Marx, mais actual que nunca
1. Marx não é apenas um «clássico» do pensamento filosófico. Estou convencido que Marx é hoje mais contemporâneo para nós do que era há trinta ou quarenta anos! Tomemos, por exemplo, o Manifesto do Partido Comunista. Lembro-me de, quando o lia pela primeira vez, ir perguntar ao meu pai: que significa essa «concorrência» entre operários que os autores falam em várias ocasiões? A concorrência entre capitalistas, a concorrência mesmo no seio da burguesia, isso era na verdade evidente; mas a possibilidade de que existisse uma concorrência entre trabalhadores não parecia tão evidente, numa época em que os sindicatos eram fortes, em que a classe operária estava poderosamente organizada, numa época de pleno emprego (ou quase) e de políticas «keynesianas». Hoje em dia, pelo contrário, qualquer pessoa remetida para empregos cada vez mais precários e menos frequentes compreenderia isto desde a primeira leitura: efectivamente, o sistema repete-lhe constantemente «se não estás contente, e mais ainda se protestares, há mais dez que estão dispostos a ocupar o teu lugar!». Penso também naquele trecho em que Marx e Engels falam da prostituição, na altura muito alargada entre a classe operária inglesa: não era um fenómeno de massas na década de 1960. Mas, nos nossos dias, depois da grande «libertação» de 1989-1991, há mais de 4 milhões de mulheres que foram – literalmente – vendidas: e esta atmosfera de mercantilização generalizada dos objectos e dos seres humanos, a nossa, facilita-nos, mais uma vez a compreensão imediata do texto do Manifesto. Definitivamente, há muitas coisas que poderemos encontrar em Marx adaptando-as, claro está, à nossa própria época. Por isso é que continuo a acreditar que o marxismo se mantém, como filosofia, inultrapassável do nosso tempo.
Em primeiro lugar não se pode falar, a não ser por graça, de desaparecimento da classe operária, visto que a China e a Índia, que têm quase metade da população humana, se converteram nas duas principais manufactureiras do mundo que alimentam o comércio mundial. Além disso, subsistem alguns operários ainda noutros lugares, não acham? Isto, sem contar com todos esses imigrantes que trabalham na Europa ou nos Estados Unidos, amiúde clandestinamente e, mais amiúde ainda, invisíveis ou quase. Isto parece-me dificilmente contestável… Na realidade, estas considerações relativas à pretensa extinção da classe operária parecem-me euro – ou «ocidental»-centrica. Em grande parte nascem sobre o húmus da antiga exploração colonial; germinam num mundo em que a classe operária ocidental pôde e pode continuar (ainda que em menor medida) a beneficiar, embora mais exiguamente, de migalhas provenientes da pilhagem de países pobres. Noutros tempos esta realidade contribuiu para prevenir a explosão de uma verdadeira revolução na Europa, e as estruturas capitalistas puderam assim manter-se, embora muito contestadas por correntes políticas poderosamente organizadas. Desindustrializai à toa; devastai regiões inteiras fechando os locais de produção em que antes se concentravam muito visivelmente operários qualificados. Não apanheis nunca o metro antes das 7H30 da manhã; olhai fixamente para a televisão, que não vos dá quase nunca a palavra; e sobretudo, não viajeis: tereis então suficientes razões para não ver a classe operária e até mesmo para imaginar que está morta…
Para isso, e em muitas ocasiões como foi o caso de 1981, a social-democracia serviu de «salva-vidas» do sistema e de amortecedor extremamente eficaz para deitar por terra qualquer tentativa de alteração social. Mas a crise está aí. Aí mesmo. Rir-se-iam na nossa cara se na década de 1960 algum de nós tivesse o atrevimento de defender a tese da pauperização absoluta da classe operária nos países capitalistas desenvolvidos: então, nos EUA uma família operária podia, sem dificuldades de maior, ter dois carros… Daí para cá não acabámos de acordar das ilusões de um passado muito recente (o da época que o pensamento único decidiu baptizar de «Os Trinta Gloriosos Anos»). Estamos confrontados com um mundo preenchido de insuportáveis desequilíbrios, um mundo em que o poder aquisitivo dos que trabalham (e dos que estão impedidos de o fazer) se reduz à sua expressão mais simples.
Em suma, apesar da destruição da escola pública, da saúde pública, de tudo aquilo que foi conquistado graças à luta, subsistem ainda, sem margem para dúvidas, possibilidades de concentrações, de alianças, não só de operários franceses e operários italianos, europeus, mas também de operários europeus e trabalhadores «extracomunitários», como acontece no vosso país. Todos têm, fundamentalmente, interesses convergentes, sejam quais forem as diferenças existentes entre os seus percursos, as suas crenças privadas, os seus ritos, os seus hábitos alimentares. Sejam quais forem os mexericos do fascismo vindouro, ou que poderá, pelo menos, voltar. Toda aquela gente é, com efeito, mercadoria humana. Uma mercadoria cada dia tratada com menos consideração.
A crise
2. Não é segredo para ninguém: o sentimento de declínio invadiu a maior parte da Europa. Nos nossos países evoca-se hoje incessantemente, com uma nostalgia não desprovida de amnésia, os «30 gloriosos» (que não eram gloriosos para toda a gente!), isto é, os 30 anos de expansão económica, de pleno emprego e de crescimento industrial que se seguiram ao fim da segunda guerra mundial. Até ao fim da década de 1970, inclusive aos olhos de muitos comunistas, a ideia de que nos países da OCDE a classe operária pudesse um dia empobrecer parecia uma ilusão. O capitalismo ocidental parecia destinado a puxar indefinidamente para «cima» o conjunto das rendas.
Com a crise surgida em 1973, estas utopias começaram a perder todo o crédito. Dezenas de milhares de pessoas começaram a dormir nas ruas. O desemprego começou a respeitar a mais de 26 milhões de pessoas na Europa: na Grécia, na Irlanda ou em Portugal a história repete-se e verdadeiros fluxos migratórios começam a formar-se em direcção ao Canadá ou à Austrália. Por falta de meios, os sectores públicos deterioram-se: os transportes urbanos, mas também o sector da saúde, o da educação, etc.. Os salários são cortados, comprimidos, ao ponto de quase um francês em cada seis viver actualmente sobre a «linha de pobreza». As camadas médias estão confrontadas com dificuldades que, há 20 anos, pareciam impensáveis. Em resumo, a afirmação do jovem Engels segundo a qual a sociedade capitalista tende a dividir o mundo em milionários e pobres (…bis die Welt in Millionäre und Paupers geteilt ist) [1] não poderá surpreender ninguém.
Do ponto de vista ideológico é preciso constatar que, como noutras épocas de crise, a mobilização dos trabalhadores (ou dos não trabalhadores!) em luta pela sua sobrevivência económica e social depara com redobradas dificuldades. O fim da União Soviética e a forma como esta foi apresentada pela propaganda oficial formataram muitos dos que tinham 15 ou 20 anos em 1968 nas suas viagens e na sua adesão, mais ou menos total, ao sistema vigente. O oportunismo afluiu aos partidos comunistas oeste-europeus que pareciam considerar como dados intangíveis o estado da muito relativa «democracia» e da ainda mais relativa prosperidade que prevalecia ainda na Europa até à década de 80, mesmo quando esta prosperidade começava a marcar passo, e esta «democracia» estava prestes a ser sistematicamente destroçada (votações espezinhadas, guerra permanente contra as liberdades públicas e os direitos sindicais, crescimento exponencial das medidas de controlo social e da confusão burocrática neoliberal, etc.).
E é assim que a Europa, em meados dos anos 1980, pôde contar com 17 governos conduzidos por social-democratas, com os resultados que se conhecem: financeirização da economia em demasia, crescente descomprometimento do Estado salvo no que respeita à «vigilância nocturna» (exército, polícia) perfeita confusão entre da «direita» e «esquerda», que se revezam desde esta época na imposição aos povos de um plano de austeridade após outro (lembremos a propósito o que disse um dia Gianni Agnelli, o patrão da FIAT: «quando as coisas se complicam a tal ponto, a esquerda faz melhor o trabalho que a direita»). Tal como em França onde no espaço de trinta anos, a parte da riqueza produzida que passou da remuneração do trabalho, isto é dos salários, para a remuneração do capital, isto é, sobretudo dividendos, corresponde a 10 pontos do Produto Interno Bruto (PIB)…
O nosso seminário “Marx no século XXI” (na Sorbonne)
3. Foi neste contexto em que as actuais lutas operárias são, infelizmente e por enquanto, essencialmente defensivas, neste clima de anticomunismo generalizado com um perfume de pré-guerra, que lançámos em 2005 com alguns colegas um seminário semanal chamado «Marx no século XXI». Na Sorbonne. Para mostrar, ali, a presença do marxismo que alguns diziam estar «morto» desde há muito tempo. Por vezes este seminário junta 200 pessoas, nunca menos de 100. Vinde ver! Tomai nota deste endereço: http://chspm.univ-paris1.fr/spip.php?article271.
Aí vereis que filmámos mais de 150 comunicações feitas por quase outros tantas/os convidadas/os. Dezenas de milhares de pessoas acompanham semanalmente na internet as nossas conferências e outras jornadas de estudo.
Guardadas as distâncias (!), a ideia que presidiu ao lançamento deste seminário foi um pouco análoga à que, noutros tempos, levou Lenine a fundar o seu jornal Iskra, um jornal destinado, dizia, a reunir, a federar mil energias até então dispersas na Rússia dos czares. Para nós, tratava-se de convidar, uma após outra, todas aquelas e todos aqueles que, até aqui, trabalhavam ou julgavam trabalhar «no seu recanto», isoladamente, nas condições actuais de pesquisa em França e fora: pois em França particularmente as pesquisas marxistas foram marginalizadas desde há muito tempo, quando não foram mesmo censuradas.
É claro que a vinda de Domenico Losurdo, Enrique Dussel, David Harvey ou de George Labica, André Tossel, Daniel Bensaïd, Michael Löwy, Slavoj Zizek, etc., constituíram grandes momentos do seminário! E é também claro que, do ponto de vista político, sentimo-nos muito próximos de pessoas como Losurdo ou Labica (este último infelizmente já desaparecido). Quanto a alguns outros dos nossas/os amigas/os e convidadas/os, pesar da estima que tenho por eles, tenho vários desacordos com eles, particularmente no que respeita à sua maneira de abordar a questão do muito necessário balanço da experiência do «socialismo real».
Dito de outra maneira, vemo-nos reduzidos neste momento a adaptar-nos ao que Immanuel Wallerstein chamou os «mil marxismos»: aí está o efeito de uma situação tão apaixonante como inquietante, de uma situação que é a nossa, e que se caracteriza, como dizem, por uma cruel falta de organização revolucionária na Europa, no momento em que o sistema vacila nas suas bases.
O trabalho humano e o sistema do dinheiro
4. Como não é possível falar de tudo, falarei agora do jovem Marx, o que não significa (acaso será útil que o precise?) que esqueça o Manifesto do Partido Comunista ou o Capital! Começarei por lembrar um belo texto de Cícero (Dos Deveres, II, IV, 14-15) que me parece, além dos séculos, susceptível de esclarecer o presente trecho: «Pensa ainda nos aquedutos, no desvio dos cursos de água, na irrigação dos campos, nos diques contra as inundações, nos portos construídos pelas nossas mãos; como seria possível isso tudo sem o trabalho dos homens? Através destes exemplos, entre muitos outros, fica claro que o benefício e a utilidade que retiramos de coisas inanimadas não poderiam ser alcançados de nenhum outro modo, a não ser pelos braços e o trabalho dos homens. Quanto aos benefícios e as vantagens que obtemos dos animais, como poderíamos obtê-los se os homens não viessem ajudar-nos? Uma vez que os primeiros que descobriram o jeito de empregar cada espécie de animais foram certamente os homens; desde essa época, não poderíamos sem o trabalho dos homens nem apascentar os animais, nem domesticá-los nem abrigá-los, nem tirar proveito útil, nem especialmente exterminar os animais daninhos, nem apropriar aqueles que podem servir para nosso uso. […] É só por isso que a civilização humana se distingue da maneira de viver dos animais».
Então, para o jovem Marx, para o Marx dos Manuscritos de 1844, a via de acesso ao estudo do trabalho é a análise dos sintomas da sua perversão. Para Marx trata-se de descrever a alienação nas suas formas ideológicas para regressar às suas formas concretas, à sua origem: àquilo que se chama o trabalho alienado.
A alienação económica é claramente designada, em 1844 como a da vida real. A miséria resulta da essência do trabalho actual. Do mesmo modo que noutro tempo se opuseram amo e escravo, mais tarde patrício e plebeu, depois soberano e vassalo, vemos hoje oporem-se o que não trabalha e o trabalhador, escrevera Gans, um professor hegeliano a cujos cursos Marx assistira em Berlim (reconhece-se aqui uma frase que se encontrará no Manifesto). Assim, o que se opõe à emancipação da humanidade é a desigualdade social que levanta os homens uns contra os outros.
A realidade é esta: se é bem verdade que o trabalho produz maravilhas para os ricos, ele é a miséria para o operário. Adam Smith, o fundador da economia política clássica, afirma que, na origem, «o produto inteiro do trabalho pertence ao operário» [1]. Mas reconhece ao mesmo tempo que é a parte mais pequena e estritamente indispensável que lhe cabe. A economia política burguesa explica assim ao mesmo tempo que tudo se compra com o trabalho, e que os proletários estão obrigados a venderem-se todos os dias. Por um mesmo movimento do pensamento proporcionaram-se os meios para não reconhecer a alienação do trabalho. A sua objectividade de fachada ratifica, consagra a alienação dos homens. Não se preocupa com a vida do homem, e é essa a sua infâmia.
Quando considera o proletário somente como um operário, quando vê no homem apenas uma máquina de consumir e produzir, um «burro de carga», quando considera a vida humana como um capital, quando abandona o homem no tempo em que o médico não trabalha, o juiz e o coveiro e o preboste de mendigos, dizem ao operário: se por acaso não tiveres trabalho, portanto nem salário – como não existes para mim como homem mas apenas como operário, podes morrer de fome e ser enterrado. A categoria de salário assume assim para o economista a de mínimo vital para o operário e a sua família, – mínimo para que a raça dos operários não desapareça. E esta é indiferença dos teóricos a respeito dos homens encontra uma simbologia perfeita no modelo da lotaria proposto por Smith: «Numa lotaria perfeitamente igual, os que tiram os bilhetes premiados devem ganhar tudo o que perdem os que tiram os bilhetes sem prémio. Numa profissão em que vinte fracassam por cada uma que tem sucesso, este último tem de ganhar tudo o que poderia ter sido ganho pelos vinte que fracassaram» (that one ought to gain all that should have been gained by the unsuccessful twenty) [2]. E o reino do dinheiro manifesta-se, evidentemente, pela proliferação anárquica das necessidades, sem qualquer relação com as exigências naturais do homem.
Então, se o trabalho só aparece no discurso dos economistas sob a forma da actividade que proporciona um ganho, isso quer dizer que o operário no «estádio da economia» (é assim que Marx chama então ao capitalismo), já não pode ter mais actividade do que para adquirir os meios de subsistir. Por isso, o objecto do trabalho é indiferente para o operário, pois este vê-se espoliado por outro homem, pelo capitalismo que o domina como deus domina o seu servidor, no preciso momento em que os milagres dos deuses se tornam supérfluos devido ao trabalho humano. O que conta para o trabalhador é quase exclusivamente a remuneração em dinheiro que o capitalista aceitará dar-lhe depois da operação de produção.
E a alienação do objecto do trabalho (o facto de ter que o ceder a um outro) mais não é do que o resumo da alienação, do desapossamento na actividade de trabalho própria. O operário, ao depender cada vez mais de um trabalho penoso unilateral, mecânico, somente trabalha para manter a sua vida, debilita-se com esse trabalho, que perdeu para ele a aparência de manifestação de si-próprio. Todo o seu penoso trabalho é exterior, estranho ao operário, já que não realiza a sua essência, mas pelo contrário encontra nele a sua negação. Definitivamente, o trabalho deveria ser gozo da vida, prazer e o operário não se sente bem com ele próprio mais do que fora do trabalho.
A necessidade social e a necessidade humana não têm mais nada de comum, o individuo é, em terceiro lugar, totalmente separado do que Marx, depois de Feuerbach, chama a vida genérica, o género (die Gattung). Algo assim como a «essência» do homem. Marx abandonará mais tarde esta categoria, no fim de contas muito abstracta. Mas o essencial do que afirma ainda é actual: o trabalho lucrativo aliena, destrói a natureza do homem, isto é, o seu ser-sociável. O trabalho, a vida foram conduzidos a um mero meio de sobrevivência. A «essência» do homem tornou-se assim o meio da sua existência.
A indústria constitui o «livro aberto» das forças humanas essenciais. Quase não encontramos hoje objectos puramente naturais: a actividade humana é «a base de todo o mundo sensível tal e como existe nos nossos dias [3]. E no entanto, como se tornou alheio ao produto do seu trabalho, para a actividade vital e para o ser genérico, o homem tornou-se estranho para o outro homem. O outro é um poder hostil ou, no máximo, um objecto que se pode utilizar para satisfazer interesses egoístas. O capitalismo leva assim até o fim o que Marx chamará mais tarde no Capital a reificação das relações sociais, isto é, a dominação da matéria inerte sobre os homens. Leva ao paroxismo o que Georgy Lukács chamará ainda mais claramente, em História e consciência de classe (1923) a «dominação da economia sobre a sociedade».
Por isso, depois de indicar desde 1843, as insuficiências do que se chamava o «partido político histórico», Marx nesses manuscritos redigidos em 1844, parece abraçar a ideia de que «não é a crítica, mas o proletariado a força motriz da revolução». Esta ideia, o Manifesto, tal como toda a actividade prática, dar-lhe-ão vida, fá-la-ão passar aos factos.
Lenine, depois de Marx
5. Como sabeis, Marx declara na 11ª das suas Teses sobre Feuerbach que até àquele momento os filósofos não fizeram mais do que interpretar o mundo, mas que a partir desse momento trata-se de o transformar. Na sua própria biografia, podemos ver que colaborou na Gazeta Renana, proibida em 1843. Viu-se então obrigado a exilar-se em Paris. Em 1845 foi expulso de França a petição de Humboldt, o embaixador da Prússia, e vai então para Bruxelas. A seguir, depois do sismo das revoluções de 1848, a reacção triunfa em toda a Europa. De Junho a Agosto de 1849, Marx tem de se refugiar de novo em Paris (de onde é de novo expulso), e depois em Londres, onde ficará quase todo o tempo. Conheceu grandes dificuldades materiais, uma miséria extrema, a ponto de a sua mulher e ele perderem quatro dos seus sete filhos. Definitivamente, Marx teve a vida de um militante revolucionário, de um homem comprometido, assediado, e não a de um filósofo de gabinete. Foi também em Londres que em 28 de Setembro de 1864 participou na fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores; e é em nome do Conselho Geral desta 1ª Internacional que redigirá, em 1871, três «discursos» em que exalta a obra dos communards parisienses e analisa as causas da sua derrota. («sabes, escreve em Junho ao seu amigo Kugelmann, que durante o tempo todo da última revolução parisiense fui denunciado como o grande chefe da Internacional pelos papéis de Versalhes e pela repercussão entre os jornalistas daqui. […] E agora, além disso, o Discurso […] Provoca um ruído infernal e tenho a honra neste momento, de ser o homem mais caluniado e mais ameaçado de Londres»).
As seis teses que resumem o essencial daquilo que Lenine disse mais tarde a respeito da ideia de revolução, e também da acção própria que Lenine conduziu na Rússia no início do século passado, parecem assim, muito logicamente, prolongar a postura e a inspiração fundamental de Marx. Para acabar permitam-me referir uma vez mais estas seis teses:
As seis teses que para mim resumem o essencial daquilo que Lenine disse, mais tarde, a respeito da ideia de revolução, e também da própria acção que Lenine leva avante na Rússia no início do século passado, parecem assim prolongar muito logicamente a postura e a inspiração fundamental de Marx. Para acabar, permiti-me referir, mais uma vez, estas seis teses:
1) A revolução é uma guerra. Lenine compara a política com a arte militar e sublinha a necessidade da existência de partidos revolucionários organizados disciplinados, pois um partido não é um clube de reflexão (dirigentes do Partido Socialista: obrigado pelo espectáculo!).
2) Para Lenine, tal como para Marx uma revolução política é também, e sobretudo, social, isto é uma mudança na situação das classes em que a sociedade se divide. Isto significa que é sempre conveniente perguntar qual a natureza real do Estado, da «República». Assim, a crise do Outono de 2008 mostrou, com evidência, como nas metrópoles do capitalismo o Estado e o dinheiro público podem estar ao serviço dos interesses dos bancos e de um punhado de privilegiados. Dito de outro modo, o Estado não está, em absoluto, acima das classes.
3) Uma revolução faz-se de uma série de batalhas, e cabe ao partido de vanguarda, em cada etapa da luta, escolher a palavra de ordem adaptada à situação e às possibilidades. Sem isso, o movimento esgota-se e desanimam os que esperaram em vão que se lhes indicasse a natureza precisa dos objectivos a atingir e o sentido geral da marcha…
4) Os grandes problemas da vida dos povos sempre se resolveram pela força, também sublinha Lenine. «Força» não significa, longe disso, violência aberta ou repressão sangrenta contra os outros! Quando milhões de pessoas decidem convergir num lugar, por exemplo na Praça Tarr no centro do Cairo, e fazem saber que nada os fará recuar frente a um poder detestado, estamos já, e em pleno, no registo da força. Segundo Lenine, trata-se de atacar as ilusões de um certo cretinismo parlamentar ou eleitoral que conduz, por exemplo, á situação em que estamos agora: uma «esquerda» concentrada quase exclusivamente nos prazos de que uma imensa massa de cidadãos não espera, e com razão…, quase nada.
5) Os revolucionários não devem desprezar a luta pelas reformas. Lenine estava consciente de que em determinados momentos uma dada reforma pode representar uma concessão temporária, ou mesmo um rebuçado, concedido pela classe dominante para melhor adormecer os que resistem. No entanto, considera que uma reforma constitui uma base nova para a luta revolucionária.
6) Depois do início do século XX, a política começa onde estão os milhões ou mesmo dezenas de milhões de homens. Ao formular esta sexta tese Lenine pressente que os lares da revolução tendiam a deslocar-se cada vez mais para os países dominados, coloniais ou semicoloniais. De facto, desde revolução chinesa de 1949 até ao período das independências, na década de 60 do século passado, a História confirmou plenamente este clarividente prognóstico.
Definitivamente, há que ler Lenine, depois do dilúvio e do fim do «socialismo real». Lê-lo e relê-lo. Há que ler Marx. Ou relê-lo. Há que estudar os seus escritos sempre tão actuais. Para preparar o futuro.
Notas:
[1] SMITH (A.), Recherches sur la nature et les causes de la richesse des nations [1776], I, VIII ; trad. G. Garnier [revue par A. Blanqui], Paris, GF Flammarion, 1991, t. I, p. 135.
[2] Ibid., I, X, 1ª secção : “Des inégalités qui procédent de la nature même des emplois” ; ob. cit., t. I, p. 180.
[3] Marx e Engels escreveram isto em 1845 na Ideologia alemã.
Compostela, Galiza, 20 de Abril de 2013
Este texto é a Comunicação de Jean Salem nas XVII Jornadas Independentistas Galegas organizadas por Primeira Linha
* Jean Salem, amigo e colaborador de odiario.info, é Professor de Filosofia na Sorbonne, França.
Tradução de José Paulo Gascão, a partir da versão em galego, distribuída nas Jornadas Independentistas Galegas.