Translate

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Entrevista ao filósofo marxista Jean Salem

Entrevista com Jean Salem




Em direcção a que amanhãs?

Nicolas Dutent

04.Mai.11 :: Outros autoresNesta importante entrevista, Jean Salem faz uma reflexão de largo horizonte sobre as dificuldades e também as potencialidades do tempo presente, sobre a herança política, ideológica e filosófica que transporta. “Desesperado e determinado”, nas suas próprias palavras, Jean Salem é um dos indispensáveis no combate pela saída dos “anos de chumbo” que vêm pesando, em tantos lugares, sobre o movimento comunista.







Jean Salem é um filósofo francês, nascido a 16 de Novembro de 1952, professor de filosofia na Universidade de Paris 1 Panthéon Sorbonne e director do Centro de História dos Sistemas de Pensamento Moderno desde 1998. É filho do jornalista Henri Alleg.


http://www.marxau21.fr/


© Olivier Roller

Um comunista, em meu entender, parece-se um pouco com Diógenes que, tendo-lhe alguém perguntado: « Porque entras sempre no teatro pela porta das traseiras? » respondeu: « porque todos entram pelo outro lado».

Jean Salem, enquanto filósofo e observador crítico da sua época, parece-lhe ainda possível inflectir o curso da mundialização?

Todos estão de acordo num mesmo diagnóstico: em falar duma época de crise. E mesmo duma crise de civilização. A situação geral não se afigura nada entusiasmante, de facto. Um dos cenários mais plausíveis para o futuro próximo reside num ataque que o Império (que entendo como sendo a administração americana) poderia empreender contra o Irão e - porque não? - contra a China. Ao contrário do que se passou na época da crise de 1929, os povos não têm sequer uma esperança para a qual dirigir o olhar. Aquela época era a do primeiro impulso da União Soviética e de um movimento comunista mundial. E quando a catástrofe aconteceu, foi em Estalinegrado, cidade um tanto esquecida a meu ver, que a sorte das armas mudou de rumo. No bom sentido. Ao contrário, não se alude sequer hoje em dia, nos manuais de economia destinados aos jovens estudantes franceses, à possibilidade duma economia planificada. E no entanto, é difícil negar que outra economia que não a economia capitalista existiu efectivamente, com os seus insucessos e os seus êxitos, durante perto de 70 anos. É, aliás, toda a história do movimento operário, e não só a do «socialismo real», que fizeram provisoriamente passar ao rol do esquecimento. Este estado de coisas poderia incitar a um pessimismo absoluto, se resistências crescentemente massivas não vierem a eclodir por todo o mundo. O que falta cruelmente a estas resistências, são, nomeadamente na velha Europa, organizações sólidas, resolutas, comunistas, que não pensassem que pudéssemos ter vergonha do passado! A propósito, posso afirmar que inevitavelmente, em virtude da lei dita dos vasos comunicantes, se imporá uma revisão de todas as asneiras que foram ditas sobre o socialismo real. Constato por outro lado, com alegria, que os jovens - a quem o presente sistema não oferece mais que a precariedade, o desemprego e a guerra generalizada - não passam o tempo (ao contrário do que fazem ainda grande número de sexagenários) a dar literalmente tiros no pé: dito doutra forma, não confessam arrependimento, na volta de cada frase e antes de marcarem cada palavra com um dedo no ar, a respeito dos comprovados crimes de Estaline e do suposto horror do passado soviético no seu conjunto. De facto a «esquerda», em grande parte, virou à direita. Nos países ocidentais, o sistema mediático contribuiu para formatar duradouramente os cérebros, para aniquilar toda a faculdade de análise por pouco autónoma ou por pouco rebelde que seja, no que resta do cidadão. Tentei mostrar isso no meu ensaio intitulado Rideau de fer sur le Boul’Mich, que as edições Delga reeditaram recentemente. Em França, um destes numerosos países onde a abstenção progride cada dia que passa nas cabeças como nas urnas, jornalistas a soldo e sabichões debatem até ao infinito o tema das quotas de popularidade totalmente forjadas deste ou daquele manequim pretensamente «socialista». E puderam divertir o planeta inteiro, durante cerca de dois anos (2007-2008), a propósito da magna questão que consistia em saber se seria um homem de raça negra (Obama) ou antes uma mulher de raça branca (Hillary Clinton) que tomaria o lugar do sinistro Bush para assinar as ordens dos bombardeamentos aéreos visando afegãos, paquistaneses e agora os habitantes do Iémen (1) . Depois disto, alguns, mesmo nas nossas fileiras, falam amavelmente de «democracia», como se esta palavra pudesse designar exactamente as mesmas coisas para os que rejeitam o capitalismo e para os seus melhores promotores. Então, veja, estou simultaneamente desesperado e determinado. Desesperado pela falta cruel de perspectiva para as nossas lutas, e determinado porque confortado por mil sucessos mais ou menos locais. Assim, acolher centenas de pessoas na Sorbonne no quadro dum seminário dedicado a Marx, prova pelo menos que saímos dos anos de chumbo. A uma escala muito mais vasta, podemos constatar que 3 dos 12 milhões de habitantes que conta um país como Portugal se mobilizaram em 24 de Novembro passado, a fim de participar numa greve de protesto contra uma política que entende fazer pagar às populações as especulações a que se dedicam banqueiros, negociantes e outra gente bem. Podemos regozijar-nos, enfim, com o renascer das lutas – aqui em França, mas também na Grécia, na Espanha, em Itália, mesmo na Grã-Bretanha, etc. Eis o que é encorajador.

Vimos, precisamente com a crise financeira que atingiu duramente e sem dúvida duradouramente o nosso país, uma retoma do interesse por Marx a fim de pensar os problemas colocados na modernidade. Que sentido dá a esta reviravolta ?



Na Feira do Livro de Francfort, no ano passado, falou-se muito do grande sucesso de livraria dum certo… Karl Marx. Em França, deve ter notado que as Edições Gallimard reeditaram O Capital, na tradução de M. Rubel. Enorme sucesso de livraria, igualmente! Neste mundo em que a « cultura » é completamente dominada pela vulgaridade estúpida que as grandes cadeias de televisão destilam ou por passatempos frequentemente pouco « sociais », creio ser evidente que uma concepção geral do mundo, descrevendo o capitalismo tal como era no século XIX, um capitalismo cujos efeitos lembram cada vez mais furiosamente aquilo em que nossa sociedade se tornou, - creio que tal concepção é inevitavelmente interesante, atractiva, estimulante. A revolução não nascerá certamente apenas do estudo dos livros nem dum fórum de discussão. Mas a atração pela teoria poderá preceder de muito perto a necessidade de uma organização séria, estruturada, em que cada um não dirá o que lhe venha à cabeça diante da primeira cámara de TV que apareça, mas onde todos adoptariam como consigna o dar forma, dar seguimento, dar vida, às decisões e às palavras de ordem previamente decididas. Em resumo, o ABC, quereria dizer que a verdadeira «esquerda» precisa de se dotar muito rápidamente duma disciplina ao menos comparável à que pode reinar no mais débil dos partidos de direita ! – Muitos são os que consideram hoje em dia que não existe ainda um apoio à altura da sua cólera, da sua determinação, da sua vontade de ruptura - pacificamente, se puderem; pela força, se tiver de ser, como diziam os cartistas ingleses, no século XIX. Um tal apoio não parece verdadeiramente existir, nem nas direcções sindicais nem, na actual nebulosa que designam (com uma constância cada vez menos credível) a « esquerda» francesa.

Se então nos perguntarmos: para onde vai o marxismo? Seria tentado a dizer que o seu futuro filosófico está assegurado?

Direi mesmo que quando lia o Manifesto do Partido Comunista, aos 15 anos, me colocava algumas questões que hoje já não se põem! De tal maneira este livrinho é actual! Hoje em dia têm a ousadia, como sabe, de falar nos «trinta gloriosos», como sendo uma evidência, quando estes trinta anos de inegável expansão económica não foram, evidentemente, «gloriosos» (do ponto de vista económico) para todos! Nem para o planeta globalmente considerado, nem para os mais pobres no próprio seio das metrópoles do capitalismo. Acresce ainda que a ideia duma concorrência entre operários, por exemplo, num país de quase pleno emprego, dotado de sindicatos poderosos, como era a França dos anos 1970, me parecia bastante obscura. Agora, em período de desemprego e de recessão, todos sabem bem de que falavam os autores do Manifesto ao usarem esta expressão: ela significa que em tempo de crise, se tu não estás contente, dez outros poderão ocupar o teu lugar! Outro exemplo: a ideia que uma pauperização absoluta da classe operária fosse possível durante um longo período fazia rir os menos maldosos na época do automóvel para todos e do electrodoméstico para tudo. Mas actualmente, o amanhã parece vir a ser bem mais duro para os filhos do que foram os « trinta gloriosos » para os pais. E a ideia catastrofista do jovem Marx e do jovem Engels, segundo a qual a nossa sociedade tende para a constituição de dois polos, com um punhado de milionários num e, no polo oposto, inumeráveis legiões de pobres, já não pode fazer encolher os ombros a ninguém.

Concorda então com a frase de J. Derrida “será sempre um erro não ler e reler e discutir Marx. […] Não haverá futuro sem isso. Não sem Marx, não haverá futuro sem Marx.” ?

Certamente. Eu, como outros, escrevi a Derrida dizendo-lhe o quanto fiquei sensibilizado pelo facto de ele ter publicado um livro intitulado Espectros de Marx. Mandei-lhe a minha própria edição dos Manuscritos de 1844, assinando: « Um amigo dos espectros ». Devo dizer que naquela altura (1993) uma «extrema esquerda» perfeitamente desvairada uivava com os lobos e regozijava-se sem o menor disfarce com a destruição duma União Soviética correntemente apresentada como uma segunda Alemanha nazi. Por isso, não estava nada na moda pretender evocar a sombra desse grande morto. Bem poucos, na Universidade francesa, num contexto que Eric Hobsbawm caracterizou como sendo o de «anti-marxismo raivoso», teriam então ousado declarar-se amigos dum tal espectro.

O PCF festeja este fim-de-semana os seus 90 anos de existência. Que retém da acção e do papel do Partido Comunista Francês na história do nosso país no século XX?

Retenho duas coisas. Primeiro, já não temos um ar totalmente marciano, e atrai-se mesmo certa simpatia, se dissermos que é de lá que vimos, que nem sempre «comemos o nosso chapéu», e que não vendemos o nosso compromisso de juventude por um prato de lentilhas social-democratas (veja Bernard-Henri Lévy e outros marquesitos) ou por uma ligação à ideologia «neo-con» (veja Kouchner e os seus émulos). Segundo: uma história gloriosa. Quer se reescreva ou não a história, que a maquilhem ou que a falsifiquem, que se afadiguem a dar relevo a este ou àquele possível erro ou que se critique certa decisão contestável, é certo que o único Partido que, enquanto partido, se opôs com a constância dum metrónomo à injustiça, aos negocistas, aos gangsters da Finança e aos vendedores de armas, ao nazismo, ao racismo, às guerras coloniais e aos compromissos com o sistema, foi, pelo menos até 1975, o Partido Comunista Francês.

Em quê, exactamente, para si e para alguns dos seus camaradas, filosofar pode ser entendido como um acto de resistência?


Podemos filosofar ao serviço dos poderosos ou dos bem-pensantes. A coisa pode também ser praticada nos limbos, e pretendermos não nos movimentarmos senão num universo irreal e desencarnado. Em suma, existe uma certa filosofia espiritualista que pode não incomodar ninguém. Mas se quiser que eu seja «federador» e confraternal a toda a força, reconhecerei portanto isto de boa vontade: no nosso tempo é, sem dúvida, uma maneira de resistir, mesmo tímida, e de se opor à barbárie que vai chegando, ter a preocupação da cultura e pensar que a cultura vale por si mesma, de ser uma certeza que se falará ainda de Aristóteles e de Demócrito daqui a milhares de anos, enquanto os nomes de Sarkozy e de Berlusconi já nada dirão a ninguém. Porque o simples facto de colocar as mãos sobre os quadris e de dizer o que me dizia o reitor da Universidade de… Moscovo, em 2005 - «não podemos de forma alguma construir um país apenas com estudantes em Direito e estudantes em business ! » -, é suficiente para assinalar que as pessoas entendem opor-se ao desastre cultural que ameaça. Os homens, de resto, não poderiam suportar indefinidamente que tudo: a vida, a saúde, o humor, as artes, a beleza, até o amor e o conhecimento… que tudo isso venha depois das sacro-santas « leis » do mercado, dos golpes de bolsa, da publicidade e do marketing !

Entrevista realizada por Nicolas Dutent para a Revue du Projet

(1) Esta entrevista data de Janeiro deste ano, antes do início da agressão à Líbia, a mais recente agressão imperialista a um Estado soberano (NT).

in www. O Diário. info.

Sem comentários:

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.