Para a História do socialismo
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Recensão de CN, Abril 2004
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Serguei Kara-Murza
A Civilização Soviética
Algoritm, Moscovo, 2002
Índice
Introdução...........................................................................................................pág. 4
Da reforma à «revolução». A etapa da glasnost............................ ...............pág. 5
A «reforma» das instituições................................................................................pág. 7
Alterações no sistema político..............................................................................pág. 9
Forças armadas e de segurança interna...............................................................pág. 10
O desmantelamento da administração do Estado...............................................pág. 10
A desestabilização da economia...................................................................pág. 11
A campanha anti-álcool........................................................................................pág. 13
A liquidação do sistema de planificação...............................................................pág.14
A origem dos nacionalismos.................................................................................pág. 16
O «golpe» de Agosto de 1991................................................................................pág. 18
O revisionismo e a perestróika..........….........................................................pág. 20
A manipulação das consciências.................................................................pág. 21
A campanha anti-kolkhozes..................................................................................pág. 24
Meias-verdades e mentiras descaradas................................................................pág. 26
O desempenho do sistema agrícola......................................................................pág. 27
A descapitalização da agricultura.........................................................................pág. 29
Dificuldades do sistema soviético................................................................pág. 31
O mundo dos símbolos.........................................................................................pág. 32
A economia e a sociedade.....................................................................................pág. 33
A eficácia da planificação......................................................................................pág. 35
O papel social das empresas..........................................................................pág.38
O direito à alimentação.........................................................................................pág.40
Habitação garantida..............................................................................................pág. 41
Os cuidados de saúde....................................….....................................................pág. 43
O apoio à infância........................................….......................................................pág. 44
A extinção da pobreza...........................................................................................pág. 45
O pleno emprego...................................................................................................pág. 47
2
Nota de introdução
A «perestróika» (reconstrução, reestruturação, reorganização) começou por designar um conjunto de reformas económicas, sociais e políticas dentro da sociedade soviética, visando o desenvolvimento e aperfeiçoamento do socialismo.
Este ímpeto reformador e mobilizador da sociedade, presente em vários outros períodos da história da União Soviética, designadamente na época de Khruchov ou no breve período de Andropov, teve início com a eleição de Mikhail Gorbatchov para secretário-geral do PCUS, no Plenário do Comité Central de Abril de 1985.
Numa primeira fase, no plano interno, foram declarados objectivos prioritariamente de carácter económico, como o aumento da produtividade, da eficácia, da qualidade da produção, a auto-sustentabilidade das empresas, o melhoramento da rede de abastecimento, entre outros.
No plano político e social declarou-se, de forma geral, o regresso aos princípios leninistas, a dinamização dos sovietes, o aprofundamento da democracia socialista, o combate à burocracia, ao departamentalismo, à corrupção, etc.
Estes objectivos foram confirmados pelo XXVII Congresso do PCUS, realizado entre 25 de Fevereiro e 6 Março de 1986, cujas decisões, apontando a necessidade de reformas concretas em vários planos da sociedade, proclamaram o contínuo desenvolvimento das enormes potencialidades do sistema socialista soviético, colocando designadamente a meta de duplicar o Produto Interno Bruto no período subsequente de 15 anos.
Porém, a orientação dada a estas reformas cedo começou a pôr em causa não só os princípios do socialismo mas também os próprios fundamentos em que assentava todo o sistema político, social e económico da URSS.
Na sua extensa obra, Civilização Soviética, (dois volumes e mais de 1600 páginas em corpo pequeno), publicada em 2002 e da qual não conhecemos traduções do russo, Serguei Kara-Murza expõe-nos uma interessante visão sobre a nova sociedade nascida em 1917 na Rússia czarista, analisando os distintos períodos que marcaram a sua implantação, desenvolvimento e desagregação.
Neste brevíssimo e lacunar resumo, abordamos apenas os capítulos que se referem à fase da perestróika, procurando apresentar, na perspectiva do autor, os principais momentos deste processo que se revelou decisivo para a destruição da URSS e para a derrota do socialismo como sistema mundial.
CN, Abril 20041
1 O presente trabalho foi revisto em Julho de 2008.
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Da reforma à «revolução»
(Vol. II, parte II, C. 5, págs. 269-278)
O programa de reformas do estado soviético entrou numa fase decisiva no ano de 1987. Serguei Kara-Murza afirma que foi então que Gorbatchov definiu a perestróika como «uma revolução», ou seja, «os mais altos dirigentes do PCUS viam agora a tarefa não num processo gradual de reformas, mas na transformação da sociedade através da quebra e ruptura com a continuidade».
Neste sentido, Kara-Murza considera que «a perestróika se inclui na categoria das «revoluções feitas a partir de cima» (…), «nas quais as camadas dirigentes, utilizando o aparelho do Estado, têm um papel decisivo».
Entre outros aspectos, que serão aprofundados mais adiante neste trabalho, o autor nota que a «perestróika fez parte integrante do conflito mundial – a guerra-fria», e que «no seu desenvolvimento e aproveitamento dos resultados, as forças políticas estrangeiras desempenharam um importante e activo papel».
Como força motriz desta «revolução», surgiu «uma invulgar aliança» dos seguintes grupos sócioculturais: «parte da nomenclatura do Estado e do Partido, ansiosa por superar o amadurecimento de uma crise de legitimidade e conservar a sua situação (mesmo que para isso tivessem de trocar de máscara ideológica); parte da inteligentsia, seduzida pela utopia liberal do Ocidente (moviam-na vagos ideais de liberdade e de democracia e a visão de prateleiras repletas de produtos); e camadas criminosas ligadas à economia paralela».
Em geral, conclui Kara-Murza, «todos estes sujeitos activos da perestróika obtiveram no final aquilo que pretendiam. Os grupos da economia paralela e a nomenclatura acederam à propriedade e dividiram entre eles o poder, a inteligentsia – prateleiras repletas e a liberdade de atravessar a fronteira».
Com ironia amarga, o autor recorda que uma das principais exigências levantadas pela inteligentsia no decorrer da perestróika foi «o fim dos limites à subscrição» de jornais e revistas: «Os limites foram retirados (em 1988), mas a tiragem do [jornal] Literaturnaia Gazeta caiu de cinco milhões para 30 mil exemplares (em 1997). A falta de dinheiro restringe mais fortemente a liberdade de subscrição do que os limites que antes existiam. Mas sobre isto não pensaram.»
A etapa da glasnost
A glasnost (transparência, publicitação) designou a primeira etapa da perestróika, que se prolongou «até à autêntica desmontagem do Estado soviético. Constituiu uma “revolução nas consciências”, conduzida de acordo com a teoria da revolução de Antonio Gramsci 2».
Este fundador do Partido Comunista Italiano, nos seus Cadernos da Prisão, publicados pela primeira vez em 1948, desenvolve uma nova teoria sobre o Estado e a revolução adaptada à população urbana, que se contrapõe à teoria leninista alegadamente concebida para o contexto de uma Rússia rural.
Partindo do postulado de Maquiavel de que o Estado depende da força e da concórdia, Gramsci, como explica o autor (V. II pág.539), vê na destruição da «hegemonia cultural» a via revolucionária para a destruição do Estado.
A situação de hegemonia atinge-se quando o nível de concórdia e aceitação entre os cidadãos é suficiente para os fazer desejar aquilo que a classe dominante exige. Trata-se, porém, de um processo dinâmico, em que, mesmo depois de atingida a hegemonia, são necessários esforços constantes para a manter e renovar.
2 Antonio Gramsci, (1891-1937), político, jornalista e teórico marxista foi um dos fundadores do Partido Comunista Italiano, constituído em 21 de Janeiro de 1921, a partir de uma facção do Partido Socialista Italiano. 4
A estabilidade ou o derrubamento dos regimes políticos dependeria assim da capacidade de alcançar ou de destruir a «hegemonia», no pressuposto de que em qualquer dos casos se trata não de um resultado da luta de classes, mas de um processo «molecular», de graduais e imperceptíveis alterações na opinião e atitude de cada cidadão.
Uma vez que a «hegemonia» se alicerça sobre o «núcleo cultural» das sociedades (o conjunto de concepções sobre o mundo e a humanidade, o bem e o mal, o belo e o horrível, bem como numa diversidade de símbolos e imagens, tradições e preconceitos, experiências e conhecimentos adquiridos ao longo de muitos séculos), torna-se necessário, para quebrá-la, agir permanentemente através da repetição ininterrupta das mesmas afirmações, dirigidas ao senso comum e não contra o adversário ou inimigo de classe. Depois de muito habituado, o cidadão médio acreditaria no que lhe é transmitido sem precisar de raciocinar.
Quando amadurece a «crise hegemónica» e surge uma situação de «guerra», as acções «moleculares» devem ser reforçadas rapidamente com operações planeadas que provoquem um profundo impacto nas consciências (Kara-Murza refere como exemplos, os acontecimentos da Roménia de 1989 ou o «golpe» de Moscovo de Agosto de 1991).
Esta teoria, afirma o autor, inspirou a etapa da glasnost e todo o programa de desintegração da «hegemonia» do regime soviético. O «sucesso» de tal operação estava à partida garantido porque, ao contrário da Itália de Gramsci onde os comunistas nunca dominaram os instrumentos de poder, na URSS todo o aparelho ideológico e de propaganda encontrava-se naquele momento nas mãos dos conspiradores.
Assim, a glasnost constituiu «um grande programa de destruição de imagens, símbolos e ideias, que consolidavam o “núcleo cultural” da sociedade e reforçavam a hegemonia do estado soviético. Este programa foi executado através da intensa utilização dos meios estatais de informação de massas, envolvendo activamente prestigiados cientistas, poetas e artistas. Nesta operação, a parte da inteligentsia que apelava ao bom senso foi completamente silenciada, impedindo-se qualquer tentativa de debate sério na sociedade: «a «maioria “reaccionária” não logrou expressar-se».
E mesmo alguns artigos de sinal contrário que geraram forte polémica, como a famosa «Carta de Nina Andreeva»3, foram intencionalmente e «minuciosamente seleccionadas, entre as intervenções mais grosseiras», afirma o autor.
A descredibilização dos símbolos e imagens alcançou uma notável profundidade histórica alvejando, desde figuras recentes como o general Jukov, até personagens do passado como o general Kutuzov ou mesmo o mítico Aleksandr Nevski.
Foram utilizados de forma intensiva os grandes acidentes (Tchernóbil ou o naufrágio do navio «Admiral Nakhimov», em Abril e Agosto de 1986, respectivamente), os incidentes (aterragem na Praça Vermelha da avioneta do cidadão alemão, Mathias Rust, em Maio de 1987), os derramamentos de sangue (Tbilissi, 1989), ou ainda situações chocantes como a infecção com SIDA de 20 crianças num hospital da cidade de Elist, em Kalmekia, que produziram um grande efeito psicológico.
A propósito deste último caso, o autor lembra que na mesma altura, em França, foram infectadas quatro mil pessoas com sangue contaminado, notícia que foi completamente omitida pela imprensa e televisão soviéticas.
Também o movimento ecologista foi chamado a desempenhar um papel puramente ideológico, levantando todo o tipo de suspeitas, designadamente sobre a segurança dos alimentos, que deixaram a opinião pública num estado próximo da psicose. As centrais de energia nuclear tornaram-se alvos de protestos, chegando mesmo a ser encerrada uma unidade na Arménia, que alguns anos depois foi reactivada.
3 Carta publicada no jornal Sovietskaia Rossia, em 13 de Março de 1988, com o título Não Posso Renunciar aos Meus Princípios. Nina Andreeva, que era na altura professora de Química na Universidade de Leninegrado, insurgiu-se contra a campanha difamatória lançada nos media contra I.V. Stáline. Após a dissolução do PCUS, funda, em Novembro de 1991, o Partido Comunista dos Bolcheviques de toda a União do qual permanece secretária-geral.
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De resto, observa Kara-Murza, depois de «concluída a perestróika, o movimento ecologista dissolveu-se».
Particular pressão ideológica exerceram as sondagens de opinião promovidas pelos meios de comunicação. Como exemplo eloquente, o autor refere um inquérito sobre a qualidade da alimentação, realizado em toda a União Soviética em 1989, no qual 44 por cento da população se queixavam de uma alegada falta de leite e lacticínios.
O facto é que, recorda, o consumo médio per capita deste tipo de produtos na URSS era de 358 quilogramas por ano. Nos Estados Unidos, este valor era de 263 e na Espanha de 140 quilogramas.
Mais extraordinário foi o resultado do estudo na Arménia, onde o consumo médio de leite e lacticínios atingia os 480 quilogramas anuais por pessoa. Apesar disso, uma esmagadora maioria de 62 por cento dos inquiridos terá opinado haver carência destes alimentos.
Outro vector central da ideologia da perestróika, referido por Kara-Murza, partiu da ideia de eurocentrismo, baseada no pressuposto da existência de uma civilização mundial única, personificada pelo Ocidente, que seguia o seu curso natural e correcto, do qual a Rússia, na sua etapa soviética, se teria afastado. Daqui resultou a concepção do «regresso à civilização» e a orientação para os «valores da humanidade». «O Estado foi declarado como o principal obstáculo neste caminho e a desestatização a principal tarefa».
Em resumo, «na consciência social foi denegrida a imagem de praticamente todas as instituições do Estado, desde a Academia das Ciências aos jardins-de-infância, mas sobretudo do sistema económico e do exército. Depois de criados os estereótipos negativos, iniciou-se a reforma dos órgãos de poder e da administração».
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sábado, 14 de abril de 2012
Documentos sobre a contra-revolução na União Soviética. Iremos publicar regularmente documentos (mais ou menos recentes) sobre a Revolução Russa, Lenine, a verdade histórica de Stáline, os propósitos revisionistas de Trótsky, Kamenev, Bukhárin e, mais tarde, de Kruchev (as mentiras sobre o socialismo já vêm do tempo deste Secretário-Geral). Trata-se de denunciar com documentos as mentiras da propaganda.
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