Diário de Carlos – 13
Sabias os anos, os meses e os anos em que estávamos casados. Nunca percebi se na verdade me amaste sempre, se deixaste de me amar. Se é verdadeira a segunda hipótese, se não entendi nunca a força e duração do teu afecto, menos sei quando se quebrou e porquê. Quando a tua doença se revelou, fatal, inexorável, o cancro no útero, definitivo, implacável, não desprezavas um minuto sequer da minha companhia. Porém, anos a fio, meses, dias, noites, não sentia a tua presença. Reacção natural à minha desatenção, à minha indiferença? Hoje compreendo-me melhor. E não gosto do que vejo. Não sei que defeito, que tara é a minha que me fez assim como sou. Ou como fui. Amava quando perdia o amor do outro. Amei-te quando te perdi. E, mesmo assim, não to demonstrei. Traí-te vezes sem conta, traíste-me por mera vingança? Se foram paixões dissimulaste-as bem. Eu mal dissimulava as minhas. Lias-me nos olhos o brilho vivaz de uma nova paixão. Seguiste-me os passos, vigiavas os meus encontros, exigiste na vez primeira que me apanhaste em flagrante que confessasse à amante que não a amava e que tudo não passava de um flirt, ameaçaste-me com o divórcio, um divórcio litigioso, acedi, porque receei perder-te e da pior maneira e admirei – o meu egoísmo admirou – o teu amor resistente e apaixonado. Poucos anos haveriam de passar até me traíres tu. Depois disso foi a caminhada juntos e separados, em cada encruzilhada ia cada um para o seu lado. Não sei se me arrependo, se me culpo. Cheguei a uma idade em que não se pode mentir a si próprio. Falhei no amor porque nunca lhe fui leal (devia dizer: vos, a vós), atento, obediente, fiel até ao sacrifício. Não, nunca sacrifiquei as minhas escolhas, os meus gostos, as minhas paixões, a um só amor, a ti mesma. Aos flirts, como lhe chamavas, ainda menos. Somente depois da tua morte fui fiel à Carla, a mais improvável das amantes duradoiras. Caso extraordinário: não o fui nas paixões assolapadas por mulheres que me poderiam ter oferecido um amor seguro, domesticado, fui-o por uma jovem mulher que nada me poderia oferecer e nada me ofereceu! A vida é um enigma. Se fosse filósofo como o velho prof. Ramos diria que não soube decifrar o oráculo da Esfinge de Tebas. Humano, demasiado humano. Pergunto-me se não sou um Édipo – um pequeno Édipo – com um destino traçado. Uma tara herdada. Não tenho filhos. Não a transmiti.
Não lavo as mãos convulsivamente. Verifico duas, três vezes, se a torneira do gás está fechada. Tomo metade de um calmante todas as noites. Assusto-me quando o coração ameaça uma arritmia. Desperto pela manhã com más recordações. Quando uma insónia me assalta em plena madrugada, no silêncio tenebroso da solidão, é a ti que eu vejo ao meu lado. Morta.
2 comentários:
Zé,
Só mesmo este Picasso para ilustrar este capítulo do Diário.
Um abraço
Bom trabalho, camarada!
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