Opinião|guerra de agressão
Os dias de uma guerra apenas sem data
Derrotados
na Síria e no Médio Oriente os donos do mundo avançam para o confronto
entre NATO e Moscovo. A guerra ultrapassou a fase da dúvida «se» para se
fixar na dúvida «quando». Para mal dos povos.
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Em
18 de Janeiro de 2018, Sir Nicholas Carter disse o seguinte durante um
discurso solene e mediatizado: a agressão russa «começará mais cedo do
que o previsto e através de um acontecimento imprevisto»1.
Sir Nicholas Carter, além de cavaleiro de Sua Majestade é o chefe do Estado Maior das Forças Armadas do Reino Unido2 e agora também, por inerência, ponta de lança da doutrina imperial britânica reciclada através do soundbite estratégico lançado pela primeira-ministra Theresa May – «global Britannia».
Não é ainda tempo de perceber por inteiro se a história venenosa dos assassínios do duplo-espião Serguei Skripal e filha é o tal «acontecimento imprevisto» que marca o início da «agressão russa», ou seja, o toque a rebate para desencadear a tão preparada ofensiva – obviamente «defensiva» – da NATO contra Moscovo. Parece pouco ambiciosa, apesar da grande amplitude, a retaliação baseada na excitada e contabilística expulsão massiva de membros do corpo diplomático ao serviço do diabólico Putin. Tudo leva a crer, e disso existem provas factuais, que alguns acontecimentos projectados deveriam ter-se desenvolvido de modo mais belicoso durante estes dias de Março, mas alguma coisa correu mal aos que se habituaram a lançar conflitos no mês dedicado a Marte, o deus da guerra. Já lá iremos dentro de algumas linhas.
Para já, é importante termos a noção de que Sir Nicholas Carter foi bastante mais longe do que a denúncia da tão recorrente como latente «ameaça russa». Expôs mesmo um programa de acção e resposta baseado nas seguintes premissas: identificar as debilidades do inimigo de maneira «responder assimetricamente»; continuar a apoiar os países vizinhos da Rússia para que sejam capazes de «fazer frente» aos planos agressivos deste país; diminuir a dependência energética «do ocidente» em relação a Moscovo, isto é, prosseguir a obra de recriação dos mapas do Médio Oriente para que Israel e a Arábia Saudita sejam os gendarmes de uma rapina sem sobressaltos dos combustíveis fósseis da região; enviar ainda mais tropas para as fronteiras russas, porque «uma unidade de infantaria vale tanto como um esquadrão de combate de F-16, quando se trata de disponibilidade»; identificar «as nossas próprias debilidades perante os efeitos nefastos das más influências e da desinformação russas e tomar medidas para as atenuar». Ora Londres não perdeu tempo e, nesse mesmo dia, anunciou a criação de uma unidade militar «contra a propaganda russa»3.
É fácil perceber que o discurso de Sir Nicholas Carter, proferido numa época em que o sistema de poder enraizado na sociedade norte-americana continua a ter de mover piões para domesticar a deriva comportamental de Donald Trump, não resultou da iniciativa voluntarista de um franco-atirador.
Foi proferido quatro dias antes do espampanante lançamento, em Londres, do livro «Ordem para matar: o regime de Putin e o assassínio político» da professora Amy Knight, «especialista em KGB». A obra explica que o presidente russo e a sua gente são serial killers responsáveis por sucessivos massacres, desde o de Moscovo em 1999 até ao da maratona de Boston em 2013, sem esquecer as execuções de pelo menos 14 espiões, além das interferências nas eleições norte-americanas e europeias, fazendo eleger Trump e tornando o Brexit uma realidade. À singela e natural curiosidade de alguém que perguntou pelas provas de tais acusações, a professora explicou que não as tinha, afinal trata-se de uma obra de ficção – mas nem assim menos inquietante.
Uma inquietação a que ninguém pode ficar insensível.
Por isso, em Fevereiro a Alemanha comunicou à NATO a disponibilidade para construir um novo centro de planificação e comando da aliança para transporte rápido de tropas e material.
Jens Stoltenberg, o secretário-geral da aliança, juntou-se à iniciativa explicando que a organização necessita, como de pão para a boca, «de uma estrutura de comando capaz de garantir que as tropas certas estejam no local certo, com o equipamento certo e no momento certo».
Mais disse Stoltenberg, transportando-nos já para os acontecimentos de Março: que «a NATO está em vias de responder ao comportamento irresponsável da Rússia»; que pretende “melhorar a rapidez e a capacidade letal das forças norte-americanas na Europa; que a Rússia foi «o primeiro país a utilizar um agente neurotóxico em território da aliança, a minar as instituições democráticas ocidentais, a violar a integridade territorial» de nações europeias. Embora não tenha sido explícito, sabe-se que Jens Stoltenberg não fazia alusão ao papel atlantista na amputação do Kosovo à Sérvia.
O coro das denúncias e das iniciativas punitivas ampliou-se.
Boris Johnson, ministro britânico dos Negócios Estrangeiros, explicou que «Putin vai utilizar o Campeonato Mundial de Futebol como Hitler usou os Jogos Olímpicos de 1936 em Berlim», pelo que o melhor é as nações ocidentais boicotarem a competição. É certo que o mundo livre vai acarinhando regimes pré e parafascistas na generalidade das nações europeias que rodeiam a Rússia, mas isso é legítimo porque se faz em defesa da democracia, da liberdade e dos direitos humanos; é verdade também que o mundial que se seguirá, o do Qatar 2022, está a ser preparado com base em trabalho escravo de milhares de imigrantes, mas a petroditadura de Doha é amiga, aliada, e não tem regateado esforços para destruir a Líbia e a Síria apoiando entidades humanitárias e genuinamente democráticas como o Daesh e a al-Qaida.
O secretário norte-americano do Tesouro, em sintonia com a avalanche de medidas ameaçadoras, anunciou novas sanções contra a Rússia, estas com base nas alegadas interferências nos assuntos públicos norte-americanos, a propósito das quais até documentos comprovando a sua inexistência «desapareceram» dos dossiers oficiais de investigação.
O novo conselheiro de segurança de Trump, John Bolton – que tem entre os principais amigos Benjamin Netanyahu e o senador McCain, «padrinho» do Daesh – qualificou como «acto de guerra» a (não provada) ingerência da Rússia nas eleições presidenciais norte-americanas. E fê-lo mesmo antes de tomar posse do novo cargo.
E o FBI declarou como «oficial» a criação pela Rússia de um exército de hackers habilitados para paralisar os sistemas informáticos das centrais eléctricas, nucleares, hídricas, aeroportos e portos dos Estados Unidos e da Europa Ocidental. Sem contar com a frota de submarinos pronta a piratear navios mercantes ocidentais.
Entretanto, na Síria…
Na Síria, onde as tropas governamentais, apoiadas pelas forças armadas russas, continuam a avançar na frente de guerra pela restauração da legitimidade na região de Ghuta Oriental, ainda em poder de terroristas apoiados por agentes de serviços especiais franceses, britânicos e norte-americanos, esteve prestes a concretizar-se, neste mês de Março, um plano integrado de acções capazes de atear o rastilho da grande confrontação entre a NATO e Moscovo – ao encontro dos cenários apocalípticos enunciados por Sir Nicholas Carter e Amy Knight, a «especialista em KGB».
O plano tinha, com absoluta certeza apurada através dos factos comprovados, a assinatura da primeira-ministra britânica; muito provavelmente contava também com o apoio do secretário de Estado norte-americano, Rex Tillerson, por razões que adiante se perceberão; e não seria ignorado pelos restantes parceiros do chamado «Pequeno Grupo», entidade que se reuniu pela primeira vez em 11 de Janeiro para discutir as novas maneiras de prosseguir a operação para desmantelamento da Síria e de cuja sessão – apesar do seu suposto secretismo – saiu um «documento confidencial diplomático». Esses outros países são a França, a Arábia Saudita e a Jordânia.
Era um plano conspirativo em quatro pontos interligados, todos eles susceptíveis de elevar os níveis de confrontação global, e não apenas no Médio Oriente: assassínio de um agente duplo russo; um bombardeamento com armas químicas contra os «rebeldes» e a população de Ghuta Oriental, responsabilizando o governo sírio pela acção; um bombardeamento norte-americano de retaliação idêntico ao de há um ano contra a base de Chayaat, mas desta feita contra Damasco e tendo como alvos privilegiados o palácio presidencial e os ministérios – do tipo do que atingiu Bagdade em Abril de 2003; seguindo-se um pedido de exclusão da Rússia do Conselho de Segurança da ONU.
A operação, porém, foi detectada pelos serviços secretos sírios e russos em tempo útil – e logo começou a abortar; porém, os acontecimentos que se seguiram transformaram a semana de 12 a 19 de Março num período de riscos assustadores para a humanidade, que ficam como ameaças suspensas.
Logo no dia 12, Theresa May confrontou a Câmara dos Comuns com os assassínios do espião reformado Serguei Skripal e filha em Salisbury, território britânico. No crime terá sido utilizado um agente neurotóxico conhecido como Novitchok e com chancela russa, embora ainda do período soviético. A chefe do governo de Londres não deixou dúvidas sobre o alvo principal das suas graves acusações.
As forças militares sírias, por seu turno, puseram-se em campo com os dados obtidos pelos seus serviços secretos e em dois dias, 12 e 13, desmantelaram laboratórios de armas químicas em Aftris e Chifonya, na região de Ghuta, ambos criados e geridos pelos terroristas da Al-Qaida cobertos sob outras designações. Apesar de comprovada a intenção terrorista de utilizar, mais uma vez, armas químicas contra a população síria e depois responsabilizar as tropas regulares, a representante norte-americana na ONU, Nikki Halley, comportou-se perante o Conselho de Segurança como se o plano original estivesse em desenvolvimento. Ameaçou com um bombardeamento de retaliação contra o governo sírio pela utilização de armas químicas – enquanto a delegação russa distribuía por todos os membros os documentos do Estado-Maior norte-americano projectando o ataque contra Damasco – para o qual se concentraram navios de guerra no Mediterrâneo. Entretanto, o ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Serguei Lavrov, advertiu Washington de que Moscovo reagiria «na mesma proporção» no caso de cidadãos do seu país serem atingidos por um ataque norte-americano.
O chefe do Estado Maior russo, Valeri Guerassimov, contactou o seu homólogo norte-americano, Joseph Dunford, revelando que sabia o que se passava com o eventual uso de armas químicas na Síria e este levou a advertência a sério; transmitiu a informação ao secretário da Defesa, James Mattis, que a fez seguir para o presidente; este ordenou ao chefe da CIA, Michael Pompeo, que investigasse a situação e, embora não se conheçam as conclusões do trabalho, sabe-se que Tillerson interrompeu a viagem que estava a fazer em África e regressou a Washington, onde foi informado, mas não por Trump, de que fora demitido e substituído pelo próprio Pompeo.
As investigações sobre o acesso ao Novitchok conduzidas por jornalistas e diplomatas rapidamente desmontaram, entretanto, as teses de May garantindo a procedência russa. De facto, o produto foi descoberto e originalmente produzido no laboratório soviético de Nurus, no Uzbequistão. Com a assinatura do tratado ilegalizando o uso de armas químicas e o desmoronamento da União Soviética, a Rússia em desagregação pediu apoio ao departamento norte-americano da Defesa para desmantelar o armamento químico e os laboratórios de preparação, incluindo o de Nurus. Pelo que o Novitchok, incluindo a fórmula e os métodos de produção, não têm segredos para os responsáveis militares norte-americanos. Acresce que os laboratórios que participaram no desmantelamento de armas químicas armazenam doses de todos os produtos conhecidos, entre eles o Novitchok, para poderem exercer funções de descontaminação e controlo de acções criminosas no caso de serem chamados a colaborar. Entre esses laboratórios está o britânico de Porton Down, por sinal a 15 quilómetros de Salisbury, onde Skripal e a filha foram assassinados. Note-se que, segundo os peritos, uma pequena dose de 10 miligramas do produto é letal.
Apesar desta panóplia de dados, o Conselho do Atlântico – esforçando-se por se manter num registo de realidade paralela que conserva abertas todas as portas de confrontação – não hesitou em acompanhar a tese britânica de ligação entre o assassínio do espião e o uso de armas químicas pela Síria, declarando a Rússia como «provavelmente responsável» pelos dois acontecimentos; e no Conselho de Segurança não foi aprovada uma proposta russa de resolução entregando uma investigação sobre estes assuntos à Organização Internacional para o Desmantelamento de Armas Químicas porque o Reino Unido insistiu em incluir no texto uma expressão considerando desde logo a Rússia como «provavelmente responsável».
Enquanto desfilam sob os nossos olhos os contingentes de diplomatas expulsos em massa como resposta a acontecimentos embrulhados em contradições, provocações e conspirações em cadeia, é legítimo reflectirmos sobre o facto, cada vez mais incontroverso, de os nossos quotidianos e, sobretudo, as nossas vidas, estarem nas mãos de dirigentes transnacionais cuja irresponsabilidade é directamente proporcional ao poder quase absoluto de que dispõem.
Vivemos numa situação muito semelhante à que antecedeu a Primeira Guerra Mundial, em pleno confronto de interesses globais que, regra geral, são contrários aos da esmagadora maioria dos cidadãos do mundo. No entanto, o poder de extermínio das armas amontoadas e a redução do planeta à dimensão da globalidade potencia exponencialmente a gravidade do cenário.
Um cenário onde se tornou de uma evidência crua e cruel a incapacidade dos poderes ocidentais, também definidos como «mundo civilizado», em partilhar os bens de um planeta de que se consideram proprietários. Os paladinos da livre e leal concorrência são os primeiros a rejeitá-la quando pressentem o seu monopólio em risco. Por isso são cada vez mais incapazes de esconder o desconforto que sentem perante a efemeridade da unipolaridade que vigorou a partir da celebrada queda do muro de Berlim; ou de disfarçar as saudades da Rússia caótica e dócil dos tempos de Ieltsin e outros sucessores de Gorbatchov, os tempos da corrida aos despojos soviéticos, em coligação íntima com as mafias nascentes, e que, afinal, não eram tão anacrónicos e obsoletos como os pintavam.
Tais poderes são incapazes, por inerência, de aceitar a derrota da sua estratégia militar de disseminação do caos, principalmente no Médio Oriente, que encalhou num obstáculo chamado Síria. Não aceitam que o dogma da sua «invencibilidade» seja desafiado, nem que se torne necessário ir aos limites aterradores de um conflito sem vencedores, em que todos seremos vencidos.
Por isso, quem tentou montar a maquinação que nestas linhas ficou demonstrada não deixará de insistir até conseguir pô-la em marcha.
Aliás, o que a realidade destes idos de Março expõe é a intenção dos inquestionáveis donos do mundo, e respectivo braço armado, de não recuarem perante nada, de avançarem nem que seja através de uma guerra de extermínio que já ultrapassou a fase da dúvida «se» para se fixar na dúvida «quando».
Sir Nicholas Carter, além de cavaleiro de Sua Majestade é o chefe do Estado Maior das Forças Armadas do Reino Unido2 e agora também, por inerência, ponta de lança da doutrina imperial britânica reciclada através do soundbite estratégico lançado pela primeira-ministra Theresa May – «global Britannia».
Não é ainda tempo de perceber por inteiro se a história venenosa dos assassínios do duplo-espião Serguei Skripal e filha é o tal «acontecimento imprevisto» que marca o início da «agressão russa», ou seja, o toque a rebate para desencadear a tão preparada ofensiva – obviamente «defensiva» – da NATO contra Moscovo. Parece pouco ambiciosa, apesar da grande amplitude, a retaliação baseada na excitada e contabilística expulsão massiva de membros do corpo diplomático ao serviço do diabólico Putin. Tudo leva a crer, e disso existem provas factuais, que alguns acontecimentos projectados deveriam ter-se desenvolvido de modo mais belicoso durante estes dias de Março, mas alguma coisa correu mal aos que se habituaram a lançar conflitos no mês dedicado a Marte, o deus da guerra. Já lá iremos dentro de algumas linhas.
Para já, é importante termos a noção de que Sir Nicholas Carter foi bastante mais longe do que a denúncia da tão recorrente como latente «ameaça russa». Expôs mesmo um programa de acção e resposta baseado nas seguintes premissas: identificar as debilidades do inimigo de maneira «responder assimetricamente»; continuar a apoiar os países vizinhos da Rússia para que sejam capazes de «fazer frente» aos planos agressivos deste país; diminuir a dependência energética «do ocidente» em relação a Moscovo, isto é, prosseguir a obra de recriação dos mapas do Médio Oriente para que Israel e a Arábia Saudita sejam os gendarmes de uma rapina sem sobressaltos dos combustíveis fósseis da região; enviar ainda mais tropas para as fronteiras russas, porque «uma unidade de infantaria vale tanto como um esquadrão de combate de F-16, quando se trata de disponibilidade»; identificar «as nossas próprias debilidades perante os efeitos nefastos das más influências e da desinformação russas e tomar medidas para as atenuar». Ora Londres não perdeu tempo e, nesse mesmo dia, anunciou a criação de uma unidade militar «contra a propaganda russa»3.
É fácil perceber que o discurso de Sir Nicholas Carter, proferido numa época em que o sistema de poder enraizado na sociedade norte-americana continua a ter de mover piões para domesticar a deriva comportamental de Donald Trump, não resultou da iniciativa voluntarista de um franco-atirador.
Foi proferido quatro dias antes do espampanante lançamento, em Londres, do livro «Ordem para matar: o regime de Putin e o assassínio político» da professora Amy Knight, «especialista em KGB». A obra explica que o presidente russo e a sua gente são serial killers responsáveis por sucessivos massacres, desde o de Moscovo em 1999 até ao da maratona de Boston em 2013, sem esquecer as execuções de pelo menos 14 espiões, além das interferências nas eleições norte-americanas e europeias, fazendo eleger Trump e tornando o Brexit uma realidade. À singela e natural curiosidade de alguém que perguntou pelas provas de tais acusações, a professora explicou que não as tinha, afinal trata-se de uma obra de ficção – mas nem assim menos inquietante.
Uma inquietação a que ninguém pode ficar insensível.
Por isso, em Fevereiro a Alemanha comunicou à NATO a disponibilidade para construir um novo centro de planificação e comando da aliança para transporte rápido de tropas e material.
Jens Stoltenberg, o secretário-geral da aliança, juntou-se à iniciativa explicando que a organização necessita, como de pão para a boca, «de uma estrutura de comando capaz de garantir que as tropas certas estejam no local certo, com o equipamento certo e no momento certo».
Mais disse Stoltenberg, transportando-nos já para os acontecimentos de Março: que «a NATO está em vias de responder ao comportamento irresponsável da Rússia»; que pretende “melhorar a rapidez e a capacidade letal das forças norte-americanas na Europa; que a Rússia foi «o primeiro país a utilizar um agente neurotóxico em território da aliança, a minar as instituições democráticas ocidentais, a violar a integridade territorial» de nações europeias. Embora não tenha sido explícito, sabe-se que Jens Stoltenberg não fazia alusão ao papel atlantista na amputação do Kosovo à Sérvia.
O coro das denúncias e das iniciativas punitivas ampliou-se.
Boris Johnson, ministro britânico dos Negócios Estrangeiros, explicou que «Putin vai utilizar o Campeonato Mundial de Futebol como Hitler usou os Jogos Olímpicos de 1936 em Berlim», pelo que o melhor é as nações ocidentais boicotarem a competição. É certo que o mundo livre vai acarinhando regimes pré e parafascistas na generalidade das nações europeias que rodeiam a Rússia, mas isso é legítimo porque se faz em defesa da democracia, da liberdade e dos direitos humanos; é verdade também que o mundial que se seguirá, o do Qatar 2022, está a ser preparado com base em trabalho escravo de milhares de imigrantes, mas a petroditadura de Doha é amiga, aliada, e não tem regateado esforços para destruir a Líbia e a Síria apoiando entidades humanitárias e genuinamente democráticas como o Daesh e a al-Qaida.
O secretário norte-americano do Tesouro, em sintonia com a avalanche de medidas ameaçadoras, anunciou novas sanções contra a Rússia, estas com base nas alegadas interferências nos assuntos públicos norte-americanos, a propósito das quais até documentos comprovando a sua inexistência «desapareceram» dos dossiers oficiais de investigação.
O novo conselheiro de segurança de Trump, John Bolton – que tem entre os principais amigos Benjamin Netanyahu e o senador McCain, «padrinho» do Daesh – qualificou como «acto de guerra» a (não provada) ingerência da Rússia nas eleições presidenciais norte-americanas. E fê-lo mesmo antes de tomar posse do novo cargo.
E o FBI declarou como «oficial» a criação pela Rússia de um exército de hackers habilitados para paralisar os sistemas informáticos das centrais eléctricas, nucleares, hídricas, aeroportos e portos dos Estados Unidos e da Europa Ocidental. Sem contar com a frota de submarinos pronta a piratear navios mercantes ocidentais.
Entretanto, na Síria…
Na Síria, onde as tropas governamentais, apoiadas pelas forças armadas russas, continuam a avançar na frente de guerra pela restauração da legitimidade na região de Ghuta Oriental, ainda em poder de terroristas apoiados por agentes de serviços especiais franceses, britânicos e norte-americanos, esteve prestes a concretizar-se, neste mês de Março, um plano integrado de acções capazes de atear o rastilho da grande confrontação entre a NATO e Moscovo – ao encontro dos cenários apocalípticos enunciados por Sir Nicholas Carter e Amy Knight, a «especialista em KGB».
O plano tinha, com absoluta certeza apurada através dos factos comprovados, a assinatura da primeira-ministra britânica; muito provavelmente contava também com o apoio do secretário de Estado norte-americano, Rex Tillerson, por razões que adiante se perceberão; e não seria ignorado pelos restantes parceiros do chamado «Pequeno Grupo», entidade que se reuniu pela primeira vez em 11 de Janeiro para discutir as novas maneiras de prosseguir a operação para desmantelamento da Síria e de cuja sessão – apesar do seu suposto secretismo – saiu um «documento confidencial diplomático». Esses outros países são a França, a Arábia Saudita e a Jordânia.
Era um plano conspirativo em quatro pontos interligados, todos eles susceptíveis de elevar os níveis de confrontação global, e não apenas no Médio Oriente: assassínio de um agente duplo russo; um bombardeamento com armas químicas contra os «rebeldes» e a população de Ghuta Oriental, responsabilizando o governo sírio pela acção; um bombardeamento norte-americano de retaliação idêntico ao de há um ano contra a base de Chayaat, mas desta feita contra Damasco e tendo como alvos privilegiados o palácio presidencial e os ministérios – do tipo do que atingiu Bagdade em Abril de 2003; seguindo-se um pedido de exclusão da Rússia do Conselho de Segurança da ONU.
A operação, porém, foi detectada pelos serviços secretos sírios e russos em tempo útil – e logo começou a abortar; porém, os acontecimentos que se seguiram transformaram a semana de 12 a 19 de Março num período de riscos assustadores para a humanidade, que ficam como ameaças suspensas.
Logo no dia 12, Theresa May confrontou a Câmara dos Comuns com os assassínios do espião reformado Serguei Skripal e filha em Salisbury, território britânico. No crime terá sido utilizado um agente neurotóxico conhecido como Novitchok e com chancela russa, embora ainda do período soviético. A chefe do governo de Londres não deixou dúvidas sobre o alvo principal das suas graves acusações.
As forças militares sírias, por seu turno, puseram-se em campo com os dados obtidos pelos seus serviços secretos e em dois dias, 12 e 13, desmantelaram laboratórios de armas químicas em Aftris e Chifonya, na região de Ghuta, ambos criados e geridos pelos terroristas da Al-Qaida cobertos sob outras designações. Apesar de comprovada a intenção terrorista de utilizar, mais uma vez, armas químicas contra a população síria e depois responsabilizar as tropas regulares, a representante norte-americana na ONU, Nikki Halley, comportou-se perante o Conselho de Segurança como se o plano original estivesse em desenvolvimento. Ameaçou com um bombardeamento de retaliação contra o governo sírio pela utilização de armas químicas – enquanto a delegação russa distribuía por todos os membros os documentos do Estado-Maior norte-americano projectando o ataque contra Damasco – para o qual se concentraram navios de guerra no Mediterrâneo. Entretanto, o ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Serguei Lavrov, advertiu Washington de que Moscovo reagiria «na mesma proporção» no caso de cidadãos do seu país serem atingidos por um ataque norte-americano.
O chefe do Estado Maior russo, Valeri Guerassimov, contactou o seu homólogo norte-americano, Joseph Dunford, revelando que sabia o que se passava com o eventual uso de armas químicas na Síria e este levou a advertência a sério; transmitiu a informação ao secretário da Defesa, James Mattis, que a fez seguir para o presidente; este ordenou ao chefe da CIA, Michael Pompeo, que investigasse a situação e, embora não se conheçam as conclusões do trabalho, sabe-se que Tillerson interrompeu a viagem que estava a fazer em África e regressou a Washington, onde foi informado, mas não por Trump, de que fora demitido e substituído pelo próprio Pompeo.
As investigações sobre o acesso ao Novitchok conduzidas por jornalistas e diplomatas rapidamente desmontaram, entretanto, as teses de May garantindo a procedência russa. De facto, o produto foi descoberto e originalmente produzido no laboratório soviético de Nurus, no Uzbequistão. Com a assinatura do tratado ilegalizando o uso de armas químicas e o desmoronamento da União Soviética, a Rússia em desagregação pediu apoio ao departamento norte-americano da Defesa para desmantelar o armamento químico e os laboratórios de preparação, incluindo o de Nurus. Pelo que o Novitchok, incluindo a fórmula e os métodos de produção, não têm segredos para os responsáveis militares norte-americanos. Acresce que os laboratórios que participaram no desmantelamento de armas químicas armazenam doses de todos os produtos conhecidos, entre eles o Novitchok, para poderem exercer funções de descontaminação e controlo de acções criminosas no caso de serem chamados a colaborar. Entre esses laboratórios está o britânico de Porton Down, por sinal a 15 quilómetros de Salisbury, onde Skripal e a filha foram assassinados. Note-se que, segundo os peritos, uma pequena dose de 10 miligramas do produto é letal.
Apesar desta panóplia de dados, o Conselho do Atlântico – esforçando-se por se manter num registo de realidade paralela que conserva abertas todas as portas de confrontação – não hesitou em acompanhar a tese britânica de ligação entre o assassínio do espião e o uso de armas químicas pela Síria, declarando a Rússia como «provavelmente responsável» pelos dois acontecimentos; e no Conselho de Segurança não foi aprovada uma proposta russa de resolução entregando uma investigação sobre estes assuntos à Organização Internacional para o Desmantelamento de Armas Químicas porque o Reino Unido insistiu em incluir no texto uma expressão considerando desde logo a Rússia como «provavelmente responsável».
Enquanto desfilam sob os nossos olhos os contingentes de diplomatas expulsos em massa como resposta a acontecimentos embrulhados em contradições, provocações e conspirações em cadeia, é legítimo reflectirmos sobre o facto, cada vez mais incontroverso, de os nossos quotidianos e, sobretudo, as nossas vidas, estarem nas mãos de dirigentes transnacionais cuja irresponsabilidade é directamente proporcional ao poder quase absoluto de que dispõem.
Vivemos numa situação muito semelhante à que antecedeu a Primeira Guerra Mundial, em pleno confronto de interesses globais que, regra geral, são contrários aos da esmagadora maioria dos cidadãos do mundo. No entanto, o poder de extermínio das armas amontoadas e a redução do planeta à dimensão da globalidade potencia exponencialmente a gravidade do cenário.
Um cenário onde se tornou de uma evidência crua e cruel a incapacidade dos poderes ocidentais, também definidos como «mundo civilizado», em partilhar os bens de um planeta de que se consideram proprietários. Os paladinos da livre e leal concorrência são os primeiros a rejeitá-la quando pressentem o seu monopólio em risco. Por isso são cada vez mais incapazes de esconder o desconforto que sentem perante a efemeridade da unipolaridade que vigorou a partir da celebrada queda do muro de Berlim; ou de disfarçar as saudades da Rússia caótica e dócil dos tempos de Ieltsin e outros sucessores de Gorbatchov, os tempos da corrida aos despojos soviéticos, em coligação íntima com as mafias nascentes, e que, afinal, não eram tão anacrónicos e obsoletos como os pintavam.
Tais poderes são incapazes, por inerência, de aceitar a derrota da sua estratégia militar de disseminação do caos, principalmente no Médio Oriente, que encalhou num obstáculo chamado Síria. Não aceitam que o dogma da sua «invencibilidade» seja desafiado, nem que se torne necessário ir aos limites aterradores de um conflito sem vencedores, em que todos seremos vencidos.
Por isso, quem tentou montar a maquinação que nestas linhas ficou demonstrada não deixará de insistir até conseguir pô-la em marcha.
Aliás, o que a realidade destes idos de Março expõe é a intenção dos inquestionáveis donos do mundo, e respectivo braço armado, de não recuarem perante nada, de avançarem nem que seja através de uma guerra de extermínio que já ultrapassou a fase da dúvida «se» para se fixar na dúvida «quando».
- 1. Ver «Army chief calls for investment to keep up with Russia», BBC (22/01/2018). Incompreensivelmente foi escolhida para ilustrar o artigo uma imagem que ilustra a superioridade militar da NATO sobre a Rússia e torna ridícula qualquer ideia de «primeiro ataque» russo.
- 2. Ver «General Sir Nicholas Carter named as Chief of Defence Staff», BBC (28/03/2018)
- 3. Ver «UK to fight back against Russia in information war», The Sidney Morning Herald (28/03/2018)