Translate

sexta-feira, 26 de dezembro de 2025

 

Greg Godels 

 

Pode-se pensar que a recente votação do Conselho de Segurança da ONU sobre o plano dos EUA/Israel para manter Gaza como uma semicolónia – governada descaradamente com a brutalidade do antigo Congo Belga – poderia ter provocado uma resistência do "anti-imperialismo" dos BRICS. Em vez disso, os amigos mais sonoros dos BRICS em Gaza optam por se abster na votação. 

 

 

 

 

A multipolaridade – a ideia de que existe mais do que um ator económico decisivo na economia global – é um facto importante. Mais do que qualquer outra coisa, a ascensão da República Popular da China demonstra esse facto. O tamanho e a taxa de crescimento, juntamente com a grande Iniciativa do Cinturão e Rota, estabelecem que a RPC funciona de forma um tanto independente do maior ator mundial no mercado global – os EUA. Enquanto a RPC rejeita a linguagem da rivalidade, caracterizando a sua relação desejada com os EUA como de cooperação ou parceria, o simples facto de os EUA rejeitarem essa relação cria outro polo competitivo na economia global, centrado na RPC. 

Da mesma forma, a classe dominante dos EUA procurou absorver o mundo pós-soviético – Rússia, Europa Oriental e outros ex-colaboradores soviéticos – para a ordem económica dominada pelos EUA. Os EUA exigem que joguem o mesmo jogo e pelas mesmas regras ou sejam banidos da participação. Quando eles se opõem ou desafiam esses termos, também se tornam necessariamente polos alternativos. 

 

À medida que outros participantes anteriormente menores ou concordantes – Brasil, Índia, etc. – ganharam estatura económica, também podem representar contrapontos à unipolaridade dos EUA. 

 

A tendência de afastamento do domínio completo dos EUA na economia de mercado internacional é uma realidade do nosso tempo. Nenhuma pessoa racional pode contestar esse facto (embora a tendência possa facilmente inverter-se). 

 

Desde a origem do comércio internacional, houve tendências conflituantes e contra-tendências em direção à concentração e diversidade, ao monopólio e à concorrência,  à unipolaridade e multipolaridade. É da própria natureza, da essência da troca mercantil que um interveniente privilegiado apareça a dominar, apenas para ser desafiado por rivais que posteriormente compartilham ou dominam o mercado, e o processo repete-se ou reverte-se. Como Friedrich Engels insistiu: "Em resumo, a concorrência passa a monopólio. Por outro lado, o monopólio não pode conter a maré da concorrência – na verdade, ele próprio gera concorrência." 

 

A história mostra que muitos impérios ou países surgiram para dominar uma zona de comércio ou troca contra os seus "parceiros" comerciais: domínio veneziano no Mediterrâneo, domínio holandês no comércio europeu com as Ilhas das Especiarias, domínio dos sucessivos impérios europeus no comércio de escravos, domínio britânico no comércio de ópio com a China, etc. Em quase todos os casos, outros impérios ou nações desafiam e frequentemente prevalecem. 

 

Com a ascensão da Guerra Fria, os imensamente poderosos EUA assumiram e mantiveram o papel de liderança no governo e proteção da ordem capitalista, então mais de metade da população mundial. Após a queda da União Soviética, os líderes dos EUA procuraram estender o seu domínio sobre o mundo inteiro, vislumbrando uma nova ordem que codificasse e garantisse as desigualdades existentes e o desenvolvimento desigual estabelecido. Claro, esse status privilegia os interesses dos EUA. 

 

Se esse estado de coisas constitui o que as pessoas consideram unipolaridade, então está claro que não é sustentável. Os concorrentes erguer-se-ão sempre para desafiar o domínio dos EUA. Os rivais vão empenhar-se em romper o domínio económico dos EUA, através da inovação, de enganos, truques, manipulação de mercado, alianças e até conflitos abertos. Esse é o caminho do capitalismo. 

 

E é isso que está a acontecer. 

 

Assim, as tendências alternadas entre multipolaridade e unipolaridade são consequências inevitáveis da troca mercantil num mundo de propriedade privada e interesses nacionais. 

 

Deve-se notar que – se tudo o mais permanecer igual – essa dinâmica não garantirá que os trabalhadores beneficiem ou sejam prejudicados por mudanças nos polos existentes. Mudanças na posição económica relativa dos Estados-nação na economia global são neutras em relação ao destino daqueles que vivem em sociedades de classes. Um trabalhador ou um camponês podem ganhar pouco com uma tendência de passagem da unipolaridade para a multipolaridade – qualquer ganho será determinado por outros fatores. 

 

***** 

 

Existe, no entanto, uma compreensão totalmente diferente da multipolaridade, não relacionada com a tendência factual da concorrência em levar a economia global para um mundo unipolar ou multipolar. Desde a época de Karl Kautsky, os que se consideravam de esquerda investiram na multipolaridade como resposta moral ao imperialismo, como antídoto para a exploração económica, como anti-imperialismo. Os Estados-nação eram e são considerados como aceitando racionalmente uma ordem estável baseada em interesses comuns e relações justas e equitativas (se ao menos os predadores fossem domados!). Lenine ridicularizou essa visão e a Primeira Guerra Mundial  esmagou-a. 

 

Mas ela não desaparece! A ilusão de uma irmandade de potências capitalistas aceitando relações justas e equitativas persiste teimosamente! 

 

Liberais e sociais-democratas investiram fortemente na Liga das Nações, um reajustamento das regras da política e economia internacionais após o desastre da Primeira Guerra Mundial. Esperava-se que quer as pequenas nações quer as grandes vivessem amigavelmente sob o seu guarda-chuva. A Liga prometeu sufocar a agressividade e a dominação das grandes potências. Em menos de duas décadas, a Guerra Mundial voltou a estar na agenda. 

 

Mais uma vez, após a Segunda Guerra Mundial, uma nova instituição "multipolar" surgiu – as Nações Unidas. Dominada por potências capitalistas (a maioria também fantoches da classe dominante dos EUA), a promessa de diversos polos garantindo paz, harmonia e justiça deu lugar à manipulação, indecisão e – na melhor hipótese – à impotência. A ONU – hoje, uma instituição multipolar que governa Estados-nação orientados pelo capitalismo – é uma farsa moderna. 

 

Agora, temos os BRICS – a aliança de um conjunto heterogéneo de Estados com ideologias diferentes, modos de governo diferentes, economias diferentes, níveis de desenvolvimento e compromissos com a justiça social diferentes, mas um interesse comum em encontrar algum benefício ao reorganizar a ordem mundial existente. Centristas e gente de esquerda de todas as tendências adotaram os BRICS e os BRICS+ como uma frente anti-imperialista. Com pouca reflexão sobre a história, com pouca apreciação da diversidade e, especialmente, com pouco entendimento das economias baseadas no mercado, eles imaginam que os Estados-nação movidos pelo interesse próprio de alguma forma construirão uma organização comum governada por interesses mútuos. Kautsky abraçaria essa esperança superficial. Lenine descartá-la-ia sumariamente. 

 

Persistente e consistentemente, desafiei esse conceito equivocado de anti-imperialismo. Os BRICS não são uma resposta ao imperialismo mas uma aliança de monopólios, não é uma resposta à exploração capitalista. 

 

E essa é a tragédia da solução dos BRICS para o imperialismo. Ela não aborda a base do imperialismo: o modo de produção capitalista. Ela distrai os guerreiros da justiça social, e até alguns marxistas, da raiz do aumento da desigualdade dentro e entre as nações. Através da ignorância ou frustração, cria a falsa esperança de moderar a exploração sem confrontar o capitalismo. 

 

***** 

Onde os argumentos teóricos falham, tenho proposto um teste prático de multipolaridade e, especificamente, de BRICS. Se os BRICS são uma alternativa anti-imperialista, então eles – ou os seus membros mais comprometidos – devem manter-se firmes contra os atos mais gritantes, mais flagrantes do imperialismo. Sugeri que a resposta dos membros dos BRICS às atrocidades em Gaza é um teste decisivo de compromisso com o anti-imperialismo, um teste que os BRICS falharam miseravelmente. 

 

Pode-se pensar que a recente votação do Conselho de Segurança da ONU sobre o plano dos EUA/Israel para manter Gaza como uma semicolónia – governada descaradamente com a brutalidade do antigo Congo Belga – poderia ter provocado uma resistência do "anti-imperialismo" dos BRICS. Em vez disso, os amigos mais sonoros dos BRICS em Gaza optam por se abster na votação. 

 

E, sim, alguém pensaria que essas abstenções escandalosas fariam muitos multipolaristas pararem para repensarem a sua ilusão de uns BRICS anti-imperialistas. 

 

E muitos à esquerda recuaram diante desse plano e criticaram as abstenções russa e chinesa. O Partido Comunista Palestino denunciou a votação, assim como outros partidos comunistas e operários. 

 

Num artigo intitulado "Os BRICS São os Novos Defensores do Livre Comércio, da OMC, do FMI e do Banco Mundial e Apoiam o Genocídio ao Continuar a Negociar com Israel", Yves Smith, do Naked Capitalism, desafia vigorosamente os BRICS a respeito de Gaza e cita outros, incluindo a podcaster de esquerda Fiorella Isabel e a jornalista de esquerda Vanessa Beeley. 

 

Ainda assim, apologistas como os Amigos da China Socialista defendem a abstenção da China e da Rússia. Eles argumentam de forma bizarra que: "Para a China, ou a Rússia, exercer o veto apenas teria enfraquecido a sua posição em relação às nações árabe e islâmica e, consequentemente, fortalecido ainda mais a dos Estados Unidos." Como se votar contra a resolução do Conselho de Segurança lhes custasse a amizade com alguns dos traidores da causa palestiniana, e desafiar o plano dos EUA teria de alguma forma fortalecido a já complacente relação dos EUA com esses mesmos traidores ao destino de Gaza. 

 

Desde a resolução sobre Gaza, os EUA lançaram uma ofensiva contra a soberania venezuelana. O poder militar dos EUA é colocado em águas próximas da Venezuela, insistindo que o povo venezuelano se curvará à pressão americana. A ameaça é real e acompanhada pela demonstração repugnante do poder dos EUA com o assassinato de tripulações de barcos em águas internacionais, assassinatos que não têm legitimidade estabelecida. 

 

Como responderam a RPC e a Rússia – a "lança" do anti-imperialismo do BRICS ? 

 

Kejal Vyas e James T. Areddy, escrevendo no The Wall Street Journal, afirmam com ar convencido: "Durante duas décadas, a Venezuela cultivou aliados anti-americanos ao redor do mundo, desde a Rússia e a China a Cuba e ao Irão, na esperança de formar uma nova ordem mundial que pudesse enfrentar Washington. Não está a funcionar." Eles entendem que Cuba e o Irão não estão em posição económica de ajudar a Venezuela. Quanto à Rússia e à China, os autores concluem: "Ambos os países estão agora a tentar negociar grandes acordos diplomáticos e comerciais com Trump, dando-lhes pouco incentivo para desperdiçar capital político com a Venezuela." 

 

Deve ser claramente entendido que a Rússia, a RPC e outros Estados dos BRICS têm o direito soberano de forjar a sua própria política externa coletiva ou independente, não obstante o que outros possam querer. Infelizmente, ao contrário do auge da Guerra Fria contra Estados socialistas, nenhuma grande potência ou aliança está disposta a arriscar confrontos com outras grandes potências, onde a disposição para isso é historicamente a medida do anti-imperialismo autêntico. 

 

Deveria ser igualmente claro que aqueles que elevam os países BRICS ao estatuto de ícones anti-imperialistas estão a prejudicar a esquerda. Por mais bem-intencionados que alguns líderes dos BRICS possam ser, ficam muito aquém de constituir um bloco anti-imperialista. Continuar a fantasia de que a união em torno do BRICS é a base de uma frente anti-imperialista só desvia a esquerda de atacar a base do imperialismo: o capitalismo. 

 

 

 

Fonte: https://mltoday.com/brics-will-fail-to-deliver-anti-imperialism/, publicado e acedido em 21.12.2025 

Foto: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:BRICS.svg 

 

Tradução de TAM

Sem comentários:

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.