
As diferenças entre capitalismo ocidental e socialismo chinês
Semelhanças aparentes escondem profundas diferenças entre as duas superpotências do nosso tempo, o que gera um complexo e necessário debate sobre as alternativas concretas para o futuro da humanidade.
Durante a era unipolar, quando os Estados Unidos reinavam como a única superpotência do mundo, a ideia de planejar a economia para atender as necessidades do povo foi praticamente esquecida ou, pior ainda, considerada ultrapassada. Inspirados pelo julgamento afoito de que a história havia terminado após a queda do Muro de Berlim, muitos pensaram que o socialismo — e, como sua extensão, o planejamento — havia desaparecido. No entanto, o fim da União Soviética não significou nem o fim do planejamento nem da luta de classes.
O futuro depende de uma discussão aberta e sincera em torno da questão: que tipo de planejamento econômico é capaz de resolver as tarefas que a humanidade se coloca neste século 21? Aquele que se submete à financeirização e à lógica excludente do capitalismo ocidental ou aquele que busca abrir uma situação geopolítica inédita de efetiva cooperação entre os povos de todos os países?
A ideia do planejamento como solução para os problemas econômicos da modernidade surgiu no século 19 junto com o movimento socialista. Após as grandes mudanças históricas e políticas decorrentes da Primeira Guerra Mundial, da Revolução Russa e da Crise de 1929, o planejamento econômico, em todas as suas variedades — incluindo uma explicitamente capitalista, supostamente esclarecida — tornou-se o ponto de partida do debate público sobre crescimento e desenvolvimento socioeconômico por décadas. Assim, no pós-Segunda Guerra, a experiência do planejamento foi sistematizada e aplicada tanto no mundo socialista quanto no mundo capitalista realmente existentes.
Por isso, existem dois grandes tipos de planejamento econômico: o capitalista e o socialista. Saber identificar o que eles têm de igual e de diferente é fundamental para compreender aquilo que se poderia chamar de Guerra Fria 2.0 e que coloca os Estados Unidos e a China no centro da luta de classes mundial contemporânea.
Dois tipos de planejamento econômico: capitalista e socialista
Podemos definir de forma ampla o planejamento econômico como a ação de deliberadamente desenhar a economia, em vez de deixar que sua arquitetura seja a ordem espontânea resultante dos mercados livres. Essa definição negativa de planejamento, em oposição simples à mão invisível de Adam Smith, é fundamental para compreender corretamente a relação entre as mencionadas duas formas políticas de planejamento econômico: a capitalista e a socialista. Ela é especialmente útil para abarcar uma ampla gama de casos concretos que, na realidade, sempre são economias mistas. O setor privado e o setor público sempre se complementam de modo complexo para formar a unidade dos sistemas econômicos em que o mercado — seja qual for sua qualificação como capitalista ou socialista — é um componente basilar da realidade.
Nesse sentido, as políticas de gestão macroeconômica em todas as suas vertentes, das mais conservadoras às mais progressistas, podem ser vistas como tipos de planejamento econômico. A busca ativa por resultados específicos em termos de emprego, desenvolvimento, distribuição e industrialização, ou simplesmente o esforço de superação da crise e depressão — e até mesmo a defesa de uma brutal concentração de renda por meio da manutenção da taxa de juros nas alturas — devem ser reconhecidos como negação do laissez-faire e endosso ao planejamento. Tudo depende de quem está planejando: se a minoria exploradora ou a maioria trabalhadora. A aparente confluência entre todos esses diferentes tipos de planejamento econômico, como se eles fossem idênticos, é um fenômeno peculiar que deriva da semelhança formal entre sistemas econômicos planejados para atender metas politicamente muito diversas.
Nosso argumento é o de que, no nível teórico, os planejamentos capitalista e socialista são formalmente similares, enquanto que no nível empírico eles são realmente distintos. Essa identidade contraditória está por trás da maior parte da confusão na análise de sistemas econômicos comparados hoje. Explicá-la de acordo com a mediação cuidadosa entre diferentes níveis de abstração nos ajuda a visualizar melhor o confronto entre a classe capitalista e a classe trabalhadora em nível mundial no século 21.
Similaridade formal
O planejamento econômico capitalista é uma forma específica de capitalismo que já foi amplamente descrita historicamente, mas que ainda necessita de uma elaboração teórica mais profunda. A abordagem aqui empregada é a de conceituar o planejamento econômico capitalista derivando a lógica de tal sistema a partir dos fundamentos da exposição inicial de Marx em O Capital. Isso significa que, para descrever plenamente o que constitui o planejamento econômico capitalista no nível mais abstrato de análise e mostrar sua semelhança formal com o planejamento econômico socialista, precisamos por um instante imaginar o capitalismo num vazio histórico como um movimento abstrato de expansão incessante.
Marx apresenta o capitalismo como um modo de produção em que o processo pelo qual o dinheiro se torna mais dinheiro incessantemente está no comando da reprodução material da sociedade. O circuito infinito de D – M – D’ (dinheiro – mercadoria – mais dinheiro) domina todo o processo produtivo e todo trabalho é realizado como trabalho assalariado. A continuidade expandida desse circuito depende de um encaixe continuado entre os dois universos que constituem a mercadoria: o universo dos valores de uso, que formam a riqueza concreta da sociedade, e o universo do valor, que forma a riqueza social em abstrato. Pode tal crescimento ocorrer em uma trajetória relativamente estável, na qual a população seja materialmente reproduzida? Se deixarmos de lado a realidade histórica e focarmos apenas nas leis fundamentais e abstratas de movimento do capitalismo, a resposta deve ser um inequívoco sim.
Basta que no nosso modelo, as matrizes de insumo e produto, tendo seus encaixes garantidos, sejam reproduzidas em escalas maiores. Esse suporte de insumos e produtos cada vez maior pode ser formatado de modo a permitir a expansão infinita da riqueza abstrata. Assim, a lógica capitalista de expansão e a própria lei do valor não contradizem um sistema econômico plenamente planejado.
A característica mais marcante aqui é que um planejamento desta natureza não leva ao fim da alienação se o objetivo for apenas expandir o valor indefinidamente. Os elementos essenciais que transformam todos os produtos do trabalho em mercadoria ainda estão presentes e, portanto, todas as consequências alienantes enraizadas nas relações sociais de mercado também se mantêm. As contradições entre a esfera privada e a esfera pública permanecem numa espécie de suspensão. Embora essa situação ideal evite que a crise irrompa e se exteriorize, ela acumula tensões e eleva, assim, o nível de alienação a novas alturas.
Ambientalistas, especialmente aqueles que defendem o “decrescimento”, podem, neste ponto, argumentar que esse esquema de planejamento econômico acabará por esgotar todos os recursos naturais e que, portanto, é insustentável. A questão ambiental é extremamente relevante para definir o papel do planejamento econômico no século 21. Contudo, o impulso humanista de abordá-la não pode ser estruturado de modo que a unidade da classe trabalhadora internacional seja colocada em risco.
O ponto que se pretende enfatizar nesta etapa do argumento é que um sistema econômico de expansão infinita tanto da riqueza abstrata quanto da riqueza concreta é teoricamente concebível, e que a possibilidade de existência real de tal sistema é uma questão empírica. Consequentemente, enquanto permanecermos em um nível elevado de abstração, podemos falar de um sistema econômico planejado que atenda igualmente tanto à lógica da acumulação de capital quanto à reprodução das condições materiais/ambientais que permitem que essa acumulação continue indefinidamente. Em outras palavras, em teoria, a expansão do valor não precisa necessariamente se autodestruir. Desde que os recursos naturais sejam utilizados dentro de parâmetros específicos, a reprodução econômica pode atender à dinâmica do capital sem eliminar a base material da vida humana na Terra.
Além da questão ambiental, existe outro argumento tradicional contra a possibilidade de tal capitalismo eterno. Ele está relacionado às consequências reais do imperialismo. Contudo, no modelo idealizado desta etapa do argumento, não existem Estados capitalistas competindo entre si. Tudo o que se tem aqui é o ímpeto de expansão do valor dominando “a população humana no planeta”.
Ocorre que, na realidade geopolítica, existem diversos Estados formando seus próprios sistemas econômicos capitalistas nacionais que necessariamente entram em conflito devido à corrida pela dominação do mercado mundial. Focar em um alto nível de abstração nos ajuda a visualizar que a eventual existência de apenas um Estado capitalista mundial extinguiria a disputa territorial entre distintas autoridades políticas. Nesse caso, toda a variedade de conflitos da realidade geopolítica seria reduzida à uma única e mesma luta de classes, opondo proprietários da força de trabalho e proprietários dos meios de produção em escala mundial. Esse tipo de situação se assemelha àquilo que Kautsky chamou de Ultraimperialismo.
Consequentemente, uma economia totalmente planejada não significa o fim do capitalismo. Expandir a estrutura de valores de uso que atende tanto aos desejos objetivos quanto subjetivos de forma organizada é tudo o que se exige para que a acumulação de capital continue indefinidamente. É necessário notar que, considerando esta modalidade de planejamento, não há espaço para discutir a utilidade dos bens econômicos. Eles são úteis no sentido de servirem ao processo de acumulação do capital. Assim, a própria utilidade da riqueza, nesse contexto, está inteiramente subordinada à lógica da expansão do valor. O aprisionamento psíquico-mental em massa e as guerras são resultados úteis para permitir o crescimento do capital.
Em suma, o planejamento econômico de natureza capitalista é um sistema regulado onde se garante as condições materiais para a existência contínua da contradição crucial entre valor de uso e valor. Crise, destruição e exploração do ser humano pelo ser humano podem ser administradas ad infinitum. Se for possível montar tal sistema numa espécie de Matrix virtual, tanto melhor para o capital.
O economista britânico John Maynard Keynes, um estrategista do planejamento e de uma nova sociedade, reconheceu esse fato e influenciou fortemente a política econômica do século 20. Ele sabia que uma economia capitalista não tem como objetivo atender às necessidades humanas, ainda que ela crie todas as condições objetivas para isso colateralmente. Se considerarmos o socialismo, em contraste com o capitalismo, como um sistema cujo objetivo é expandir a satisfação das necessidades da população, então não é difícil estabelecer uma curiosa identidade entre esses dois sistemas. Esse é o ponto crítico de uma interpretação parcial, estritamente welfarista, de socialismo.
Se o socialismo for simplesmente pensado como um sistema econômico racional com o objetivo de elevar o bem estar da população num sentido economicista, ou seja, como um Estado de bem estar social que não ataca a dimensão imaterial da qualidade de vida nem rompe com o véu da alienação, então ele se torna formalmente similar a uma versão idealizada do capitalismo.
Distinção real
Similaridade formal, no entanto, não significa identidade absoluta. Assim que o planejamento econômico é concebido como política econômica com impacto no mundo real torna-se claro que o planejamento econômico capitalista e o socialista são duas coisas muito diferentes.
Neste nível mais concreto de abstração, a análise deve levar em conta a realidade geopolítica na qual o novo paradigma de planejamento está se manifestando. As disputas que definem o planejamento econômico da Realpolitik no século 21 estão diretamente relacionadas a dois países que são os grandes atores na economia mundial contemporânea: os Estados Unidos e a China.
Considerando que esses Estados nacionais exercem influência sobre praticamente todos os países e que uma divisão tácita ronda o debate, o conceito de Guerra Fria tem sido invocado. No entanto, há um forte consenso na literatura de que o tipo de oposição que testemunhamos hoje é muito diferente daquele do Pós-Segunda Guerra Mundial. Portanto, a analogia entre as relações Estados Unidos-China de hoje e Estados Unidos-União Soviética de ontem deve ser feita com muita cautela.
É amplamente reconhecido que os Estados Unidos e a China compartilham muitas características, especialmente no que diz respeito aos aspectos quantitativos da economia. Também é amplamente reconhecido que os Estados Unidos e a China representam Estados nacionais que diferem fundamentalmente quanto a seus sistemas políticos.
A metodologia analítica do par conceitual “similaridade formal” e “distinção real” pode ajudar a explicar algumas coisas na controvérsia sobre capitalismo e socialismo hoje. Enquanto o foco na similaridade formal enfatiza as características convergentes entre essas duas economias, a consideração da distinção real destaca o contraste crescente entre como elas podem vir a deixar suas respectivas marcas na história da humanidade. Há múltiplas formas de chamar a atenção para os aspectos que diferenciam os sistemas.
A mais óbvia é notar que seus respectivos Estados nacionais descrevem sistemas políticos muito diferentes, tanto no âmbito doméstico quanto no internacional. Enquanto, de um lado, o poder econômico privado ameaça o processo democrático eleitoral interno, levando os Estados Unidos a se tornarem uma plutocracia, de outro, há uma nítida diminuição da riqueza privada enquanto fonte de poder político, o que ajuda a responder na negativa se A China se voltou ao capitalismo? — além disso, a forma como esses Estados se comportam em relação a outras nações também é radicalmente diferente, exigindo que se resgate um conceito que nunca deveria ter sido posto de lado: imperialismo.
A avaliação de como os Estados Unidos e a China se comportam na arena internacional varia não só porque os analistas são participantes na luta de classes mundial, mas também porque divergem em questões profundas devido às suas diferentes interpretações quando estão do mesmo lado na luta. De todo modo, parece haver consenso sobre qual lado está pressionando por uma nova guerra mundial. John Mearsheimer explica desde 2014 porque a crise na Ucrânia é culpa do Ocidente, enquanto Jeffrey Sachs denuncia os US Neocons por estarem levando o mundo à guerra. Os dois passam longe do marxismo, mas reconhecem a debacle do Ocidente nos novos tempos.
Outra maneira de separar os sistemas é apontar para diversos indicadores econômicos e sociais, de modo a comparar o desempenho desses sistemas em áreas selecionadas. Aqui, também há um contraste amplamente documentado em relação a indicadores básicos de desenvolvimento humano.
Por exemplo, é consensual que suas respectivas contribuições para a redução da pobreza nas últimas quatro décadas diferem significativamente. Além disso, as estatísticas de defesa de suas respectivas populações contra o vírus Covid-19 denotam qual tipo de sistema é mais adequado para proteger as massas de uma ameaça à saúde pública. Nesse sentido, relatórios sobre a expectativa de vida e as taxas de suicídio indicam um nítido contraste: a qualidade de vida em queda livre nos Estados Unidos, subindo na China.
Todos esses dados empíricos são, evidentemente, altamente disputados, como já era regra durante a Primeira Guerra Fria, quando os sistemas econômicos comparados constituíam um dos campos mais populares da pesquisa científica em economia. Assim, indicar os elementos de distinção real não leva necessariamente a tomar partido. Significa apenas que deve haver alguma forma de conceber essas diferenças concretas sem precisar abandonar a noção de similaridade formal, que tem sua função: a de reconhecer o processo amplamente contraditório de transição do capitalismo para o socialismo no mundo real.
Em outras palavras, a classificação proposta não pretende aumentar a tensão do debate interno, tão fundamental para a esquerda como um todo. Para que a controvérsia em torno da China não fique travada, precisamos de um arcabouço mediador, que viabilize a troca de ideias em um sentido produtivo. O que se faz necessário é estabelecer um quadro de referência para sintetizar e situar a posição de cada participante nesse desafio que é rotular sistemas que parecem ser ao mesmo tempo iguais e diferentes.
O método proposto é útil porque, após reconhecer que ambos os sistemas são economias planejadas dentro da dinâmica de expansão eterna do valor, uma análise empiricamente fundamentada é capaz de mostrar qual sistema exerce melhor controle sobre a lei do valor para promover o bem-estar social.
Em resumo, ao concebermos as duas principais modalidades de planejamento econômico sistêmico, tanto em termos abstratos quanto concretos, é possível compreender que elas são ao mesmo tempo formalmente similares e realmente distintas. Embora pareçam ser a mesma coisa, um dos lados sustenta a expansão do valor sem melhorar claramente os indicadores de bem-estar do povo, é assombrado pelo negacionismo e delira com um discurso abstrato de direitos humanos. O outro lado leva realmente adiante o legado positivo do iluminismo, venera a ciência e anuncia oficialmente o fim da pobreza extrema junto a uma população de 1,4 bilhão de pessoas.
Conclusão
O capitalismo ocidental e o socialismo chinêspodem ser concebidos tanto como formalmente similares, quando o foco está na modelagem teórica, quanto como realmente distintos, quando o foco está nos aspectos concretos da geopolítica.
Enquanto permanecemos em um alto nível de abstração e lidamos apenas com a similaridade formal, a análise comparativa não consegue informar “qual lado é melhor” e os dois parecem ser a mesma coisa. Entretanto, assim que avançamos para a análise concreta e reconhecemos a distinção real, vemos que os dados empíricos apontam para o fato de que o controle da lei do valor por um dos lados leva a um resultado superior em termos de promoção do bem-estar humano.
O reconhecimento dessa duplicidade entre similaridade e distinção é fundamental para a avaliação científica dos sistemas econômicos comparados na atualidade. Os dados apresentados aqui não pretendem resolver a questão, mas apenas destacar a separação entre teoria e empiria que está por trás de grande parte da confusão em torno da comparação entre os principais competidores geopolíticos do século 21. Deve-se notar que existem maneiras alternativas de apresentar e avaliar os dados, e pesquisadores de todas as abordagens metodológicas devem ser encorajados a participar e enriquecer esse debate.
Devido a essa duplicidade de igualdade e diferença, concluímos que o planejamento econômico, tal como vem sendo praticado com acertos e erros desde o fim do laissez-faire, constitui a escalada de todas as contradições do modo de produção capitalista, conforme apontado por Marx. Assim, ele reforça as relações sociais de (re)produção da mercadoria e seus aspectos alienantes, ao mesmo tempo em que amplia as condições objetivas para negá-los, ao possibilitar a transição das instituições bestiais do capitalismo mais selvagem para um sistema socialista real: humano, cuidadoso com a vida e …imperfeito.
Tiago Camarinha Lopes
é professor de economia na Universidade Federal de Goiás. Seus trabalhos incluem Technical or Political? The socialist economic calculation debate e Rejoinder: Mises's attempt to scientifically reject socialism failed (acesso ao texto completo no link contido na página)

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