a narrativa sequencial”, “muito conservadora” e “ideológica”, que vai “da caça e da recolecção para a agricultura, o Estado e o capitalismo”. “Vai sempre dar a uma espécie de triunfo do capitalismo, triunfo do Ocidente, triunfo das ideias liberais como sendo o progresso. É essa ideologia do progresso que, de certa maneira, eles põem em causa.”
Afonso Dias Ramos, investigador do Instituto de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, diz que o hype em torno da obra é “absolutamente justificado”. “Claramente vai ser um livro ao qual as pessoas vão regressar e que, de certa maneira, é um marco no modo como se pensam estas macro-histórias da humanidade”, acredita. “Não me lembro de um livro nos últimos anos em que temos pessoas da política, psicologia, arqueologia, história a discutir o mesmo livro.”
Como Vale de Almeida, Dias Ramos lamenta que continue a haver discussões, também na academia, mas sobretudo “no dia-a-dia” a partir de pressupostos que “já foram completamente refutados” pela arqueologia e antropologia. A valorização da vida e do pensamento dos humanos pré-históricos “é o grande passo” dado neste novo livro: trata “as pessoas na Pré-história como nossos iguais, com a mesma complexidade, o mesmo tipo de questões filosóficas, o mesmo tipo de anseios estéticos.”
História “voltada para o futuro”
Rui Gomes Coelho, arqueólogo especializado em colonialismo, gostou de ler um “projecto político”, uma “grande narrativa” como as de Harari e Diamond, mas “voltada para o futuro”. “A nossa imaginação política está muito limitada pela Modernidade” e um livro como este abre possibilidades: “A Humanidade é diversa, é complexa, não tem uma única direccionalidade.” O livro integrará um grupo de leitura na Universidade de Durham, em Inglaterra, onde Coelho dá aulas, porque “agiliza o pensamento”.
Para Vale de Almeida, esta diversidade da História está agora a ser valorizada. “Se pensarmos em pensadores como o Ailton Krenak, que é um intelectual indígena brasileiro, vemos que a crítica e as propostas que ele faz a partir da experiência indígena – uma experiência muito complexa de gestão da natureza, e não de viver na natureza – estão a ter muita influência no pensamento ecológico.”
"É possível pensar em formas diferentes” de viver, resume. "O que eles mostram no livro é que sempre foi assim. As comunidades humanas sempre tiveram uma reflexão constante sobre as suas condições de vida, só que, em certos contextos, conseguiram mudá-las. De certa maneira, somos nós que estamos numa situação complexa de dificuldade de mudar. Estamos num período em que se pode aprender muitíssimo com outras formas de vida, se elas deixarem de ser vistas como sendo passado que passou e passarem a ser vistas como alternativas contemporâneas.”
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