Translate
quarta-feira, 31 de julho de 2024
Assino por baixo
Eleição na Venezuela – como resolver o impasse
Por LISZT VIEIRA*
Na Venezuela, embora reprimida, a oposição de direita é tolerada e concorre à eleição presidencial, mas eu não botaria a mão no fogo por um ou outro: tudo tem que ser provado
1.
Como era esperado, tanto o governo como a oposição ganhou a eleição na Venezuela. Nenhum dos lados aceitaria a derrota, já se sabia antes. Pelo resultado oficial, o atual presidente Maduro ganhou com 51% dos votos. Isso é perfeitamente possível, assim como o contrário também seria possível. Como todo candidato perdedor diz que venceu e que houve fraude, isso tem de ser provado. Vide os exemplos de Donald Trump nos EUA e Jair Bolsonaro no Brasil.
A Venezuela é um regime militar com fachada civil. Eu chamo de democracia autoritária. Não chamo de ditadura porque nunca ficou provado que houve fraude em eleição presidencial. E existe oposição. Mas há denúncias de tortura, censura e perseguição política.
Na Venezuela existe oposição de direita, reprimida, mas continua existindo. A líder da oposição, Maria Corina Machado, é de extrema direita. Sua candidatura foi barrada, mas ela não foi presa sem provas, como ocorreu com Lula na democracia brasileira. Segundo li, ela assinou a Carta de Madri, que reuniu fascistas da Europa e América Latina.
Ela é da turma de Jair Bolsonaro e Javier Milei. A presença dela na política venezuelana seria comparável a imaginar Marighela candidato da oposição a presidente durante a ditadura militar. Na ditadura brasileira, a esquerda não era tolerada, pra dizer o mínimo. Na Venezuela, embora reprimida, a oposição de direita é tolerada e concorre à eleição presidencial.
O curioso é que a Venezuela é considerada de esquerda porque os militares não quiseram entregar o petróleo às empresas americanas. Mas a política econômica é neoliberal, existe uma enorme desigualdade social e, para sobreviver, cerca de 20% da população emigrou para outros países.
Nas eleições parlamentares de 2015, a oposição venceu com 7,7 milhões de votos, enquanto os governistas tiveram 5,6 milhões. Os resultados foram reconhecidos e ninguém falou em fraude. Como os exilados em outros países, em grande número, não puderam votar, isso favoreceu o candidato Nicolás Maduro. Não sei se houve fraude, mas isso tem de ser provado. Eu não botaria a mão no fogo, seja em favor do governo ou da oposição. As alegações de violação de direitos humanos, como tortura, também precisam ser provadas.
2.
O assessor internacional do Presidente Lula, o embaixador Celso Amorim, pressionou o presidente Nicolás Maduro a divulgar as atas eleitorais. O Brasil ainda não reconheceu oficialmente a vitória de Nicolás Maduro na eleição presidencial. Enquanto isso, foi anunciado que a Venezuela decidiu expulsar diplomatas de países que contestaram a vitória de Nicolás Maduro e vai retirar o pessoal diplomático da Argentina, Chile, Costa Rica, Panamá, Peru, República Dominicana e Uruguai.
Mas há também uma questão geopolítica. O governo da Venezuela foi sancionado pelo governo americano, pelo Tesouro e Departamento de Estado. E sofre um cerco dos EUA. É verdade que, depois de 11 anos no poder, Nicolás Maduro enfrenta um desgaste, mais por “fadiga de material” devido ao fracasso econômico do que por motivos ideológicos. Como ocorre em toda parte, a maioria do eleitorado não vota por razões ideológicas. Ao vencer, se é que venceu mesmo, Nicolás Maduro mostra que, com todo o barulho da oposição na mídia, o governo tem maioria.
Sinceramente, talvez nunca fique esclarecido se houve ou não fraude. Mas existe uma maneira de resolver isso definitivamente. Se por acaso os militares venezuelanos decidirem fazer acordos com empresas americanas de petróleo, a Venezuela passaria imediatamente a ser um exemplo de democracia e nunca mais ninguém iria questionar o resultado da eleição. Vide o caso da Arábia Saudita, a ditadura mais sanguinária do mundo e tratada como democracia pela mídia em geral.
Assim, voltaríamos a ter na Venezuela a “pax americana” e ficaria tudo resolvido. Amém!
*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond). [https://amzn.to/3sQ7Qn3]
O PCV da Venezuela democrática
Se podrá estar en desacuerdo con algunas actitudes del Gobierno Bolivariano, porque perfectos no son (son humanos) y seguro que sus miembros habrán cometido sus errores. Pero si en algo son impecables es en los procesos electorales. Entre otras cosas porque su sistema electoral es tan transparente que resulta prácticamente imposible el fraude. Eso lo saben muy bien los dirigentes del Partido Comunista de Venezuela (PCV).
También saben que en todos los procesos electorales (y en tantos años van unos cuantos) la oposición oligárquica y pro yanqui ha actuado de idéntica manera. Pues, aún así, el PCV ha hecho suyo su discurso y ha acusado al Gobierno presidido por Nicolás Maduro de fraude y de pretender despojar al pueblo de sus derechos democráticos.
Este es el texto del PCV:
Comunicado sobre las elecciones presidenciales
El Buró Político del Comité Central del Partido Comunista de Venezuela (PCV) hace un llamado a las fuerzas genuinamente democráticas, populares y patrióticas a unir fuerzas para defender la voluntad del pueblo venezolano que se expresó este domingo 28 de julio con una clara intención de cambio político en el país.
Alertamos a la opinión pública internacional que así como el Gobierno de Nicolás Maduro ha despojado al pueblo venezolano de sus derechos sociales y económicos, hoy pretende privarlo de sus derechos democráticos.
La denuncia de un supuesto intento de vulneración del sistema electoral, hecha por el presidente del Consejo Nacional Electoral (CNE), Elvis Amoroso, lejos de brindar las garantías necesarias al proceso, profundizan las dudas sobre los resultados presentados al país. En tal sentido, exigimos al CNE la publicación de la totalidad de las actas de votación ─tal y como lo establece el reglamento electoral─ así como la máxima transparencia en el escrutinio de los resultados.
La proclamación de Nicolás Maduro como presidente reelecto bajo este escenario de incertidumbre en el que los resultados presentados por Amoroso contrastan abiertamente con el ánimo que imperó durante la jornada electoral, no es más que una provocación que abre paso a la configuración de situaciones de violencia.
En estos momentos se registran espontáneas movilizaciones populares en distintos puntos del país. Desde el PCV no solamente respaldamos el clamor de respeto a la voluntad popular, sino que hacemos un llamado a las fuerzas militares y policiales a no reprimir al pueblo.
En estas horas decisivas para el presente y futuro del país, las y los comunistas ratificamos nuestra convicción de construir espacios de amplia unidad para fortalecer la lucha por la recuperación de la Constitución y el estado de derecho en Venezuela.
¡Gobierne quien gobierne, los derechos se defienden!
Caracas, 29 de julio de 2024
Fuenteinsurgente.org
segunda-feira, 29 de julho de 2024
Ao contrário de muitas outras organizações comunistas, não fomos divididos pela guerra. O internacionalismo foi a escolha óbvia para todos nós.
A Frente dos Trabalhadores da Ucrânia-RFU ( Робітничий Фронт України ) é um grupo marxista-leninista clandestino fundado em 2019. Abaixo pode ler-se a versão em inglês de uma entrevista concedida a Karl Gunnarsson, Secretário Internacional do Partido Comunista da Suécia - SKP, que foi publicada no diário oficial do SKP "Riktpunkt" .
A entrevista fornece informações interessantes sobre o que os comunistas ucranianos pensam da guerra imperialista em curso e o sofrimento ao qual o seu país foi submetido, apresenta também um contexto para a guerra e explica o que estava por trás da chamada revolução Euromaidan.
Entrevista com a RFU, Frente dos Trabalhadores da Ucrânia
K. Gunnarsson: Primeiramente, gostaríamos que apresentasse a sua organização aos nossos leitores. Como foi formado o partido? Pode falar-nos brevemente sobre a história da organização?
RFU: A Frente dos
Trabalhadores da Ucrânia (Robitnychyy Front Ukrayiny, RFU) é uma
organização marxista-leninista clandestina. Fomos fundados no final de
2019 por um pequeno grupo de jovens sem ligações com o antigo e
decadente movimento de esquerda ucraniano. Começámos do zero e desde
então trabalhamos com agitação, propaganda e educação.
Em 2020,
estabelecemos os estatutos da RFU baseados nos princípios do centralismo
democrático. No mesmo ano, foi escrito também o nosso manifesto, que
descreve e fortalece a nossa orientação ideológica. O ano de 2021 foi um
ano importante para nós, pois conseguimos espalhar a nossa propaganda
explorando o crescente descontentamento com o regime entre o povo.
O
ano de 2022 também foi decisivo. Em fevereiro, antes do início da
guerra, formulámos uma posição clara sobre a escalada do conflito
imperialista. Essa posição foi tornada pública em 23 de fevereiro, menos
de um dia antes das primeiras explosões em Kharkiv. Ao contrário de
muitas outras organizações comunistas, não fomos divididos pela guerra. O
internacionalismo foi a escolha óbvia para todos nós.
Durante o
primeiro mês da guerra, muitos estavam preocupados que a existência da
organização fosse ameaçada. Muitos membros da RFU, especialmente aqueles
no leste da Ucrânia, enfrentaram enormes dificuldades. Apesar disso,
conseguimos retornar rapidamente ao nosso trabalho e, no verão de 2022, o
nosso nível de atividade foi ainda maior do que era antes da guerra.
Desde
então, crescemos significativamente, tanto quantitativa como
qualitativamente. Fizemos grandes progressos na melhoria dos nossos
círculos de estudo marxistas. Também conseguimos expandir as nossas
operações significativamente desde o início da guerra. Além da agitação,
propaganda e educação, agora trabalhamos mais diretamente com
trabalhadores, estudantes e soldados. Também trabalhamos com refugiados e
migrantes ucranianos na Europa.
Agora, em 2024, a questão da
mobilização é aguda na Ucrânia. Estamos a desenvolver planos para
combater o terror da mobilização das autoridades contra a população.
Luta entre os oligarcas pela aliança com o Leste ou o Oeste - Euromaidan e o contexto da guerra
K. Gunnarsson: A revolução Euromaidan é um evento importante na história moderna da Ucrânia, especialmente se se vê a guerra em curso no contexto da guerra após a invasão da Ucrânia pela Rússia. Como é que a Frente dos Trabalhadores da Ucrânia vê a Euromaidan?
RFU: Para
entender a história de um acontecimento, devemos entender sempre o seu
contexto. Com o colapso da União Soviética, foram rompidos muitos laços
económicos entre as antigas repúblicas soviéticas. Foi perdido um enorme
potencial industrial durante a privatização. O capital estrangeiro
esforçou-se para maximizar as oportunidades de ganhar uma posição em
novos mercados.
Esses processos foram semelhantes em vários
países que anteriormente faziam parte da União Soviética, mas a Ucrânia
tinha as suas próprias condições específicas. Primeiro, era
principalmente através da Ucrânia que o gás era transportado de leste
para oeste durante a era soviética. Quando falamos sobre a economia e a
política da Ucrânia, devemos sempre recordar os gasodutos. Segundo, a
Ucrânia perdeu grande parte do seu poder militar, incluindo armas
nucleares, nos anos 90. Terceiro, a Ucrânia ocupa uma posição geográfica
especial no mapa da Europa. Finalmente, a Ucrânia é um país rico em
recursos naturais.
Desde os anos 90, tem havido uma luta
invisível, mas significativa, entre vários clãs oligárquicos na Ucrânia.
Isso manifestou-se tanto economicamente, na divisão da indústria
soviética, como politicamente na forma de confronto entre um grande
número de partidos burgueses. Claro, a orientação política desses
partidos frequentemente coincidia com a orientação económica dos seus
patrocinadores. Para os oligarcas no leste da Ucrânia era claro que era
mais vantajoso manter contatos económicos e políticos com a Rússia do
que com o Ocidente, e vice-versa. Também houve oligarcas que conseguiram
cooperar com capitalistas do Ocidente e do Oriente por um tempo
relativamente longo: por exemplo, Akhmetov, o homem mais rico da
Ucrânia.
A divisão em Leste e Oeste foi determinada não tanto pela geografia, mas pela produção em si. A parte oriental industrializada do país com um setor de mineração desenvolvido procurou a cooperação com a indústria russa para não perder mercados na concorrência com os países ocidentais. Por outro lado, as partes ocidental e central da Ucrânia, que eram mais dominadas pela agricultura, naturalmente queriam vender mais "recursos de matéria-prima" para o fabrico de bens para os EUA e a UE. Deve-se notar que as diferenças culturais também foram exploradas nessa luta, contribuindo para o fomento deliberado da inimizade entre ucranianos de diferentes regiões.
Havia
também uma classe trabalhadora nesse caos. Hoje, a greve de 1993 que
abalou o país inteiro raramente é lembrada. No entanto, na década de
1990, os trabalhadores não conseguiram estabelecer-se como uma força
independente. O Partido Comunista da Ucrânia, por sua vez, integrou-se
cada vez mais no espetáculo político burguês a cada ano, afastando-se
mais e mais da luta real.
O que estamos a tentar dizer é que a
Ucrânia está realmente dividida desde a chamada independência. Foi
dividida por vários grupos de capitalistas ucranianos com a ajuda dos
seus parceiros estrangeiros (ou patrões). O que aconteceu em 2014 foi
uma continuação lógica dessa divisão. Em 2013, o governo de Yanukovych
não conseguiu manter dois assentos parlamentares, e então Yanukovych
escolheu integrar a Ucrânia na união aduaneira, enquanto a parte da
burguesia que estava na oposição queria a integração na União Europeia. A
oposição realizou uma campanha de propaganda bem-sucedida, recebeu
apoio de parceiros ocidentais e venceu. Yanukovych fugiu do país e a
Rússia aproveitou a oportunidade e anexou a Crimeia.
Ao mesmo
tempo ocorreram no leste manifestações pró-Rússia. Como a Euromaidan, as
forças pró-Rússia buscaram atingir as secções mais amplas da população
e, portanto, estavam preparadas para usar qualquer slogan - do
"antifascismo" ao nacionalismo russo. Em abril, foram proclamadas
"repúblicas populares"em Donbass com o apoio da Rússia e, desde então, o
sangue fluiu sem parar na Ucrânia.
No final, não foi derramado
sangue pelas ideias em que os apoiantes de Maidan e seus oponentes
acreditavam. Foi derramado sangue pelo direito da burguesia russa e
ocidental a obter o maior pedaço possível do bolo ucraniano. Para um
país como a Ucrânia, a guerra era inevitável, porque é assim que o
capitalismo funciona no seu nível mais alto.
K. Gunnarsson:Quais são, na sua opinião, as razões para a invasão russa da Ucrânia?
RFU: A invasão russa em 2022 tem as mesmas raízes da guerra no Leste em 2014. É apenas uma nova fase num antigo conflito. Aqui estão alguns fatores importantes:
- Crise económica (crise do Corona vírus). Sob o capitalismo, a guerra é frequentemente uma saída para crises económicas.
- Concorrência feroz entre empresas internacionais de petróleo e gás em 2020-2022. Acima mencionámos, por exemplo, os gasodutos na Ucrânia.
- Construção do Nord Stream 2.
- Aproximação entre Rússia e China e distanciamento da Rússia do Ocidente. Enquanto a Rússia ainda tentava manter uma posição no Ocidente em 2014, ela reorientou-se agora completamente em direção ao bloco chinês.
- O fracasso dos capitalistas russos em vencer a batalha pela Ucrânia entre 2014 e 2022.
Os fascistas são os cães de guarda da oligarquia
Karl Gunnarsson : O
presidente russo Putin afirmou que um dos objetivos da invasão da
Ucrânia é "desnazificar" o país. Isso é sem dúvida um pretexto, mas o
facto é que houve e ainda há uma presença fascista na Ucrânia. Como é o
fascismo na Ucrânia hoje e quão envolvido e influente é ele no governo
ucraniano e noutras instituições estatais?
RFU:
Ironicamente, a extrema direita na Ucrânia fortaleceu-se muito depois
da chamada "desnazificação" de Putin ter começado. Antes da invasão
russa, havia de facto fascistas, mas eram marginalizados aos olhos da
maioria. O seu pico de força foi em 2014-2015, quando o governo
precisava deles como força militar. Durante o período de 2016-2021, ano
após ano, eles perderam mais e mais influência na sociedade ucraniana.
Uma
guerra em grande escala elevou os fascistas a um nível que eles nunca
poderiam ter sonhado em 2014. As ideias de extrema direita cresceram em
popularidade e muitos voluntários juntaram-se a unidades de extrema
direita nas forças armadas. Durante as batalhas em Mariupol, foi
realizada uma campanha bem-sucedida para glorificar o batalhão Azov. No
início da guerra, a repressão na Ucrânia também aumentou
significativamente, e a polícia estadual usou e continua a usar
extremistas de direita como forças auxiliares.
Não se pode dizer
que os fascistas tenham tido grande sucesso político em 2022, mas eles
definitivamente aumentaram a sua influência no exército e na polícia. Em
geral, serviram como lacaios da oligarquia ucraniana e continuam a ser
os seus cães de guarda. Outra coisa é, claro, que quanto mais fortes
eles se tornarem, mais podem tentar tomar o poder político nas suas
próprias mãos.
Agora, em 2024, a situação está melhor em
comparação com 2022. O facto é que os fascistas, incluindo antigos
"heróis", apoiam ativamente a política de mobilização do estado contra o
povo. Portanto, os fascistas estão a perder popularidade, pois muita
gente está a começar a ver a sua natureza destrutiva.
O futuro: nenhuma possibilidade de qualquer tipo de vida normal na Ucrânia sob o capitalismo
K. Gunnarsson: O povo ucraniano sofreu muito por causa da guerra em curso. O que quer dizer aos nossos leitores sobre a situação no terreno, quer para a população quer para a sua organização e a sua luta? Tem alguma ideia sobre como deve ocorrer uma reconstrução da Ucrânia? O povo ucraniano será capaz de regressar a alguma forma de normalidade após o fim da guerra?
RFU: Nas áreas próximas da frente de batalha, a situação é previsível: a mobilidade é limitada, muitos não têm eletricidade, gás e água, os preços dos alimentos são altos e a ameaça às vidas e à liberdade dos civis é alta (é importante notar que a ameaça vem de ambos os lados do conflito).
Na parte central da Ucrânia, os foguetes também matam civis, como aconteceu recentemente em Kharkiv, mas isso está longe de ser o único peso da guerra sobre a população. A Rússia destrói as infraestruturas energéticas da Ucrânia, levando a apagões. É um grande problema para a nossa organização também porque fazemos muito trabalho online. Mas o maior problema para os civis da Ucrânia é a mobilização. Fizemos um vídeo sobre esse tópico no nosso canal do YouTube com legendas em inglês e recomendamos vivamente a sua visualização.
Na Ucrânia, a mobilização acontece por meio do uso constante da violência. Centros locais de recrutamento e apoio social são responsáveis pelo processo. Lá, as pessoas são sequestradas nas ruas e forçadas a entrar na guerra. Os sequestrados às vezes são maltratados, e as pessoas são frequentemente forçadas a assinar documentos contra sua vontade e enviadas diretamente para a luta sem preparação. Até mesmo pessoas com deficiências às vezes são forçadas a entrar na guerra. Recentemente, um homem com deficiência foi assassinado por recrutadores na região de Zhytomyr.
Ao mesmo tempo, as fronteiras da Ucrânia estão fechadas para todos os homens entre os 18 e os 60 anos. Por causa do terror da mobilização e das fronteiras fechadas, muitos ucranianos agora sentem que a Ucrânia é como um campo de concentração.
Quanto à reconstrução pós-guerra, não temos confiança de que ela será capaz de ocorrer em escala total sob o capitalismo. A infraestrutura ucraniana foi amplamente destruída pelos próprios capitalistas ucranianos - sem guerra – por isso é improvável que eles consigam reconstruir o que foi destruído na guerra.
Todos aqueles que defendem a recuperação da Ucrânia depositam as suas esperanças em "investimento externo". Ignoram completamente o facto de que a única coisa que a Ucrânia atualmente recebe de fontes externas é dívida. Por exemplo, o governo receberá US$ 15,5 mil milhões em novos empréstimos e pagará US$ 14,9 mil milhões ao FMI por empréstimos anteriores. Então, se houver algum "dinheiro para a reconstrução", ele simplesmente regressará aos credores.
Não há possibilidade de qualquer tipo de vida normal para a Ucrânia sob o capitalismo. A Ucrânia não é como os EUA, Alemanha ou Suécia. É um dos países mais pobres da Europa e é quase totalmente dependente de capital estrangeiro. Após o início da guerra, apenas tolos podem esperar prosperidade na Ucrânia sob o sistema atual. O caminho para uma revolução comunista é o único caminho para a Ucrânia ter um futuro.
Karl Gunnarsson: Tem algo especial para transmitir aos nossos leitores e ao povo sueco em geral?
RFU: Organizem-se no local de trabalho, estudem teoria com os colegas, juntem-se ao Partido Comunista da Suécia. Não se esqueçam de envolver os ucranianos na Suécia na luta conjunta com a classe trabalhadora sueca.
Quem estiver interessado no que realmente está a acontecer na Ucrânia, pode assistir aos nossos vídeos no YouTube - todos os mais importantes têm legendas em inglês.
Os nossos países são distantes, mas espero que ucranianos, suecos e outras nações, um dia, trabalhem juntos para se livrar dos grilhetas da escravidão capitalista.
Como disse o poeta ucraniano Taras Shevchenko: Glória e honra aos heróis da nova civilização!
Fonte: https://www.idcommunism.com/2024/07/interview-with-workers-front-of-ukraine-fascism-imperialist-war-and-perspective-of-socialism.html#more, publicado e acedido em 17.07.2024
Foto: https://canalsolar.com.br/como-a-guerra-russia-ucrania-esta-mudando-os-mercados-de-energia/
Tradução de TAM
domingo, 21 de julho de 2024
A Terra é Redonda
Marxismo e política — modos de usar
Por LUIS FELIPE MIGUEL*
Introdução do autor ao livro recém-publicado
A obra de Karl Marx deixou sua marca em uma grande quantidade de campos do saber. Ele foi um filósofo, mas se tornou um economista. É um dos pais fundadores da sociologia. No caminho, revolucionou a ciência da história. O marxismo — um rótulo que não o agradava — evoluiu em uma infinidade de correntes e leituras divergentes, contribuindo de diferentes maneiras para essas e outras disciplinas científicas (direito, antropologia, geografia, linguística etc.). E não são apenas os marxistas que se alimentam das ideias de Marx. Elas assentaram muitas das bases do fazer científico nas humanidades.
Thomas Kuhn dizia que as chamadas “ciências sociais” permanecem no estágio pré-científico, uma vez que nelas não vigora qualquer paradigma que seja compartilhado por todos os praticantes; a cada vez, temos que justificar nossas escolhas teóricas de fundo. Sem discutir aqui as potencialidades ou os limites da compreensão de Kuhn sobre o trabalho científico, é conveniente anotar que tal cizânia se liga às implicações políticas mais imediatas da ciência social, que sofre, assim, uma pressão maior para cumprir um papel de legitimação ideológica. Mas se pode dizer, sem medo de errar e contra o próprio Kuhn,[i] que toda a ciência social digna de seu nome toma por base alguma concepção materialista da história e é, em alguma medida, tributária do pensamento de Marx.
Delineado esse quadro, qual é a posição da ciência política? Trata-se certamente da disciplina das humanidades em que a penetração das ideias marxistas foi (e ainda é) mais difícil, por motivos que se ligam à sua própria formação como campo de conhecimento. A ciência política é uma disciplina estadunidense que se expandiu pelo mundo reproduzindo essa matriz.
A necessidade de se distinguir da sociologia (o que se explica, ao menos em parte, pelas brigas territoriais do mundo acadêmico) incentivou um foco estrito nas instituições formais, apartando-as dos processos sociais mais amplos. Incentivou também um apreço desmedido por modelos estilizados, em grande medida extraídos da economia neoclássica, que, em uma só tacada, retiram dos agentes seu caráter de produtos históricos e patrocinam o fetichismo da empiria. O resultado disso é que o mainstream da ciência política adota uma epistemologia ingênua, que leva a sobrevivências do positivismo e permite a popularidade de percepções bizarras, como a “teoria da escolha racional”, que constrói os atores políticos num vácuo histórico e social.
Tudo isso leva ao equívoco comum de rotular como “parciais” as abordagens comprometidas com a transformação do mundo, mas como “neutras” aquelas que o aceitam como está e projetam sua permanência ad æternum. Nada mais distante da tradição inaugurada por Marx.
Outro traço de nascença da ciência política é sua posição como disciplina auxiliar do Estado. Uma ciência que, desde o começo, se colocou ex parte principis, isto é, vendo seu objeto de estudo do ponto de vista dos governantes, não do povo. Sua ambição seria ampliar a eficiência dos mecanismos vigentes de dominação. Dos economistas políticos de seu tempo, Marx falou que eram “os representantes científicos da riqueza”[ii]; cientistas políticos, então, poderiam ser definidos como representantes científicos do poder. Ainda hoje, a ciência política demonstra tal inclinação ao privilegiar temáticas como a “governabilidade” ou as condições de efetividade das políticas governamentais — embora, é necessário reconhecer, de forma menos unívoca do que no passado.
Graças ao caráter anistórico da maior parte de seus modelos, ela pode tomar as estruturas vigentes como simples “dados” e recobrir seu próprio caráter conservador e legitimador com as cores da neutralidade axiológica. A ciência política passa longe, portanto, do caráter emancipatório que Marx quis dar à sua própria empreitada teórica. Quando Antonio Gramsci, nos Cadernos do cárcere, condenou a sociologia como uma ciência positivista burguesa e louvou a ciência política como verdadeiro caminho para a compreensão do mundo social, ele estava falando de uma fase anterior do pensamento sociológico. E também de uma ciência política completamente diferente; ele usa a expressão para designar a tradição de compreensão realista dos processos de poder, inaugurada por Maquiavel, não de uma nascente disciplina estadunidense[iii]. Na ciência política disciplinar, a abordagem crítica e antipositivista permanece na contracorrente.
Indiquei como as tradições inaugurais da ciência política a tornaram pouco receptiva às contribuições do marxismo. Mas há uma leitura alternativa que também merece consideração, segundo a qual foi o próprio marxismo que demonstrou pouca atenção pela política. Um texto provocativo de Norberto Bobbio, que causou grande debate quando foi publicado, respondia negativamente à questão que lhe servia de título: “Existe uma doutrina marxista do Estado?”. A visão de que a política é apenas uma parte da “superestrutura” que reflete uma determinada base social, ou seja, de que não passa de um epifenômeno de conflitos mais profundos, teria levado ao subdesenvolvimento do pensamento marxista nesse campo.
Soma-se a isso a tendência, presente em boa parte do marxismo (sobretudo, mas não só, até as últimas décadas do século XX), de insulamento teórico, impedindo sua fecundação por outras correntes. No texto, Norberto Bobbio ironiza Umberto Cerroni, que, em um livro de 1968, qualificou C. Wright Mills como “grande sociólogo” e concedeu a Max Weber o estatuto modesto de “observador atento”. Sendo assim, a reflexão dos marxistas sobre o Estado e sobre a política em geral acaba condenada a, muitas vezes, simplesmente redescobrir (e traduzir para o próprio jargão) o que muitos outros já haviam dito antes.
A leitura de Norberto Bobbio foi contestada por autores marxistas, que a apontaram como enviesada e seletiva.5 Mas não é possível negar que as obras fundadoras do marxismo concedem à política um papel limitado e, de fato, nela veem sobretudo o reflexo de estruturas mais profundas. Há um contraste entre a sensibilidade para a especificidade do político, presente nas obras em que Marx discute processos históricos concretos, e a teorização, insuficiente, quando ele trabalha em um nível mais abstrato.
Embora se possam indicar autores que, de dentro do marxismo do final do século XIX e da primeira metade do século XX, apresentaram uma discussão mais robusta sobre a política (como é o caso, por caminhos diversos, seja de Rosa Luxemburgo, seja de Lênin, seja ainda de Eduard Bernstein), somente no pós-guerras, com a divulgação da obra de Antonio Gramsci, há um salto significativo na reflexão marxista sobre a política.
O que proponho neste livro é um exame introdutório sobre a utilidade das categorias marxianas ou nascidas da tradição marxista para a produção de uma ciência política mais capaz de entender o mundo social — e, quiçá, também de orientar a ação nele. Estou, portanto, alinhado à posição de Gramsci: trata-se de buscar uma disciplina que reflita mais sua inspiração primitiva, na obra de Maquiavel, e menos sua institucionalização, a partir dos últimos anos do século XIX, no ambiente acadêmico estadunidense.
O caminho proposto não é apenas encarar o “marxismo como ciência social”,[iv] o que sugere algo como sua normalização e incorporação nas vertentes teórico-metodológicas dominantes, mas mantê-lo como tensionador da disciplina. O acréscimo fornecido pelo marxismo, assim como por outras correntes com projeto emancipatório (feminismo, estudos decoloniais), é o de uma teoria focada nos padrões vigentes de dominação que tem como horizonte a produção de uma sociedade nova. Um marxismo mutilado da décima primeira tese sobre Feuerbach — aquela que diz que a questão não é interpretar o mundo, mas transformá-lo[v] — perde seu diferencial.
Esse tensionamento mostra-se mais necessário quanto mais se evidencia que a ciência política atravessa uma crise de relevância.[vi] A miopia institucionalista tem levado a sucessivas “surpresas”, situações que fogem por inteiro à capacidade explicativa dos modelos dominantes na disciplina. A mais importante delas é a atual crise da democracia, descrita pelos cientistas políticos convencionais como a súbita e inesperada irrupção do “populismo”, que desestabiliza os regimes liberal-democráticos. Há uma pronunciada incapacidade de entender a conexão entre processos societários amplos e o funcionamento das instituições políticas. Creio que Marx e o marxismo têm muito a colaborar nesse ponto. Indicar alguns dos caminhos em que esse aporte se mostra necessário é a ambição deste livro.
No primeiro capítulo, discuto o método do materialismo histórico e a relação entre a política e a economia. Na ciência política, há a tendência de isolar a política como mundo à parte e produzir modelos que ignoram, de forma quase deliberada, o que ocorre do lado de fora de suas fronteiras. Contra isso, advogo que são necessários dois movimentos (e que Marx pode contribuir para ambos).
O primeiro é entender que a própria definição das fronteiras da política é um produto histórico e uma resultante de conflitos entre interesses diversos. Isso nos ajuda a evitar reificá-las, como faz hoje a vertente majoritária da disciplina. O segundo movimento é reconectar a compreensão da política com as disputas sociais mais amplas que a atravessam. Sem isso, o estudo ficará restrito à petite politique, isto é, ao conflito de egos e à disputa por cargos, nada além da marola dos embates sociais profundos. Uma leitura do materialismo histórico que o vê não como determinação econômica, mas como sobredeterminação das diferentes práticas sociais, o que permite simultaneamente recusar a autonomia da política e preservar a efetividade do momento político.
Em seguida, no capítulo 2, discuto o conceito de “classe social”, que o marxismo, como se sabe, coloca no centro de sua reflexão — como dizem Marx e Engels no Manifesto Comunista, a história da humanidade é a história da luta de classes. O conceito é polêmico, nunca tendo sido plenamente desenvolvido pelo próprio Marx; e, no seio da própria esquerda, muitos apontam que o foco exclusivo na classe leva ao obscurecimento de outras fontes de opressão social.
Na tradição dominante da ciência política, por outro lado, a classe é um elemento no máximo secundário. A desigualdade econômica tende a ser tratada apenas como relativa ao acesso à renda e ao patrimônio, ignorando as relações de produção. E a divisão fundamental da sociedade é vista como sendo entre governantes e governados: esse é o caminho da teoria das elites e da leitura de Maquiavel por James Burnham. No entanto, a preocupação com o conflito de classes (o que não significa erigi-lo como único eixo relevante) é fundamental para ampliar a compreensão dos processos políticos e integrá-los com a dinâmica social mais ampla.
Mas o reconhecimento da relevância do conflito de classes não esgota a questão de sua relação com outros eixos de dominação presentes no mundo social, como gênero ou raça — discussão que é travada nos capítulos 3 e 4. Como reflexo do ativismo intelectual de muitos pesquisadores, o campo da ciência política tem se tornado, nos últimos tempos, mais sensível à importância dessas categorias. Na esquerda, à abertura para tais temáticas, a partir dos anos 1960, graças sobretudo aos movimentos feminista, negro e juvenil, sucedeu-se, nos últimos tempos, uma virada “identitarista” (expressão que uso para designar especificamente a tendência de afirmar o pertencimento de grupo descolando-o das estruturas sociais de dominação).
Enquanto as reflexões do pós-guerras dialogavam com a tradição marxista, tensionando-a e obrigando-a a se renovar, o identitarismo privilegia uma gramática liberal e idealista, estabelecendo-se em campo oposto ao materialismo histórico. Torna-se necessário, então, entender o que Marx e o marxismo ainda têm a contribuir nessas discussões. O capítulo 3 analisa sobretudo a relação entre gênero e classe; o 4, entre raça e classe.
O debate sobre o conceito de “Estado” é o tema do quinto capítulo. A obra de Marx tende a uma estilização profunda — o “comitê gestor” dos interesses gerais da burguesia, segundo o Manifesto —, que corresponde à necessidade de combater as percepções idealistas do Estado como promotor do bem comum. Seus escritos históricos, uma vez mais, revelam uma compreensão mais complexa; e a luta dos dominados tornou a situação ainda mais espinhosa, uma vez que os Estados passaram a atuar, muitas vezes, contra a vontade expressa do capital e de outros grupos privilegiados (com legislações de proteção ao trabalho ou de promoção da igualdade de gênero ou racial, por exemplo).
Na segunda metade do século XX, quando o mainstream da ciência política parecia disposto a dispensar a categoria “Estado” em favor da noção, mais difusa, de “sistema político”, foram autores marxistas ou influenciados pelo marxismo que a mantiveram e construíram um sofisticado corpo teórico para explicá-la, sem perder de vista seu caráter de classe. O reconhecimento do caráter de classe do Estado, que essa tradição nunca abandonou, permite interpelar criticamente o institucionalismo um tanto plano que marca boa parte da disciplina.
Um tipo específico de regime político, a democracia, tornou-se há tempos o horizonte normativo da ciência política — e o capítulo 6 discute em que o marxismo pode contribuir para compreendê-la. Trata-se, sobretudo, de romper com as visões formalistas, que desconectam as instituições democráticas dos conflitos sociais e as apresentam como um campo neutro (as “regras do jogo”) em que as disputas são reguladas. Embora dificilmente se possa falar de uma “teoria marxista da democracia”, autores marxistas introduziram debates importantes para entendê-la de maneira mais complexa, como uma forma de dominação política que se relaciona intimamente com a dominação social geral, para reforçá-la ou para moderá-la.
O sétimo capítulo desloca a atenção para a produção dos comportamentos sociais, discutindo os controvertidos conceitos de alienação, fetichismo e ideologia. A máxima utilitarista de que cada um é o melhor juiz de seus próprios interesses, que subjaz a boa parte dos modelos da ciência política, é confrontada pelo entendimento de que o mundo social não é transparente e que a difusão de uma ou de outra leitura sobre esse mundo é objeto de uma luta desigual.
Ao mesmo tempo, porém, a percepção de que os dominados são vítimas de uma falsa consciência pode levar a posturas paternalistas e autoritárias, como se o observador externo, mas dotado dos instrumentos analíticos corretos, fosse capaz de determinar quais são os “verdadeiros” interesses dos agentes melhor que os próprios agentes. Ainda assim (e nisso, uma vez mais, Marx e o marxismo fornecem ferramentas preciosas), não é possível buscar uma compreensão aprofundada das disputas políticas sem tematizar a produção social das preferências, para a qual os dominantes dispõem de recursos bem mais potentes que os dominados.
A transformação social é o tema do oitavo capítulo. Os escritos de Marx dão, por vezes, vazão a uma interpretação determinista, como se em algum momento o modo de produção capitalista se tornasse incapaz de resolver suas próprias contradições e tivesse forçosamente que ceder lugar a outra forma de organização social. Ao mesmo tempo, porém, há espaço para a agência humana; afinal, “a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores” e o motor da história, segundo o chavão famoso, é a luta de classes.
No momento em que o principal instrumento da luta política que emergiu da tradição marxista, o partido de classe, parece se debater numa crise insolúvel, cabe perguntar o que Marx e o marxismo ainda podem oferecer para a compreensão da mudança social — e que tipo de sociedade futura eles projetam, diante do fracasso histórico do socialismo real (a experiência do bloco soviético) e de uma arraigada descrença em relação à “hipótese comunista”.
O último capítulo introduz uma questão que, da época de Marx para cá, saiu das margens do debate político para ocupar seu centro: a ecologia. Por longo tempo, o marxismo foi atrelado a visões produtivistas, que enalteciam o crescente “domínio do homem (sic) sobre a natureza”. A percepção é reforçada pelo péssimo registro, em relação à proteção ambiental, dos países que reivindicavam ou ainda reivindicam a herança do marxismo, os países do “socialismo real”.
Contra ela, autores contemporâneos buscam apresentar uma leitura diversa, por vezes fazendo do próprio Marx um ecologista avant la lettre. Mais importante que isso, porém, é entender de que maneira uma abordagem materialista, inspirada em Marx, pode ajudar a compreender os desafios lançados pela degradação ambiental e sua conexão com os conflitos sociais.
Por fim, a breve conclusão faz um balanço dessas contribuições e apresenta o que seria, a meu ver, um resultado ideal. Não uma “ciência política marxista”, que afirme uma filiação doutrinária a priori, mas uma ciência política aberta às contribuições do marxismo, seja em suas ferramentas analíticas, seja nos problemas que discute — e sem medo de, seguindo essas pegadas, assumir posição e buscar contribuir para a transformação social com caráter emancipador.
*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (Autêntica). [https://amzn.to/45NRwS2]
Referência
Luis Felipe Miguel. Marxismo e política — modos de usar. São Paulo, Boitempo, 204 págs. [https://amzn.to/3Woimhq]
Notas
[i] Thomas Kuhn, “Logic of Discovery or Psychology of Research?”, em The Essential Tension: Selected Studies in Scientific Tradition and Change (Chicago, Chicago University Press, 1977) [ed. bras.: A tensão essencial: estudos selecionados sobre tradição e mudança científica, trad. Marcelo Amaral Penna-Forte, São Paulo, Editora Unesp, 2011]. O artigo original é de 1970.
[ii] Karl Marx e Friedrich Engels, A sagrada família (trad. Marcelo Backes, São Paulo, Boitempo, 2003), p. 71. A edição original é de 1845.
[iii] Antonio Gramsci, Cadernos do cárcere, v. 3: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política (trad. Luiz Sérgio Henriques, Marco Aurélio Nogueira e Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000), p. 330-1. Os manuscritos são de 1932-1934. Gramsci extrai de Maquiavel sobretudo um realismo orientado para o dever-ser, não como congelamento de uma
[iv] Evoco aqui o título do livro de Adriano Codato e Renato Perissinotto, Marxismo como ciência social (Curitiba, Editora UFPR, 2012).
[v] Karl Marx, “Teses sobre Feuerbach”, em Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã (trad. Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano, São Paulo, Boitempo, 2007), p. 353. O manuscrito original é de 1845-1846.
[vi] Não é de agora. Um artigo publicado há meio século, intitulado exatamente “Marxismo e ciência política”, apresentava dados que mostravam que a grande maioria dos cientistas políticos julgava que a disciplina era superficial e irrelevante. O autor observava que, apesar desse sentimento crítico, os cientistas políticos continuavam a reproduzir os mesmos modelos triviais, por ausência de ferramentas que fossem capazes de superá-los. O marxismo, dizia ele, poderia fornecer tais ferramentas. Ver Bertell Ollman, “Marxism and Political Science: Prolegomenon to a Debate on Marx’s Method”, Politics & Society, v. 3, n. 4, 1973, p. 491-510.
terça-feira, 16 de julho de 2024
JACOBIN
Sobre o conceito de história
POR Walter Benjamin
Tradução
Sérgio Paulo Rouanet
Sérgio Paulo Rouanet
O crítico literário, filósofo e militante socialista, Walter Benjamin, nasceu neste dia em 1892. Em sua memória, publicamos o ensaio concluído enquanto ele era cercado pelas hordas nazistas que o levaram à morte. Nele, Benjamin trabalha o conceito de História visto do único ponto de vista possível para um revolucionário: o dos oprimidos.
Conhecemos a história de um autômato construído de tal modo que podia responder a cada lance de um jogador de xadrez com um contralance, que lhe assegurava a vitória. Um fantoche vestido à turca, com um narguilé na boca, sentava-se diante do tabuleiro, colocado numa grande mesa. Um sistema de espelhos criava a ilusão de que a mesa era totalmente visível, em todos os seus pormenores.
Na realidade, um anão corcunda se escondia nela, um mestre no xadrez, que dirigia com cordéis a mão do fantoche. Podemos imaginar uma contrapartida filosófica desse mecanismo. O fantoche chamado “materialismo histórico” ganhará sempre. Ele pode enfrentar qualquer desafio, desde que tome a seu serviço a teologia. Hoje, ela é reconhecidamente pequena e feia e não ousa mostrar-se.
“Entre os atributos mais surpreendentes da alma humana”, diz Lotze, “está, ao lado de tanto egoísmo individual, uma ausência geral de inveja de cada presente com relação a seu futuro”. Essa reflexão conduz-nos a pensar que nossa imagem da felicidade é totalmente marcada pela época que nos foi atribuída pelo curso da nossa existência.
A felicidade capaz de suscitar nossa inveja está toda, inteira, no ar que já respiramos, nos homens com os quais poderíamos ter conversado, nas mulheres que poderíamos ter possuído. Em outras palavras, a imagem da felicidade está indissoluvelmente ligada à da salvação.
O mesmo ocorre com a imagem do passado, que a história transforma em coisa sua. O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera.
Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente. O materialista histórico sabe disso.
O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado.
Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos. Cada momento vivido transforma-se numa citation à l’ordre du jour – e esse dia é justamente o do juízo final.
Lutai primeiro pela alimentação e pelo vestuário,
e em seguida o reino de Deus virá por si mesmo
Hegel, 1807
A luta de classes, que um historiador educado por Marx jamais perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não existem as refinadas e espirituais. Mas na luta de classes essas coisas espirituais não podem ser representadas como despojos atribuídos ao vencedor.
Elas se manifestam nessa luta sob a forma da confiança, da coragem, do humor, da astúcia, da firmeza, e agem de longe, do fundo dos tempos. Elas questionarão sempre cada vitória dos dominadores. Assim como as flores dirigem sua corola para o sol, o passado, graças a um misterioso heliotropismo, tenta dirigir-se para o sol que se levanta no céu da história.
O materialismo histórico deve ficar atento a essa transformação, a mais imperceptível de todas.
A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido.
“A verdade nunca nos escapará” – essa frase de Gottfried Keller caracteriza o ponto exato em que o historicismo se separa do materialismo histórico. Pois irrecuperável é cada imagem do passado que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela.
Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento.
Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.
Pensa na escuridão e no grande frio
Que reinam nesse vale, onde soam lamentos.
Brecht, Ópera dos três vinténs
Fustel de Coulanges recomenda ao historiador interessado em ressuscitar uma época que esqueça tudo o que sabe sobre fases posteriores da história. Impossível caracterizar melhor o método com o qual rompeu o materialismo histórico. Esse método é o da empatia. Sua origem é a inércia do coração, a acedia, que desespera de apropriar-se da verdadeira imagem histórica, em seu relampejar fugaz.
Para os teólogos medievais, a acedia era o primeiro fundamento da tristeza. Flaubert, que a conhecia, escreveu: “Peu de gens devineront combien il a fallu être triste pour ressusciter Carthage“. A natureza dessa tristeza se tomará mais clara se nos perguntarmos com quem o investigador historicista estabelece uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor.
Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais.
O materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima dos seus contemporâneos.
Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo.
A tradição dos oprimidos nos ensina que o “Estado de exceção” em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro Estado de exceção; com isso, nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo.
Este se beneficia da circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do progresso, considerado como uma norma histórica. O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no século XX “ainda” sejam possíveis, não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história da qual emana semelhante assombro é insustentável.
Minhas asas estão prontas para o vôo,
Se pudesse, eu retrocederia
Pois eu seria menos feliz
Se permanecesse imerso no tempo vivo.
Gerhard Scholem, Saudação do anjo
Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas.
O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las.
Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.
Os temas que as regras do claustro impunham à meditação dos monges tinham como função desviá-los do mundo e das suas pompas. Nossas reflexões partem de uma preocupação semelhante. Neste momento, em que os políticos nos quais os adversários do fascismo tinham depositado as suas esperanças jazem por terra e agravam sua derrota com a traição à sua própria causa, temos que arrancar a política das malhas do mundo profano, em que ela havia sido enredado por aqueles traidores.
Nosso ponto de partida é a idéia de que a obtusa fé no progresso desses políticos, sua confiança no “apoio das massas” e, finalmente, sua subordinação servil a um aparelho incontrolável são três aspectos da mesma realidade. Estas reflexões tentam mostrar como é alto o preço que nossos hábitos mentais têm que pagar quando nos associamos a uma concepção da história que recusa toda cumplicidade com aquela à qual continuam aderindo esses políticos.
O conformismo, que sempre esteve em seu elemento na social-democracia, não condiciona apenas suas táticas políticas, mas também suas idéias econômicas. É uma das causas do seu colapso posterior. Nada foi mais corruptor para a classe operária alemã que a opinião de que ela nadava com a corrente.
O desenvolvimento técnico era visto como o declive da corrente, na qual ela supunha estar nadando. Daí só havia um passo para crer que o trabalho industrial, que aparecia sob os traços do progresso técnico, representava uma grande conquista política.
A antiga moral protestante do trabalho, secularizada, festejava uma ressurreição na classe trabalhadora alemã. O Programa de Gotha já continha elementos dessa confusão. Nele, o trabalho é definido como “a fonte de toda riqueza e de toda civilização”. Pressentindo o pior, Marx replicou que o homem que não possui outra propriedade que a sua força de trabalho está condenado a ser “o escravo de outros homens, que se tornaram… proprietários”.
Apesar disso, a confusão continuou a propagar-se, e pouco depois Josef Dietzgen anunciava: “O trabalho é o Redentor dos tempos modernos… No aperfeiçoamento… do trabalho reside a riqueza, que agora pode realizar o que não foi realizado por nenhum salvador”.
Esse conceito de trabalho, típico do marxismo vulgar, não examina a questão de como seus produtos podem beneficiar trabalhadores que deles não dispõem. Seu interesse se dirige apenas aos progressos na dominação da natureza, e não aos retrocessos na organização da sociedade. Já estão visíveis, nessa concepção, os traços tecnocráticos que mais tarde vão aflorar no fascismo. Entre eles, figura uma concepção da natureza que contrasta sinistramente com as utopias socialistas anteriores a março de 1848.
O trabalho, como agora compreendido, visa uma exploração da natureza, comparada, com ingênua complacência, à exploração do proletariado. Ao lado dessa concepção positivista, as fantasias de um Fourier, tão ridicularizadas, revelam-se surpreendentemente razoáveis. Segundo Fourier, o trabalho social bem organizado teria entre seus efeitos que quatro luas iluminariam a noite, que o gelo se retiraria dos pólos, que a água marinha deixaria de ser salgada e que os animais predatórios entrariam a serviço do homem.
Essas fantasias ilustram um tipo de trabalho que, longe de explorar a natureza, libera as criações que dormem, como virtualidades, em seu ventre. Ao conceito corrompido de trabalho corresponde o conceito complementar de uma natureza, que segundo Dietzgen, “está ali, grátis”.
Precisamos da história, mas não como precisam dela
os ociosos que passeiam no jardim da ciência.
Nietzsche, Vantagens e desvantagens da história para a vida
O sujeito do conhecimento histórico é a própria classe combatente e oprimida. Em Marx, ela aparece como a última classe escravizada, como a classe vingadora que consuma a tarefa de libertação em nome das gerações de derrotados. Essa consciência, reativada durante algum tempo no movimento espartaquista, foi sempre inaceitável para a socialdemocracia.
Em três decênios, ela quase conseguiu extinguir o nome de Blanqui, cujo eco abalara o século passado. Preferiu atribuir à classe operária o papel de salvar gerações futuras. Com isso, ela a privou das suas melhores forças.
A classe operária desaprendeu nessa escola tanto o ódio como o espírito de sacrifício. Porque um e outro se alimentam da imagem dos antepassados escravizados, e não dos descendentes liberados.
Nossa causa está cada dia mais clara
e o povo cada dia mais esclarecido.
Josef Dietzgen, Filosofia social-democrata
A teoria e, mais ainda, a prática da social-democracia foram determinadas por um conceito dogmático de progresso sem qualquer vínculo com a realidade. Segundo os socialdemocratas, o progresso era, em primeiro lugar, um progresso da humanidade em si, e não das suas capacidades e conhecimentos.
Em segundo lugar, era um processo sem limites, idéia correspondente à da perfectibilidade infinita do gênero humano.
Em terceiro lugar, era um processo essencialmente automático, percorrendo, irresistível, uma trajetória em flecha ou em espiral.
Cada um desses atributos é controvertido e poderia ser criticado. Mas, para ser rigorosa, a crítica precisa ir além deles e concentrar-se no que lhes é comum. A idéia de um progresso da humanidade na história é inseparável da idéia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo. A crítica da idéia do progresso tem como pressuposto a crítica da idéia dessa marcha.
A Origem é o Alvo.
Karl Kraus, Palavras em verso
A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de “agoras”. Assim, a Roma antiga era para Robespierre um passado carregado de “agoras”, que ele fez explodir do continuum da história.
A Revolução Francesa se via como uma Roma ressurreta. Ela citava a Roma antiga como a moda cita um vestuário antigo. A moda tem um faro para o atual, onde quer que ele esteja na folhagem do antigamente. Ela é um salto de tigre em direção ao passado. Somente, ele se dá numa arena comandada pela classe dominante. O mesmo salto, sob o livre céu da história, é o salto dialético da Revolução, como o concebeu Marx.
A consciência de fazer explodir o continuum da história é própria às classes revolucionárias no momento da ação. A Grande Revolução introduziu um novo calendário. O dia com o qual começa um novo calendário funciona como um acelerador histórico.
No fundo, é o mesmo dia que retorna sempre sob a forma dos dias feriados, que são os dias da reminiscência. Assim, os calendários não marcam o tempo do mesmo modo que os relógios. Eles são monumentos de uma consciência histórica da qual não parece mais haver na Europa, há cem anos, o mínimo vestígio.
A Revolução de julho registrou ainda um incidente em que essa consciência se manifestou. Terminado o primeiro dia de combate, verificou-se que em vários bairros de Paris, independentes uns dos outros e na mesma hora, foram disparados tiros contra os relógios localizados nas torres. Uma testemunha ocular, que talvez deva à rima a sua intuição profética, escreveu:
“Qui le croirait! on dit qu’irrités contre l’heure
De nouveaux Josués, au pied de chaque tour,
Tiraient sur les cadrans pour arrêter le jour.”
O materialista histórico não pode renunciar ao conceito de um presente que não é transição, mas pára no tempo e se imobiliza. Porque esse conceito define exatamente aquele presente em que ele mesmo escreve a história.
O historicista apresenta a imagem “eterna” do passado, o materialista histórico faz desse passado uma experiência única. Ele deixa a outros a tarefa de se esgotar no bordel do historicismo, com a meretriz “era uma vez”. Ele fica senhor das suas forças, suficientemente viril para fazer saltar pelos ares o continuum da história.
O historicismo culmina legitimamente na história universal. Em seu método, a historiografia materialista se distancia dela talvez mais radicalmente que de qualquer outra.
A história universal não tem qualquer armação teórica. Seu procedimento é aditivo. Ela utiliza a massa dos fatos, para com eles preencher o tempo homogêneo e vazio. Ao contrário, a historiografia marxista tem em sua base um princípio construtivo. Pensar não inclui apenas o movimento das idéias, mas também sua imobilização. Quando o pensamento pára, bruscamente, numa configuração saturada de tensões, ele lhes comunica um choque, através do qual essa configuração se cristaliza enquanto mônada.
O materialista histórico só se aproxima de um objeto histórico quando o confronta enquanto mônada. Nessa estrutura, ele reconhece o sinal de uma imobilização messiânica dos acontecimentos, ou, dito de outro modo, de uma oportunidade revolucionária de lutar por um passado oprimido. Ele aproveita essa oportunidade para extrair uma época determinada do curso homogêneo da história; do mesmo modo, ele extrai da época uma vida determinada e, da obra composta durante essa vida, uma obra determinada.
Seu método resulta em que na obra o conjunto da obra, no conjunto da obra a época e na época a totalidade do processo histórico são preservados e transcendidos. O fruto nutritivo do que é compreendido historicamente contém em seu interior o tempo, como sementes preciosas, mas insípidas.
“Comparados com a história da vida orgânica na Terra”, diz um biólogo contemporâneo, “os míseros 50.000 anos do Homo sapiens representam algo como dois segundos ao fim de um dia de 24 horas. Por essa escala, toda a história da humanidade civilizada preencheria um quinto do último segundo da última hora.
O “agora”, que como modelo do messiânico abrevia num resumo incomensurável a história de toda a humanidade, coincide rigorosamente com o lugar ocupado no universo pela história humana.
Apêndice
O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios.
O historiador consciente disso renuncia a desfiar entre os dedos os acontecimentos, como as contas de um rosário. Ele capta a configuração, em que sua própria época entrou em contato com uma época anterior, perfeitamente determinada.
Com isso, ele funda um conceito do presente como um “agora” no qual se infiltraram estilhaços do messiânico.
Certamente, os adivinhos que interrogavam o tempo para saber o que ele ocultava em seu seio não o experimentavam nem como vazio nem como homogêneo. Quem tem em mente esse fato, poderá talvez ter uma idéia de como o tempo passado é vivido na rememoração: nem como vazio, nem como homogêneo.
Sabe-se que era proibido aos judeus investigar o futuro. Ao contrário, a Torá e a prece se ensinam na rememoração. Para os discípulos, a rememoração desencantava o futuro, ao qual sucumbiam os que interrogavam os adivinhos. Mas nem por isso o futuro se converteu para os judeus num tempo homogêneo e vazio. Pois nele cada segundo era a porta estreita pela qual podia penetrar o Messias.
Sobre os autores
foi um ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo judeu alemão. Associado à Escola de Frankfurt e à Teoria Crítica, foi fortemente inspirado tanto por autores marxistas, como Bertolt Brecht, como pelo místico judaico de Gershom Scholem.
Socialismo – revolução ou evolução sistêmica?
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*
A identidade de classe e a consciência de classe se manifestam de maneiras diferentes em locais de trabalho mais diversificados e fragmentados
O socialismo, conforme teorizado por Karl Marx, deveria ser entendido como uma fase de transição entre o capitalismo e o comunismo. O socialismo seria alcançado através do desenvolvimento das forças produtivas até o ponto no qual a escassez material fosse superada e, simultaneamente, a desigualdade eliminada. A quantidade de conquistas alteraria a qualidade da sociedade.
A sociedade teria a capacidade de produzir bens suficientes para atender às necessidades básicas de todos os seus membros. Reinaria a abundância!
Com a superação da escassez, o trabalho deixaria de ser alienante, pois os trabalhadores não mais estariam sujeitos à exploração capitalista. Em vez disso, o trabalho seria uma atividade criativa e autorrealizadora.
A abolição da propriedade privada dos meios de produção levaria à redistribuição dos recursos, eliminando a desigualdade econômica. A propriedade coletiva garantiria os benefícios de a produção serem compartilhados equitativamente.
O socialismo eliminaria as classes sociais, promovendo a igualdade em termos de oportunidades e resultados. Não se obteria apenas a igualdade econômica, mas também a igualdade em termos de acesso à educação, saúde e outros serviços essenciais.
Na visão original marxista, a superação da escassez e a eliminação da desigualdade seriam interdependentes. Isto porque a escassez cria condições para a competição e a desigualdade, enquanto a desigualdade mantém a escassez ao restringir o acesso equitativo aos recursos e oportunidades.
O socialismo era visto como uma fase de transição onde a sociedade ainda trabalharia para superar a escassez e eliminar a desigualdade. Esta fase requereria um planejamento econômico centralizado e a ditadura do proletariado para reorganizar a economia e a sociedade.
Na prática, os regimes socialistas do século XX enfrentaram dificuldades em superar tanto a escassez (pobreza) quanto a desigualdade. As economias planejadas centralmente não conseguiram alcançar a eficiência necessária para eliminar a escassez, enquanto a criação de uma nova elite burocrática perpetuou formas de desigualdade.
A China adaptou suas práticas socialistas ao incorporar elementos de economia de mercado, buscando superar a escassez através do crescimento econômico e inovação. Em contrapartida, isso reintroduziu a desigualdade social.
Na teoria marxista, o socialismo é uma evolução sistêmica progressiva em busca de superar a escassez e eliminar a desigualdade. Estas duas condições estão interligadas.
A ideologia do socialismo visa criar uma sociedade onde os recursos serão abundantemente disponíveis e equitativamente distribuídos, preparando o caminho para o comunismo, onde o Estado e as classes sociais desaparecerão completamente. A realização prática desse ideal, entretanto, foi anacrônico diante ter sido tentado em países com baixo desenvolvimento no modo de produção capitalista, conforme as circunstâncias históricas e contextuais de cada qual.
Para agravar o anacronismo diante a atual realidade, com a robotização substituta do trabalho operário e a automação do processo de produção não desaparece o sujeito revolucionário capaz da condução da sociedade ao socialismo?
Essa questão sobre o papel do trabalhador como agente revolucionário no contexto da robotização e automação da produção é interessante e complexa.
De fato, com o avanço da robotização e automação, muitas tarefas anteriormente realizadas por trabalhadores humanos estão sendo substituídas por máquinas e inteligência artificial. Isso tem impactos significativos na estrutura do emprego, especialmente em setores de manufatura e produção.
A tradicional base de trabalhadores industriais historicamente desempenhou um papel central em movimentos sindicais e lutas trabalhistas. Agora, está diminuindo em tamanho e influência, devido à automação. O sindicalismo está decadente.
Enquanto alguns empregos são substituídos, estão surgindo novas oportunidades em setores relacionados à tecnologia, programação, manutenção de máquinas etc. Estes novos trabalhadores desenvolverão uma consciência de classe e interesses compartilhados?
Os trabalhadores qualificados em setores emergentes, como tecnologia da informação e serviços digitais, se organizarão e mobilizarão em torno de questões trabalhistas específicas, como salários, condições de trabalho e segurança no emprego? Ou simplesmente cada qual mudará de emprego caso fique insatisfeito?
Em outros casos, como na “urberização”, a fragmentação do mercado de trabalho e a proliferação de empregos precários e temporários podem dificultar a organização e a mobilização dos trabalhadores em torno de interesses comuns.
A noção de “trabalhador” está mudando, para “microempreendedores” e/ou “pejotizados”, porque novos tipos de ocupações surgem. A identidade de classe e a consciência de classe se manifestam de maneiras diferentes em locais de trabalho mais diversificados e fragmentados.
A automação e a robotização estão transformando as relações de produção, criando contradições e antagonismos entre capital e trabalho como a superexploração em jornadas extensas em home office. No entanto, o surgimento de uma classe trabalhadora revolucionária depende da capacidade dos trabalhadores de se organizarem e se mobilizarem em torno de interesses comuns.
A revolução socialista não se basearia exclusivamente na classe trabalhadora industrial, como Marx previu. Novos sujeitos sociais e formas de luta surgiram, incluindo trabalhadores do conhecimento, ativistas ambientais, comunidades marginalizadas e outros grupos identitários.
Portanto, a robotização e a automação estão mudando a paisagem do trabalho e desafiando concepções tradicionais sobre a classe trabalhadora e sua capacidade de conduzir a transformação social. Enquanto alguns aspectos do sujeito revolucionário podem estar mudando, a luta por justiça social, igualdade e emancipação continua, e novas formas de organização e mobilização surgem em resposta às oportunidades apresentadas pela mudança tecnológica e econômica.
Indivíduos detentores de capital humano, como profissionais altamente qualificados, especialistas em tecnologia, consultores, entre outros, demonstram ter uma relação ambígua com a consciência de classe trabalhadora e o empreendedorismo. Muitos supervalorizam suas habilidades e conhecimentos especializados, e sua identidade profissional estar mais ligada à sua expertise em vez de sua posição como parte da classe trabalhadora tradicional.
Profissionais com capital humano elevado se sentem, cultural e socialmente, distantes de trabalhadores em empregos menos qualificados. Isso dificulta sua identificação com uma consciência de classe comum.
Alguns desses profissionais se envolvem em empreendedorismo de conhecimento, iniciando suas próprias empresas com base em suas habilidades especializadas. Eles então se identificam mais como empreendedores em vez de como trabalhadores assalariados.
Profissionais com capital humano significativo valorizam a independência e a autonomia obtidas com a criação de suas próprias empresas. Leva-os a se identificar mais com a figura do empreendedor diante a classe trabalhadora.
A identidade de classe é apenas uma parte da identidade de um indivíduo, influenciada por outros aspectos como gênero, raça, etnia, orientação sexual etc. A interseccionalidade dessas identidades influencia como os indivíduos se veem e se identificam.
A consciência de classe não é estática por ser moldada por experiências pessoais, sociais e políticas. A consciência de classe trabalhadora depende de uma variedade de fatores, entre os quais, suas experiências no local de trabalho, suas crenças políticas e sua compreensão das relações de poder na sociedade. Podem reconhecer sua posição dentro das relações de classe e poder – e se envolver em lutas trabalhistas e movimentos sociais em busca de justiça e igualdade.
*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/3r9xVNh]
segunda-feira, 15 de julho de 2024
pequenos ensaios- I
Sobre a existência de Deus e assuntos correlativos
I
A astronomia moderna e a astrofísica eliminaram qualquer possibilidade física ou lógica da existência de Deuses, ou um único, com qualidades humanas e terrestres (misericórdia, justiceiro, etc.). Sem materialidade e energia nada pode existir, embora o Nada possa existir, porém o Nada não possui nada. Esta entidade imaginária com comportamentos humanos assenta numa pseudo Física que nem Aristóteles defendeu. Ruiu definitivamente com Copérnico, Galileu, Kepler, tal como ruiu toda a astrologia que se apoiava na teoria geocêntrica e ptolomaica.
Resta a crença em uma divindade criadora do universo, a que alguns cientistas atribuem o Big Bang. Ora, tudo que em Física se tem demonstrado não possibilita a existência de um ser que não obedece a nenhuma das leis da Física provadas, isto é, não composto das partículas e das forças conhecidas. Perguntar-se-á em lógica : se tal Ser existisse fora da matéria-energia, ou Natureza, porque se resumiu a sua existência somente à criação de um universo? Isto é : ao "instante" do BigBang, sem intervir nunca mais?
II
O Nada nada cria. Não possui, por definição, virtualidade ou potencialidade alguma. Então, se se verificou realmente um BigBang, uma singularidade, é porque existia algo, ainda que fosse o Vazio.
Toda a Ciência se apoia na certeza de que este universo teve um início e encaminha-se para o seu fim. Donde veio e para onde vai (com mais rigor : a sua morte é a aniquilação de toda a matéria-energia por inflação, arrefecimento, quebra do equilíbrio singular que mantém este universo)? As galáxias movem-se (aliás, tudo se move), é a expansão do universo que não tem limites, mas movem-se para onde (as que sobrevivem ou que as que vão nascendo, pois as galáxias também se chocam umas contra as outras e se fundem)?
quinta-feira, 11 de julho de 2024
elucubrações políticas
Exigir que a Constituição da República Portuguesa seja cumprida,
mantém-se um ato político relevante para educar as massas populares,
unir democratas, combater os preconceitos que tendem a assustar
eleitores. Para se obter algum sucesso com este ato é necessário, porém,
que se cumpra tão bem quanto possível esse objetivo, essa
palavra-de-ordem, esse programa que enuncia, afinal de contas, uma
Democracia Avançada, vestibular de outras fases do Socialismo. Se os
direitos económico-sociais e culturais fossem realizados e respeitados;
se os grandes grupos económicos tendencialmente monopolistas no
agro-negócio, nas pescas, na produção de energia, na Banca, na Saúde,
nas redes de distribuição e de comércio, fossem no seu poder absoluto
combatidos em favor de uma economia obedecendo a um Plano de
industrialização conforme as necessidades prioritárias e os recursos; se
o nível dos salários e rendimentos das massas trabalhadoras
correspondessem evolutivamente às necessidades de uma vida familiar
confortável e os direitos do Trabalho (da força-de-de-trabalho) fossem
aplicados; se as escolas públicas ensinassem mais e melhor do que fazem,
sem reproduzirem as desigualdades de classes e a desinformação
inoculada pela Comunicação Social sobre os cérebros infantis e juvenis;
se com esta CS competissem meios capazes de transmitirem com eficácia
uma instrução democrática, uma informação alternativa e verdadeira ; se
os trabalhadores da cultura (atualmente mais e mais proletarizados como
aqueles que labutam nos latifúndios ou nas empresas capitalistas) fossem
estimados, favorecendo o seu trabalho e, portanto, a educação cultural
das massas sociais iletradas; se determinadas áreas da vida fossem
subtraídas à mercantilização e ao lucro privado...então, alcançaríamos
um país desenvolvido, democrático, pacífico. Com um capitalismo
controlado pelos órgãos políticos e pelo povo soberano. Os passos
necessários para o socialismo num só país, simultaneamente nacional e
internacionalista, estariam dados.
Bastaria esta mesma Constituição para já.
No futuro próximo oferecem-se duas possibilidades, dois caminhos : uma crise catastrófica europeia com repercussões mundiais fatalmente, que, aproveitadas nas suas brechas e efeitos, detonassem uma situação revolucionária , democrática e socialista, numa Europa desagregada, com "os de baixo" erguidos contra "os de cima" , ou a mesma crise a produzir um Império nazi-fascista, com a neutralidade, senão mesmo com o apoio, dos EUA. Portanto, o futuro próximo está tão carregado de perigos como de bombas atómicas. Dir-se-á que há sempre uma terceira possibilidade, conforme leem alguns nas páginas da história do capitalismo : líderes inteligentes capazes de mostrar aos seus patrões as vantagens de diálogos bi e multilaterais com os adversários (os inimigos dos seus negócios hegemónicos), das negociações para tréguas, as vantagens do comércio e da pacificação domesticada das massas. O grande, vasto e poderoso Capital também é capaz de se superar, pois a sua "lei tendencial" fundamental, a sua essência, é salvar a acumulação de capital, os negócios e a taxa média de lucro tão elevada quanto possível (se não a conseguirem tão alta como gostariam, devido às suas crises, destroem capital para criarem capital).
Por conseguinte, não é indispensável ser-se revolucionário
socialista-comunista para se apoiar um Plano de desenvolvimento
democrático sobre uma economia de organização mista, para este país, ou
para qualquer qualquer outro : Basta ser democrata apoiar um Poder de
Esquerda, no voto e nas ruas.
Subscrever:
Mensagens (Atom)