Domingos Abrantes, operário, funcionário do PCP e membro do Conselho de
Estado, detido pela primeira vez em 1959 e um dos participantes da fuga
de Caxias em 1961, foi um dos presos políticos enviado para a
“solitária”. O seu testemunho é o quarto que estamos a publicar esta
semana de oposicionistas enviados para os “curros”, ou “segredo”, como
as celas de isolamento também eram conhecidas
Por
mais perigoso que tenha sido escapar-se do forte de Caxias no próprio
carro de Salazar, debaixo dos narizes dos guardas e das suas armas, como
Domingos Abrantes fez na companhia de sete prisioneiros (uma
espetacular fuga, mais típica de um filme de Hollywood do que da
realidade portuguesa dos anos 60), esse não foi o momento mais difícil
na vida deste homem, operário, que cedo entrou para o Partido Comunista
Português, e para a clandestinidade. De Caxias saiu incólume e vencedor,
dono de uma vitória singular e simbólica, num carro a grande velocidade
que derrubou um portão de ferro e madeira: “Foi uma derrota para a
polícia e para ‘o senhor’, tendo em conta que se tratava do carro de
estimação de Salazar.”
Domingos Abrantes, 81 anos, atualmente
membro do Conselho de Estado, passou por vários estabelecimentos
prisionais, ao longo de 11 anos de encarceramento. No Aljube, conheceu
os seus curros, em Caxias os seus “segredos”, em Peniche casou-se com
Conceição Matos, outra resistente antifascista.
António Pedro Ferreira
Preso
pela primeira vez em 1959, depois de ter entrado para o PCP em 1954, e
se ter transformado em quadro clandestino, Domingos Abrantes “tinha de
estar preparado” para a prisão.
“Era uma questão do tempo...”, a
prisão, o isolamento, a tortura, o não saber nada da família, nem do
mundo, o não ter caneta, nem papel, nem relógio, nem luz... “Mas a
teoria é a teoria e a prática a prática. Vi pessoas que se foram abaixo e
não aguentaram.”
Da primeira vez que foi preso passou cinco
meses nos curros do Aljube. Calhou-lhe uma cela virada para a rua, aonde
chegavam os sons dela oriundos: os elétricos a deslocarem-se sobre os
carris, o primeiro pregão da manhã...
Da segunda vez, porém, tudo
seria diferente: “tinha um castigo especial à minha espera.” Foi preso a
21 de abril de 1965. Levaram-no para Caxias, depois dos interrogatórios
e de 16 dias de tortura do sono sofridos na António Maria Cardoso, sede
da PIDE, e colocaram-no numa cela, a que chamavam “segredo”, aonde não
chegava luz nem som, nem noite nem dia.
António Pedro Ferreira
Entregue
à cegueira absoluta, e com ordem de silêncio, o jovem, “com sangue na
guelra”, insistia em cantar, ainda que o seu estado fosse lastimoso ou
que se sentisse completamente enterrado: “O preso tem de mostrar que é
mais forte que o carcereiro. Se quer enfrentar a polícia com dignidade,
se não quer falar, tem de marcar o ritmo. Tem de se preparar para o
embate com a polícia. Ali não se está só a decidir a questão do
preso...Está-se a discutir a própria dignidade, a consciência e a
ideologia.”
Até chegar a Caxias passou mal. Não foi só a tortura
do sono, infligida sem interrupções, ao contrário do que lhe tinha
acontecido em 1959, no Aljube. Foi aquilo que lhe disseram. Já o corpo,
obrigado a estar de pé dia após dia, enfraquecia, as pernas se
transformavam em trambolhos, os pés inchavam e a pele rasgava. “Entrou
um cientista e disse: ‘você é uma inutilidade. Está a dar cabo da sua
saúde. Nós comprámos uma máquina aos americanos que vai tirar aquilo que
tem no cérebro.” A história até lhe poderia ter parecido uma anedota,
como reconhece hoje, mas naquela altura, com aquele quadro psicológico e
físico, diz que ainda se sentiu vacilar da primeira vez que lhe
colocaram o capacete ligado por uns cabos elétricos a uma máquina. Foi à
segunda que conseguiu ganhar algum discernimento para perceber que tudo
aquilo não passava de uma encenação, ultrapassando aquele que considera
ter sido o seu pior momento na prisão.
Hoje diz que não tem
problemas em entrar de novo num “curro” ou num “segredo”. Já voltou
várias vezes ao Aljube, e apenas uma a Caxias. Ganhou miopia e problemas
de sono, mas lembra que a prisão não é só um lugar de sofrimento e de
tortura. “É também uma escola de formação humana de valores.”
1 comentário:
António Pinto Ferreira ou Domingos Abrantes?
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