A crise da habitação
Crónica no jornal PÚBLICO
A crise da habitação, esse problema social e político que tem hoje uma enorme incidência não só em Portugal, mas em quase toda a Europa, é quase sempre entendida como falta de alojamento, sobretudo nas zonas metropolitanas. Daí que a política da habitação se reduza à ideia de uma fábrica do alojamento que rentabiliza cada metro quadrado e transforma a construção em produto financeiro. Os novos bairros metropolitanos, nas periferias de Lisboa, de Paris ou de Milão não se diferenciam muito uns dos outros, são sistemas uniformes, correspondem a um standard que faz com que as pessoas que têm o seu alojamento nos quartiers à vivre dos arredores de Marselha, por exemplo, estejam perfeitamente irmanadas com os que têm o seu alojamento nos arredores de Lisboa ou nos arredores de outra cidade com o seu centro histórico que a lógica da patrimonialização pretende preservar.
“Preservar”, entenda-se, significa isolar o centro, torná-lo completamente descontínuo em relação à sua geografia, erguer muralhas impenetráveis (não precisam de se apresentar sob a forma de realidade física) que garantem um trânsito em sentido único: sai-se dali para ir viver nas zonas metropolitanas insulares, mas o caminho inverso cumpre-se apenas como ida para o trabalho. Esta epidemia da banalização urbana teve o seu início e intensificou-se nas metrópoles, mas estendeu-se às pequenas cidades, depois às vilas, e actualmente até muitas aldeias têm a sua pequena zona demarcada de alojamento construído segundo o modelo estereotipado. Paradoxalmente, esta epidemia que se deve – não exclusivamente – à especulação e financeirização dos produtos imobiliários, e que portanto configura na perfeição a lógica da cidade neoliberal, onde o poder político se mostra incapaz de intervir, deu lugar a urbanizações e “arquitecturas totais”, iguais àquelas que nasceram das políticas centralistas e dirigistas dos Estados totalitários. É muito interessante identificar este ponto onde se encontram os contrários em grande harmonia.
Se em vez de alojamento tivesse utilizado a palavra “habitação”, eu estaria a utilizar o eufemismo com que os poderes públicos falam de “política de habitação” e, como eles, estaria a esconder algo essencial: há de facto uma generalizada “crise da habitação” que não pode ser entendida meramente como falta de casas para as pessoas morarem (a própria palavra “morar” revela-se aqui inadequada) e não começou quando essa falta ganhou graves dimensões. Nem acabaria se porventura as políticas contemporâneas de alojamento conseguissem assegurar uma casa para toda a gente. A crise da habitação a que me refiro diz respeito à perda do sentido do habitar, que consiste em cuidar do próprio espaço e manter uma relação com ele. O que se tornou quase impossível nos bairros que servem um único fim, o do alojamento, é a própria experiência que se diz originalmente na palavra “morar”. Temos de pensar que o vector da nostalgia originária é o habitar, sentir-se na casa própria. No romance fragmentário de Novalis, Heinrich von Ofterdingen, Heinrich pergunta aos viandantes: “Para onde vão?”. Ao que eles respondem: “Sempre para casa”. O grande herói da nostalgia, Ulisses, também responderia da mesma maneira. Ter um alojamento, essa exigência mínima que está implícita nas “políticas da habitação”, não é o mesmo que habitar: nos territórios urbanos moldados pela fabricação de alojamentos deu-se a perda do Lugar (seja-me permitido usar a maiúscula), expande-se o informe e o uniforme, desenvolve-se a cidade contínua onde existem espaços e fluxos, mas não há lugares. Só em estado de anestesia radical, conforme a uma vida “não-habitante”, se pode aí viver.
O problema do habitar não é apenas do âmbito da arquitectura e do urbanismo, conheceu há quase um século uma entrada triunfal na filosofia. Heidegger é o grande filósofo do habitar, sob a égide da poesia de Hölderlin, o poeta que reconheceu nos humanos uma medida e um mérito: o de “habitar poeticamente esta Terra”. É também sob o signo de Hölderlin e da sua “vida habitante” que Giorgio Agamben, traçando uma arqueologia do habitar para lhe revelar o mais fundo significado, estabeleceu uma oposição pertinente entre habitar e construir que devia estar exposta como aviso em todos os ateliers de arquitectura. A tese de Agamben é a de que o nexo entre o habitar e o construir se quebrou num certo ponto e a arquitectura entrou numa crise radical que advém desta nova condição de impossibilidade da habitação (a tradução portuguesa do texto de Agamben, “Habitar e Construir”, pode ser lido online, na revista Punkto).
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