Por EUGÊNIO BUCCI*
Sem qualquer base nos fatos, na razão e no argumento, como
preconizava Hannah Arendt, a opinião que comove os homens não passa de
uma grife ideológica
À medida que a tragédia se adensa no Oriente Médio, o destampatório
performático triunfa e cega. A cada lance obscuro e trágico, mais se
excitam os espectadores, em sua superficialidade chapada e esfuziante.
As redes sociais entram em alvoroço, as plateias repetem palavras de
ordem lacrimosas e a carnificina se converte em melodrama pungente e
barulhento. Essa gritaria feita de platitudes altissonantes e
insensíveis é a prova definitiva de que “não há limites para a insânia”,
como dizia um velho jornalista. A opinião pública entra em demência.
Um ser racional – esse tipo em extinção – pode até vislumbrar, por
teimosia, uma esperança tímida um acordo de paz para a Faixa de Gaza e
suas redondezas, mas não terá nenhuma ilusão de que o bom senso terá vez
sobre a face da Terra. A guerra avança como um estranho e mórbido
entretenimento participativo. Essa é a nossa maior danação.
As sandices não se resumem às manifestações de rua que celebram
chacinas; também aparecem nos grupos de WhatsApp e nas conversas
fortuitas. Atravessam a rua na sua frente, estão no ponto de ônibus, na
fila do supermercado – são campeãs de audiência. Ativistas de sofá
consomem as mortes estampadas no noticiário como quem saboreia um gênero
quente de realidades ampliadas. Sentem a imaginação salivar. Viciam-se
nas sensações do terror e pedem bis.
Não, as plateias não se informam sobre os acontecimentos – elas se
empanturram e se dopam, insaciáveis. Como se fosse um estimulante
químico, a guerra lhes oferece doses potentes de emoção fácil. E lá vêm
os memes e as lacrações. Os adictos acreditam que têm um lado e se
envaidecem de sua bravura imaginária, em exibicionismos narcísicos. São
guerreiros de fim de semana. Sua essência está na aparência. Mastigam
imagens de assassinatos ou de bombardeios para anestesiar a carência de
que mais se ressentem: carência de afeto, de sentido e de relevância.
O que existe no mercado para deliciar essas multidões de ninguéns?
Poderia ser uma final de campeonato de futebol, talvez. Poderia ser uma
briga de torcida embaixo de um semáforo. Poderia ser um reality show
na TV. Agora, porém, o prato do dia é o morticínio. O sujeito se serve e
se “engaja”, para usar a expressão em voga. Em suas fantasias íntimas, é
o herói de uma causa sacrossanta. Ele consome. Ele brada. Ele e seus
homólogos estão em pleno gozo.
Ainda no século XVII, Espinosa advertiu: “Os homens são comovidos
mais pela opinião do que pela verdadeira razão”. Pouco depois disso, as
chamadas “massas urbanas” entraram em cena como um subproduto das
cidades que respiravam a fuligem das chaminés industriais. Nascidas para
ser a cara-metade (bastarda) do capital (selvagem), elas nunca formulam
ideias, nem poderiam; apenas se arrastam, gelatinosamente pegajosas, em
ondas pulsionais, ao sabor de “opiniões”, não da razão. O seu pão é o
seu circo.
Hoje, o nosso problema é que as massas do século XXI são ainda mais
rudimentares que seus pares de duzentos ou trezentos anos atrás. Sim, o
que lhes acende a libido é a opinião, mas, agora, uma opinião em uma
forma rebaixada. Sem qualquer base nos fatos, na razão e no argumento,
como preconizava Hannah Arendt, a opinião que comove os homens não passa
de uma grife ideológica, um slogan prêt-à-porter, um bem de consumo não durável, como um refrão de música que ganha o Grammy.
Foi mais ou menos assim que chegamos a essa babel de frivolidades
perversas e opacas, repleta de oradores que não entendem uma letra do
que pronunciam. Nunca se viram tantos influencers pontificando sobre Israel e o Hamas.
Nos tempos da pandemia, essas mesmas figuras atuavam como
epidemiologistas, imunologistas ou infectologistas de ponta. Todas
discorriam sobre RNA mensageiro, ivermectina e máscaras cirúrgicas. Em
seguida, assumiram o papel de especialistas em Ucrânia, alfabeto
cirílico. Davam aulas de trinta segundos sobre a Grande Rússia. Agora,
tagarelam sobre as cosmogonias que se enfeixam em Jerusalém. Não
compreendem o que falam.
Às vezes surgem notícias de crianças que, brincando de super-heróis,
pulam da janela para sair voando e se esborracham no chão. São vítimas
da incapacidade, tipicamente infantil, de dissociar o mundo real do
universo dos desenhos animados. Pois os adultos de hoje, em sua maioria,
padecem da mesma incapacidade. Não percebem a diferença entre o juízo
de valor e o juízo de fato, não desconfiam da fronteira entre a verdade
factual e a criação ficcional e não distinguem o princípio de prazer do
princípio de realidade. Acreditam que toda disputa de poder se reduz a
uma disputa de narrativas. Ato contínuo, embarcam numa narrativa
pré-fabricada e, a bordo dela, saem voando nas telas para vencer a
batalha contra os “do mal”.
Ao consumir a guerra como um espetáculo interativo, a cultura do
entretenimento sepulta a razão, normaliza a selva e ela se rende. Somos
um mundo de crianças crescidas que se divertem com brinquedos letais.
Alguém aí ainda vai se esborrachar de novo contra o chão da realidade.
*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica).
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