Deus ex Media
A relação entre os media e a religião, ou antes, entre os media e o catolicismo romano, é um ângulo de análise imperativo para perceber o acontecimento da Jornada Mundial da Juventude. Ali, até os confessionários foram concebidos e “instalados” (no sentido em que se fala de uma instalação artística) para serem telegénicos e resultarem numa “bela” exibição fotográfica e televisiva: eis o eloquente emblema da negociação entre o público e o privado, em que o primeiro goza de grandes vantagens. Esta mediatização, de preferência sob a forma da televisualização, é um fenómeno aceite e promovido nas cerimónias cristãs, mas não é uma prática judaica nem islâmica.
O filósofo Jacques Derrida dedicou a este assunto uma longa intervenção, num colóquio em Paris, em 1997, que teve por título “Surtout pas de journalistes!” (“Sobretudo nada de jornalistas!). Tal injunção, imagina Derrida recorrendo a uma óbvia anacronia, teria sido aquela que Deus, do Velho Testamento, inculcou tacitamente em Abraão, quando o mandou subir ao monte onde deveria sacrificar Isaac, o seu único filho. Para designar o fenómeno fundamentalmente cristão da mundialização televisiva da religião, Derrida engendra um neologismo que evoca a sede romana: “mundialatinização”. No entanto, esta “mundialatinização” está sempre ligada, na sua produção, a fenómenos nacionais. Isso tornou-se muito óbvio na Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa. Derrida sugere até que o tão famoso “regresso do religioso” tem de ser avaliado e compreendido em função destas manifestações eminentemente mediáticas.
Como não podia deixar de ser, há um preço a pagar por isto, que a televisão, sobretudo, cobra com juros altíssimos. Consistem esses custos no triunfo do Kitsch. É conhecida uma frase do gramático Pierre Fontanier (1765-1844), no seu tratado sobre as figuras do discurso, sobre os tropos, onde ele diz, ecoando uma afirmação de Boileau, que se produzem mais figuras de estilo, num só dia, no mercado parisiense de Les Halles, do que em toda a Eneida. Do acontecimento religioso da semana passada podemos dizer o mesmo: produziu-se mais Kitsch, em Lisboa, durante uma semana, do que em décadas de produção literária e artística.
O Kitsch monumental esteve bem patente nos palcos-altares e em toda a parafernália para ser tele-vista. Quem conhece os gostos e os instrumentos do Kitsch ideológico, encontrava ali material para frutuosas comparações. Mas se quisermos analisar o acontecimento quanto ao fluxo de Kitsch produzido, temos de ir além da concepção tradicional que vê esse conceito por um prisma meramente estético que usamos para identificar os objectos de uma arte de massa, estereotipada, de “mau gosto”. Devemos uma noção de Kitsch muito mais alargada, que não se fica pelas propriedades formais de certos objectos, ao escritor vienense Hermann Broch, que foi ao ponto de elaborar filosoficamente o que seria o Kitsch como “modo de vida”, abrindo assim essa noção ao registo mais vasto da atitude existencial e a um tipo de actividades e experiências humanas. Aquela emoção estética a que assistimos, a satisfação emocionada com que cada imagem, cada testemunho, cada relato, cada comentário, cada citação, diziam uma única coisa, “vejam como é belo e emocionante!”, é um gesto que consiste em olhar-se ao espelho do embelezamento, fazendo surgir imediatamente a mentira do Kitsch.
Este “vejam como é belo!” ou “vejam como nos satisfazemos de emoção pela emoção que nós próprios produzimos” é uma ilustração perfeita do modo como Broch definiu o Kitsch: a subversão da ética pelo efeito estético. Não é o acontecimento em si que é Kitsch, não estou a sugerir que um acontecimento religioso como aquele que teve lugar em Lisboa tem, em primeiro lugar, um vínculo necessário com o Kitsch.
Kitsch é a sua encenação, o modo como ele é produzido e reproduzido pelos media, isto é, o discurso e as imagens de segundo grau que ele engendra e que, muito embora fazendo parte da lógica da mediatização cristã, muito facilmente vão para além dos seus próprios fins. Há momentos em que o Kitsch se pode tornar uma coisa nauseabunda e é difícil imaginar que a própria hierarquia da Igreja não o reconheça e não se sinta incomodada por ela. A vida Kitscht visa fazer coincidir a esfera do ideal com a esfera da realidade, aquilo a que Broch chamou “a ligação entre o céu e a terra”. Momentos desses, sobretudo nas televisões, fluíram ao longo da semana numa torrente imparável. Foi um dilúvio.
Livro de recitações
“Cada um fala a sua língua, mas entendemo-nos todos porque é a linguagem do amor”
In Expresso online, 3/08/2023
Tomo, um pouco ao acaso, este título de uma breve reportagem do Expresso onde se citam as declarações de um “peregrino” a uma jornalista. Kundera, que seguiu a lição de Hermann Broch, para a analisar o “Kitsch ideológico” dos regimes totalitários, concluindo que no mundo idealizado do Kitsch “a merda não existe”, deu este exemplo: uma criança a correr feliz atrás de uma bola num prado florido não tem em si nada de Kitsch. O Kitsch nasce a partir do momento em que alguém diz ou representa assim esse acontecimento: “Vejam como é belo uma criança a correr atrás de uma bola num prado florido!”. Este redobramento, que visa relatar uma verdade emocionante, através do embelezamento, da mentira da linguagem emocional estereotipada e portanto induzida, é aquele que podemos ver neste título (a não ser que ele tenha um sentido irónico), que é apenas uma gota no vasto oceano do Kitsch produzido ao longo de uma semana pela mediatização da Jornada.
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