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sábado, 27 de abril de 2019

Uma opinião de um emérito filósofo social. Falta, a meu ver, uma definição mais rigorosa da noção "Classes médias".

Novas massas?

Classe média, consumismo e bases sociais da crítica à ordem capitalista

Göran Therborn

Se quiserem fazer sentido político, as críticas ao capitalismo devem ter – ou arranjar – uma base social. Nos séculos XIX e XX, a crítica mais relevante ficou conhecida como “questão operária” – sua base mais representativa se ​​encontrava justamente na classe operária industrial em ascensão. Era um tema que interessava não só às organizações operárias emergentes e seus eventuais simpatizantes, de convicções liberais, mas também à opinião conservadora; até os fascistas, os inimigos mais violentos do movimento operário, se organizaram a partir desse exemplo. Os operários industriais mantiveram sua posição proeminente até a década de 1970, quando surgiu uma base social para a luta anticapitalista nos movimentos anticolonialistas, mobilizados pela libertação nacional das colônias e contra o “desenvolvimento dependente” imposto pelo imperialismo.
Contudo, nos últimos trinta anos assistimos a uma desindustrialização no Norte, que deteve e inverteu a marcha do operariado. Já a industrialização bem-sucedida de países líderes do Sul, durante esse mesmo período, resultou sobretudo na visão atual de que o desenvolvimento capitalista também é possível na Ásia, na África e na América Latina, ao contrário do que diziam as teorias da dependência, outrora influentes. Assim, será que existe hoje alguma força social que poderia assumir o papel da classe trabalhadora organizada ou dos movimentos anticolonialistas do século XX? No momento, não se veem as camadas de massas anticapitalistas – uma situação nova para o capitalismo, no contexto dos últimos 150 anos. Contudo, se não procurarmos movimentos anticapitalistas, mas sim formações que encerrem, potencialmente, uma posição crítica ao desenvolvimento capitalista contemporâneo, veremos que há forças sociais importantes se manifestando. Podemos distinguir quatro tipos diferentes.

A primeira força social potencialmente crítica consiste em populações pré-capitalistas que resistem às intrusões das grandes empresas. Os principais atores são os povos indígenas, que em tempos recentes alcançaram certo poder. Eles são politicamente significativos na América Andina e na Índia, mas também se encontram em grande parte do Sul e criaram redes de contatos internacionais. Eles não são numerosos o bastante, tampouco dispõem de recursos suficientes para exercer grande influência, a não ser em termos locais; suas lutas, porém, podem se articular com movimentos críticos de resistência mais amplos. Hoje representam considerável força na Bolívia, onde compõem com uma coalizão governamental turbulenta, e na Índia, onde centralizam uma insurgência em grande escala; em ambos os casos, os organizadores provêm da tradição do movimento operário – na Bolívia, mineiros socialistas demitidos, transformados em plantadores de coca; na Índia central, revolucionários profissionais maoistas. Estes últimos andaram sofrendo reveses, mas não foram derrotados nem destruídos. No México, os zapatistas ainda conservam a região de Lacandona, no estado de Chiapas. Essas mobilizações podem ser contraditórias: em Bengala Ocidental, de governo comunista, os camponeses que defendem suas terras contra projetos de desenvolvimento industrial impediram uma virada para o estilo chinês e empossaram um regime de extrema direita.
A segunda força crítica, em grande parte extracapitalista, é composta das centenas de milhões de camponeses sem-terra, trabalhadores informais e vendedores ambulantes que constituem as vastas populações das favelas em muitas partes da África, Ásia e América Latina. (Seu equivalente no Norte talvez seja o crescente número de jovens marginalizados, tanto nativos como imigrantes, excluídos da esfera do emprego.) Eles constituem, em potencial, um alentado fator de desestabilização para o capitalismo. A ira e a violência reprimidas dessas camadas já se mostraram muitas vezes explosivas, resultando em pogrons étnicos ou apenas em vandalismo descontrolado. No entanto, esses “miseráveis da terra” também já se envolveram em lutas contra despejos e pelo acesso a água e energia elétrica; tiveram papel significativo nas revoltas árabes de 2011 e nos protestos contra a austeridade econômica no litoral norte do Mediterrâneo e do Mar Negro – Grécia, Espanha, Bulgária, Romênia.
Em que condições essas forças poderiam se articular com alguma alternativa socioeconômica viável? Qualquer alternativa crítica precisaria falar diretamente a suas preocupações fundamentais – sua identidade existencial coletiva e seus meios de subsistência. Para atingir em profundidade esses estratos populares, seriam necessários meios de comunicação específicos e líderes carismáticos, com trânsito por todas as redes. Como a população urbana geralmente não é organizada, essa força com potencial crítico só entrará em ação se gerada por um acontecimento de natureza imprevisível.

A dialética cotidiana do trabalho assalariado capitalista segue atual, embora tenha se reconfigurado geograficamente. A classe operária industrial que subsiste no Norte continua fraca demais para representar algum desafio anticapitalista; a austeridade econômica e as ofensivas capitalistas, contudo, estão engendrando protestos de horizonte curto – inclusive na França, onde, em 2010, operários organizados ameaçaram interromper o fornecimento de gasolina, e, em 2012, metalúrgicos ocuparam fábricas. Os novos trabalhadores industriais na China, Bangladesh, Indonésia e outras partes do Sul podem ter mais cacife para fazer demandas anticapitalistas, mas sua posição fica debilitada pela vasta oferta de mão de obra. Além disso, esses trabalhadores já estão sendo ultrapassados por padrões de emprego mais fragmentados do setor de serviços. Repetidas tentativas de fundar partidos operários, da Nigéria à Indonésia, fracassaram; o único sucesso nos últimos trinta anos foi o PT no Brasil. Tanto na Coreia do Sul como na África do Sul há movimentos operários importantes, baseados nos sindicatos, mas lhes faltam articulações políticas fortes: os sindicatos sul-africanos são ofuscados pela natureza do governo do ANC (Congresso Nacional Africano), e na Coreia os sindicatos se veem prejudicados por um partidarismo mesquinho, que no final de 2012 conseguiu torpedear um projeto, já bem desenvolvido, de formação de um partido de esquerda unido.
Embora no Sul as lutas de classe tenham obtido aumentos salariais e, em certa medida, condições de trabalho menos horríveis, parece improvável que se transformem num desafio mais sistêmico. No leste da Ásia, em particular, o capitalismo industrial está conseguindo elevar os níveis de consumo de modo muito mais rápido que as economias europeias, de desenvolvimento mais lento. É verdade que os atuais governos do Partido Comunista na China e no Vietnã não descartam uma virada anticapitalista – que seria viável, caso fosse tentada. Para tanto, seria preciso que o crescimento apresentasse uma queda e também ocorresse uma mobilização eficaz dos trabalhadores contra a enorme desigualdade, que ameaça a “harmonia” ou coesão social do capitalismo comunista. Tal conjectura é imaginável, mas altamente improvável, pelo menos em médio prazo. Cenário mais promissor pode ser a articulação das lutas operárias com as lutas comunitárias por habitação, saúde, educação ou direitos civis.

Uma quarta força social potencialmente crítica pode estar surgindo no seio da dialética do capitalismo financeirizado. Camadas da classe média – incluindo, como fator decisivo, os estudantes – desempenharam papel fundamental nos movimentos de 2011 na Espanha, Grécia, Oriente Médio árabe, Chile, bem como nos protestos mais fracos do movimento Occupy nos Estados Unidos e na Europa – e na onda de manifestações na Turquia e no Brasil, em 2013. Essas irrupções levaram às ruas tanto jovens da classe média como das camadas populares contra sistemas capitalistas corruptos, exclusivistas, causadores de polarização social. Eles não conseguiram desestabilizar o poderio do capital, ainda que em 2011 dois governos tenham sido derrubados, Egito e Tunísia. No entanto, talvez venham a se revelar como ensaios gerais para dramas que estão por vir.
Os discursos sobre a nova classe média se multiplicaram nos últimos dez anos. Quando se originam na África, Ásia e América Latina, ou discorrem sobre essas regiões, predomina o tom triunfalista – embora mais cauteloso acerca da Europa Oriental –, que proclama a iminência de grandes mercados de consumidores solventes. Corretos ou não, discursos de classe são sempre significativos socialmente, de modo que o recrudescimento, a nível global, do discurso da classe média é um notável sintoma da década de 2010. Normalmente não aponta para nenhuma dialética social crítica; pelo contrário, em geral aplaude o triunfo do consumismo. A classe trabalhadora está desaparecendo dos documentos do Partido Comunista chinês e vietnamita, enquanto na Europa – Alemanha à frente – o ideal de uma “sociedade empresarial” substituiu a autoimagem de “sociedade assalariada” de meados do século XX. Comentaristas políticos costumam ver na classe média um alicerce promissor para economias “sólidas” e para a democracia liberal, embora economistas ponderados, particularmente no Brasil, já enfatizassem a fragilidade da noção de classe média e o risco sempre presente da pobreza a que muita gente está exposta. Já nos Estados Unidos predomina a preocupação com o declínio da classe média, em status econômico e peso social. A Europa Ocidental não seguiu exatamente o mesmo caminho: ali a noção de classe média sempre foi mais circunscrita do que nas Américas ou na Ásia – incluindo a China pós-maoista – devido à presença discursiva já bem estabelecida de uma classe trabalhadora. Fora da Europa, o novo conceito de classe média hoje engloba a vasta massa da população que fica entre os muito pobres e os ricos – com frequência a linha de pobreza é definida como uma receita ou despesa diária de 2, 4 ou 10 dólares, enquanto o limite superior exclui apenas os 5 ou 10% mais ricos.
Diferentemente da classe operária industrial, o composto heterogêneo conhecido como “classe média” não tem nenhuma relação específica com a produção, tampouco abriga tendências próprias de desenvolvimento, salvo o consumo ilimitado. No entanto, não importa como seja definida, a classe média – ou partes substanciais dela – já demonstrou ser capaz de atuar politicamente de modo significativo, e sua importância aumenta com o declínio ou a desorganização do proletariado industrial. A crescente classe média do Sul global merece particular atenção, pois pode ser crucial na definição das opções políticas.
Justamente por sua indeterminação social, a pressão da classe média pode ser aplicada em direções diferentes, e até opostas. No Chile, a classe média mobilizada atuou fortemente por trás do golpe de Pinochet, enquanto na Venezuela, em 2002, ela apoiou uma tentativa fracassada de desbancar Hugo Chávez; seis anos depois, os abastados “Camisas Amarelas” de Bangcoc derrubaram o governo da Tailândia. Como mostra a história da Europa do século XX, a classe média não é uma força intrinsecamente a favor da democracia. Mas também tem exercido pressão por mudanças democráticas, tendo atuado em Taiwan e na Coreia do Sul na década de 1980 – ao lado dos operários industriais – e na Europa Oriental em 1989. Foi uma força fundamental no Cairo e em Túnis em 2011, e defendeu os protestos populares de rua na Grécia, Espanha, Chile e Brasil em 2011–13. Sua volatilidade política é vividamente ilustrada pelas guinadas no Egito, desde a aclamação da democracia até a adulação aos militares e sua crescente repressão, aceitando, efetivamente, a restauração do ancien régime sem Mubarak.
Mas as intervenções críticas de forças da classe média também podem se manifestar nas urnas. Em 2012 a Cidade do México, com uma população igual à de um país europeu de tamanho médio, elegeu um prefeito de esquerda pelo quarto mandato consecutivo; o candidato, Miguel Ángel Mancera, abocanhou quase 64% dos votos, números que sugerem um bloco popular incontornável. Na Índia, a trajetória do AAP, o Aam Aadmi Party (Partido do Homem Comum), continua indefinida. O avanço espetacular do partido e de seu líder, Arvind Kejriwal, deveu-se a uma nova aliança que uniu manifestantes anticorrupção de classe média a um conjunto de propostas concretas sobre o acesso a água e outros serviços públicos, que podiam beneficiar camadas mais amplas. O novo partido venceu em Nova Delhi, bem como em nove dos doze distritos eleitorais das castas mais desfavorecidas, assumindo o governo da capital em fins de 2013 – e deixando o cargo depois de apenas 49 dias, quando seus esforços legislativos para coibir a corrupção se paralisaram por falta de aprovação do governo central. Na Indonésia, um candidato reformista, Jokovi, ganhou o governo de Jacarta em 2012, vencendo (com uma plataforma de ampliação dos serviços de educação e saúde e promoção do “urbanismo empresarial”) as forças locais do establishment, além de uma odiosa campanha sectário-religiosa (seu companheiro de chapa era um chinês cristão). Também aqui a força e a eficácia das alianças de classe – sua capacidade de oferecer melhorias tangíveis às massas populares – ainda estão por surgir.

O capitalismo – e sobretudo o capitalismo industrial – tem sido alvo de críticas culturais desde que o poeta William Blake denunciou seus “tenebrosos moinhos satânicos”. Durante muito tempo o sistema simplesmente passava direto por essas lamentações, mas o ano de 1968 pôs fim ao sossego. Os movimentos então simbolizados não fizeram muito progresso contra o capitalismo em si, mas exerceram impacto sobre as relações sociais: conseguiram erodir o patriarcado e a misoginia, deslegitimar o racismo institucional, reduzir a deferência e a hierarquia – em suma, promoveram a igualdade existencial, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos. Contudo, boa parte dessas transformações culturais vem sendo absorvida pelo capitalismo avançado, com a informalidade das indústrias de alta tecnologia, a onda de mulheres em altos cargos executivos, a generalização dos direitos dos gays e do casamento homossexual, a figura social do bubo, o burguês boêmio com dinheiro e valores de esquerda, e assim por diante.
Os movimentos baseados numa crítica cultural da sociedade capitalista sempre clamaram pela limitação e a regulamentação do desenvolvimento capitalista; ou então apresentaram formas alternativas de vida. As próximas décadas podem vir a conhecer pelo menos quatro tipos de movimentos crítico-culturais significativos, tanto pela abordagem da “limitação” como pela proposta de“alternativas”. Historicamente, o argumento mais importante a favor da limitação apontou a ameaça que o capitalismo desenfreado representa para a coesão social. A questão ambiental é mais recente, com sua discussão sobre o risco que o ecossistema corre pelas consequências não intencionais da industrialização, cada vez mais fora de controle.
Entre as “alternativas”, a relevância dosocialismo anda suspensa, porém há outras visões claramente discerníveis, mais parecidas com o comunismo no sentido marxista original do que com o socialismo industrial do século XX. Hoje é possível identificar dois desses movimentos, pelo menos em embrião, ambos oferecendo a promessa de uma qualidade de vida superior à do capitalismo. A primeira, mais bem articulada na Alemanha, parte da experiência dos países desenvolvidos e tem uma ênfase “pós-crescimento”. A segunda apresenta uma alternativa geossocial, derivando sua força do Sul não capitalista.

Em primeiro lugar, a coesão social é muito menos vital para as elites de hoje do que era para as elites de séculos anteriores. Os exércitos com alistamento obrigatório foram em grande parte substituídos por forças mercenárias; os meios de comunicação têm ajudado a tornar as eleições internas “administráveis”; o consenso econômico predominante sustenta que a confiança dos investidores internacionais tem mais influência sobre o crescimento econômico do que a coesão do desenvolvimento. Para as elites do Norte, a coesão implica uma pressão sobre os imigrantes para se assimilarem melhor, em nome da “integração”. É verdade que existe uma preocupação oficial da União Europeia com a coesão social, mas na prática isso se manifesta sobretudo em termos geográficos, com o financiamento de programas de desenvolvimento nas regiões mais pobres. Durante a crise atual, que impôs uma dura austeridade econômica sobre as populações do sul da Europa, vê-se pouco interesse oficial pelo aumento da exclusão social. A coesão nacional já não é mais considerada a chave para o poder imperial – como foi nos séculos XIX e XX, quando a “revolução vinda de cima” da dinastia Meiji no Japão, e as tentativas menos bem-sucedidas de outros regimes, desde a China da dinastia Qing até o Império Otomano, a via como a base da moderna força geopolítica. Após a Segunda Guerra Mundial, o desenvolvimento capitalista nacional coeso era o objetivo dos governantes eleitos do Japão e também dos militares de Taiwan e da Coreia do Sul, o que reverteu em sociedades industriais cujos baixos níveis de desigualdade econômica só ficavam a dever, no mundo capitalista, aos Estados europeus do bem-estar social. Para os governantes da República Popular da China, a coesão social continua a ser um critério decisivo do desempenho político. A extraordinária desigualdade produzida pela China nos últimos 35 anos – tão diferente da trajetória igualitária, de crescimento rápido do Japão, Coreia do Sul e Taiwan – torna insustentável a autoimagem da China como uma “sociedade harmoniosa”. Isso também pode ocorrer em outras partes do Sul.
No entanto, a exclusão social, a desigualdade e o deslocamento continuam a ser uma possível base para as críticas vindas de baixo, como já mostraram os recorrentes movimentos de protesto dos últimos anos. A lógica de O Capital não dá conta das atuais sociedades capitalistas, que também incluem áreas não capitalistas, com seus espaços e serviços públicos. No momento, o capitalismo está decidido a invadir todas as esferas da vida social – restringindo, ainda que não abolindo necessariamente (por enquanto), tudo que é público. Essa disseminação cria correntes de resistência, de defesa do que é público ou não comoditizado. Recentemente tem havido uma proliferação global desse tipo de movimento de protesto: contra a privatização do ensino superior no Chile e em outras partes da América Latina; contra a comercialização dos espaços públicos em Istambul; e, na Suécia, um ressentimento, mais abafado porém amplo, contra a desestatização de escolas e serviços sociais.

A mercantilização das relações sociais e o enfraquecimento, promovido pelo neoliberalismo, de qualquer noção de interesse público ou senso de responsabilidade social têm proporcionado grandes oportunidades para a corrupção. Mesmo em países como a Suécia, antes regidos por uma ética de serviço público muito forte, embora agora vilipendiada, os negócios obscuros entre a esfera pública e a privada se tornaram endêmicos. No Sul, onde a corrupção maciça é sistêmica na maioria dos países – e também na China e no Vietnã –, as campanhas em prol das “mãos limpas” são comuns, porém têm pouco impacto. Vez por outra são efetivas, como aconteceu nas manifestações de Nova Delhi. Iniciados em 2011 por Anna Hazare após a roubalheira descarada propiciada pelos Jogos da Commonwealth de 2010, os protestos acabaram se transformando no Aam Aadmi Party. Os movimentos contra a corrupção e a exploração comercial de espaços e serviços públicos tendem a crescer, já que as provocações vão se multiplicar, e também porque hoje os cidadãos são menos deferentes à autoridade, mais bem informados e mais fáceis de mobilizar por meio das mídias sociais. Um caso exemplar foi o da Turquia em 2013. Contudo, se esses protestos não integrarem configurações sociopolíticas mais amplas, eles vão permanecer – juntamente com as manifestações contra o endividamento e os despejos – dentro dos limites do sistema capitalista.
Na década de 1980, ambientalistas críticos ao capitalismo se organizaram num movimento social que ainda tem considerável expressão. Pode-se dizer que os desafios ecológicos apresentados por alterações climáticas, poluição urbana, pilhagem de oceanos e esgotamento de reservas hídricas reiniciaram a dialética entre o caráter social das forças de produção e a natureza das relações de propriedade existentes – uma dialética que a desindustrialização e o triunfo do capitalismo financeiro no Norte haviam suspendido. O impacto dessa crítica provavelmente vai depender de sua capacidade de desenvolver uma responsabilidade regulatória coletiva e ao mesmo tempo não exigir sacrifícios como o não crescimento. Uma questão crucial é a desastrosa poluição das cidades chinesas – inclusive, espetacularmente, Pequim – e de outros centros urbanos da Ásia. Na China, a poluição também está destruindo grandes áreas de solo arável. Ao exigir a regulamentação pública, o ambientalismo poderia se articular com as críticas ao capitalismo financeiro desenfreado. As escassas alianças desse tipo ressaltam a fraqueza da esquerda no Atlântico Norte – para não mencionar a obsessão chinesa, ainda praticamente incontestada, de recuperar o atraso econômico.
Uma crítica ao consumismo poderia assumir uma nova forma geracional. “1968” foi um movimento jovem – “Não confie em ninguém com mais de 30 anos” –, ao passo que nos protestos de 2011 no Mediterrâneo e no Chile, ou no Brasil em junho de 2013, muitos manifestantes estavam acompanhados dos pais. A crise devastadora do neoliberalismo na Argentina no alvorecer do século XXI acarretou vigorosos protestos de rua de aposentados, em defesa de suas pensões. Um movimento crítico poderia emergir das populações idosas da Europa e do Japão, em especial entre os mais velhos da geração de 1968. Poderiam ser protestos por qualidade de vida – serenidade, segurança, estética – em detrimento da expansão econômica e acumulação de capital. É pouco provável que ganhem muito impulso fora da Europa ou Japão, exceto, talvez, na região do rio da Prata e entre as minorias das “primeiras nações” indígenas. O consumismo parece persistir como a principal dinâmica cultural.

Articulada pelo movimento do Fórum Social Mundial, a crítica feita pelo Sul global ao capitalismo do Atlântico Norte foi levada mais adiante pelo estudioso português Boaventura de Sousa Santos em sua obra Epistemologias do Sul. Sua análise provavelmente exercerá uma influência cada vez maior devido às mudanças geopolíticas do poder planetário; mas também é provável que encontre resistência arraigada, e não apenas das elites do Norte. O consumismo está seduzindo novas e vastas camadas do Sul, que acorrem, em adoração, aos shopping centers que brotam como cogumelos. Boaventura e outros estudiosos abrem um espaço crítico que deveria abalar a arrogância cultural do Norte. O problema deles é que se dirigem sobretudo àqueles que têm mais a perder com a sua mensagem: os modernos do Norte. No entanto, o espelho do Sul que o movimento do Fórum Social Mundial mostrou ao capitalismo do Atlântico provavelmente será incorporado ao pensamento crítico do Norte – tal como deveria ser.

Em resumo: as populações pré-capitalistas, lutando para conservar seu território e seus meios de subsistência; as massas “excedentes”, excluídas do emprego formal nos circuitos da produção capitalista; os trabalhadores fabris explorados em todas as zonas ex-industriais decadentes e outras zonas empobrecidas; novas e antigas classes médias, cada vez mais oneradas com o pagamento de dívidas às corporações financeiras – estas constituem as possíveis bases sociais para as críticas contemporâneas à ordem capitalista dominante. O avanço exigirá, quase com certeza, alianças entre essas bases e, portanto, a articulação de seus interesses. Para qual caminho, ou quais caminhos, vai pender a nova classe média na África, Ásia e América Latina? Esse será um fator determinante e vital.
Se a classe média em ascensão representou a vanguarda do desenvolvimento capitalista na Euro-América do século XIX, hoje sua função não é mais essa. O capital financeiro e as empresas multinacionais há muito tempo usurparam esse papel. Em vez disso, a classe média precisa tomar partido em sociedades fortemente polarizadas, seja ao lado dos oligarcas contra os pobres, seja com o povo contra os oligarcas. Qualquer crítica viável ao capitalismo do século XXI terá que recrutar grande parte da classe média, abordando algumas de suas preocupações e procurando articulá-las numa direção crítica, igualitária. Isso implicaria respeitar os valores clássicos da classe média de trabalho duro, autossuficiência, racionalidade e justiça. Será preciso articular a compatibilidade desses interesses com as demandas populares de inclusão e igualdade, e a sua incompatibilidade com as práticas insensatas das elites financeiras, os capitalistas de compadrio e os regimes corruptos ou autoritários. A classe média, em especial os assalariados e profissionais liberais, também está potencialmente aberta a críticas culturais feitas ao capitalismo, em especial quanto a questões ambientais e de qualidade de vida. Contudo, dada a inconstância política da classe média, qualquer virada progressista vai exigir a mobilização de considerável força popular entre as duas primeiras correntes sociais já mencionadas: as populações pré-capitalistas invadidas ou marginalizadas, e os trabalhadores que procuram se defender na esfera da produção.

quinta-feira, 25 de abril de 2019

OPINIÃO

É muito grave o recuo de António Costa relativamente à Lei de Bases do Serviço Nacional de Saúde, com uma escancarada cedência aos grandes negociantes da saúde dos portugueses, que sempre se encostaram ao Estado de que tão mal falam por pura demagogia populista.
Os dois partidos que aprovaram todos os orçamentos que se acautelem. Eu estou triste. Os eleitores e simpatizantes do Partido Socialista devem estar tristes também. O SNS é uma criação e conquista da Esquerda.

Porto 1974. Virgínia Moura. Viva o 25 de Abril!

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quarta-feira, 24 de abril de 2019

«Do que colhemos dos livros que lemos às promessas do que podemos colher dos que “ainda” não lemos e estão num perpétuo estado de graça, numa eterna gravidez repleta de tudo o que ainda nos poderão dizer, Bruno Vieira Amaral escreve sobre esse objeto chamado livro.»

«Qualquer pessoa que tenha em casa uma biblioteca, por pequena que seja, já teve de responder à fatídica pergunta do visitante que, intrigado pela razão e utilidade de tantos volumes, pretende saber quantos é que já lemos. A resposta “menos de metade”, que é a mais equilibrada e, com toda a probabilidade, a mais honesta, apazigua-o porque vê nos outros livros, os que ainda não foram lidos, provas de um arrogante exibicionismo intelectual do qual ele, filisteu impenitente, se encontra a salvo. Afinal, para quê ter tantos livros em exposição quando se leu menos de metade?
Um livro por ler, arrumado na estante, conta também a história das aproximações e recuos, da procrastinação e olímpicas desatenções, que é, em parte, a coroa da nossa vida de leitores
Haverá alguma justeza nesse raciocínio contabilístico e eu próprio, ao contemplar a minha modesta biblioteca, já me perguntei se preciso mesmo daqueles livros ou se não faria melhor em doar alguns a uma biblioteca pública ou a algum jovem e ávido leitor. Acontece que os livros que ainda não lemos e mantemos perto de nós são possibilidades em aberto. Tê-los à mão tranquiliza-nos, como se renovássemos em permanência a promessa de que um dia ainda os iremos ler. Esse dia poderá nunca chegar, mas um livro por ler, arrumado na estante, conta também a história das aproximações e recuos, da procrastinação e olímpicas desatenções, que é, em parte, a coroa da nossa vida de leitores.
Os livros que perfazem a fileira mais vasta dos “por ler” permanecem num perpétuo estado de graça, numa eterna gravidez repleta de tudo o que ainda nos poderão dizer. Por isso, queremo-los perto de nós, como uma garantia, um seguro, um instrumento a usar em caso de emergência
Passamos por alguns livros que depressa esquecemos. Se, anos depois, nos pedirem para lembrar uma frase, uma situação, uma personagem, seremos provavelmente traídos pela memória. E, no entanto, de um ponto de vista contabilístico, o livro estaria no rol dos “lidos”, burocraticamente despachado. Porém, os livros que perfazem a fileira mais vasta dos “por ler” permanecem num perpétuo estado de graça, numa eterna gravidez repleta de tudo o que ainda nos poderão dizer. Por isso, queremo-los perto de nós, como uma garantia, um seguro, um instrumento a usar em caso de emergência.
Outra razão para nos apegarmos aos livros – lidos ou por ler – é por acreditarmos, com uma boa dose de superstição e fetichismo, que naqueles objetos cabe parte da nossa história pessoal, são provas físicas de certos capítulos da nossa biografia imaginada. Os melhores presentes que recebi, aqueles que mais prazer me deram, foram livros. Certa vez, após uma breve visita aos meus tios do Porto, regressei a casa com três volumes em capa dura da poesia de Fernando Pessoa que lhes decoravam a estante. Tê-los aqui ao meu lado no momento em que escrevo estas linhas transporta-me para essa época longínqua em que os livros eram, para mim, um bem raro e, em razão da minha ignorância, tudo o que lia provocava a reverberação límpida das ideias novas. Receber um livro tinha, como tal, tanto de religioso como de erótico.
A volúpia da posse não deve ser negligenciada. Anos depois, ofereceram-me como presente natalício uma edição completa dos romances de Eça de Queirós. Como já tinha lido alguns dos romances, o entusiasmo deveu-se não tanto à antecipação de uma descoberta como ao êxtase da posse de um objeto desejado. De alguma forma, ter lido os livros não era suficiente. Era preciso possuí-los fisicamente. Por essa razão, guardo ainda livros que sinalizam na minha memória acontecimentos, pessoas, experiências de leitura que se tornam mais reais por saber do paradeiro deles, por poder contemplá-los e folheá-los a qualquer momento.
Os livros perdidos contam a dupla história empolgante da sua posse e da sua incalculável perda. Vivemos mortificados pela possível recuperação porque sabemos, no íntimo, que não podem ser substituídos
Lembro-me que foi por volta do Carnaval de 2000 que terminei a leitura de “Asfalto Selvagem”, de Nelson Rodrigues, sentado numa esplanada ribeirinha com Lisboa ao fundo. Hoje, não sei do livro. Creio tê-lo emprestado a alguém que não mo devolveu e, por um estranho efeito, o desaparecimento do objeto tornou menos nítida, mais nebulosa, a experiência de leitura e as memórias a ela associadas. Menos nítida não significa menos intensa. Pelo contrário. Como acontece com as relíquias perdidas, a cratera da sua ausência tornou tudo à sua volta mais imponderável e mítico. Os livros perdidos contam a dupla história empolgante da sua posse e da sua incalculável perda. Vivemos mortificados pela possível recuperação porque sabemos, no íntimo, que não podem ser substituídos.
Isto porque não há dois livros iguais (é também por isso que os colecionamos e preservamos). Tenho ali na estante uma edição de “Lavoura Arcaica”, de Raduan Nassar, em tudo igual à primeira que comprei, li e, mais tarde, perdi. Mas sempre que lhe pego não posso evitar a sensação de que se trata de um livro-impostor, um livro a fazer-se passar por outro, um livro adquirido para suprir uma lacuna intolerável. Não me posso enganar: sei bem que o livro real é o outro, o que perdi. O meu “Outono do Patriarca” também é diferente de todos os outros exemplares que a Publicações Europa-América mandou imprimir em 1978. Este traz com ele a tarde em que o comprei no Cais do Sodré, à saída do Metro, a luz cálida que entrava pela janela do barco quando o comecei a ler, a memória das casas que habitámos, o conhecimento das minhas mãos.
Nesse sentido, um livro perdido, um livro que, por generosidade, se furtou ao nosso contacto, um livro que alguém, por despeito, atirou ao lixo, será sempre uma página dolorosamente arrancada de nós, mas nunca esquecida
Um amigo contou-me esta história exemplar e didática: quando ainda namorava com a que viria a ser sua mulher, ofereceu-lhe um livro de poemas de Pablo Neruda. Casaram-se, viveram juntos alguns anos e, no dia em que decidiram separar-se, o meu amigo encontrou o livro amachucado no caixote do lixo. Um tal gesto dispensaria, a meu ver, a ida à conservatória para formalizar o divórcio. Tudo acabara ali, definitivamente, com um livro de amor atirado para o lixo e duvido que o meu amigo tivesse sofrido mais se a mulher, perpetrando uma dessas vinganças de uma imaginação monótona, lhe tivesse atirado as roupas pela janela ou lhe tivesse riscado a porta do carro. É que aquele livro era único. Não havia outro igual.
Em “Não Contem com o Fim dos Livros”, Umberto Eco contava como a recolha e preservação de livros nos mosteiros era a forma mais segura de os salvar, por exemplo, das invasões bárbaras e dos seus fogos punitivos. Guardar livros era o mesmo que salvá-los. Hoje, as coleções privadas, as nossas bibliotecas pessoais, destinam-se menos a salvar os livros do que a salvar-nos a nós próprios. Numa época de produção industrial, é a nossa relação pessoal com eles que os torna únicos. Nesse sentido, um livro perdido, um livro que, por generosidade, se furtou ao nosso contacto, um livro que alguém, por despeito, atirou ao lixo, será sempre uma página dolorosamente arrancada de nós, mas nunca esquecida. É por isso que os guardamos, que nos afeiçoamos a eles, como se fossem a parte escrita e encadernada da nossa existência.»  in Expresso Diário

Neste 25 de Abril com a ajuda deste lúcido texto recordo aqueles que desertaram da Esquerda onde combateram corajosamente mais uns que outros contra a ditadura fascista, por oportunismo, por vaidades e vãs glórias, por senilidade precoce, eu sei lá!

Ainda ouço essa voz que o tempo não vai levar

"Ocorre que a identificação pela arte vem com uma boa dose de idealização que sempre acoberta e aplaina a contraditoriedade da pessoa por trás do artista. Como pode quem cantou "Sentinela" com "Milton Nascimento" apoiar o obscurantismo e a violência das classes dominantes?"

Por Mauro Luis Iasi.

“Morte vela sentinela sou
Do corpo desse meu irmão que já se foi
Revejo nessa hora tudo que aprendi,
memória não morrerá
Longe, longe, ouço essa voz
Que o tempo não vai levar”
Fernando Brant/Milton Nascimento
“Tempo, espaço,
vida nem morte é a resposta.
E de homens procurando o bem,
Fazendo o mal.”
Erza Pound
No coração destes tempos sombrios somos acometidos por um fenômeno arrasador: alguns artistas que nos são muito caros fazem declarações desconcertantes a favor do fascista bufão que se encontra alojado na presidência somando-se assim à lama fétida da barbárie. O caráter desconcertante de tais atos se dá, em parte, pela importância que este ou aquele artista teve na construção de nossa consciência e nossa sensibilidade, que nos leva exatamente no sentido oposto. Daí o estranhamento e a sensação de traição.
A lista não é pequena e não é minha intenção enumerar estes personagens, mas, apenas como exemplo, podemos falar de Fagner, Samuel Rosa, Lobão, Djavan e, mais recentemente, Nana Caymmi, que de maneira grosseira e vulgar criticou Caetano, Gil e Chico, declarando sua confiança no miliciano a serviço das forças do mal.
Nossa primeira reação é, compreensivelmente, a raiva, seguida da vontade de retirá-los imediatamente de nossas playlists. Ainda que compreenda essa reação, quero aqui propor de refletir um pouco mais sobre o assunto.
O que é falso? Aquele momento de sensibilidade que nos tocou? A manifestação brutal de apoio a uma personagem que declara seu amor à ditadura e a tortura? Devemos começar por dizer que ambas são partes constituintes da verdade e revelam aspectos da personalidade e consciência desses artistas. Ocorre que a identificação pela arte vem com uma boa dose de idealização que sempre acoberta e aplaina a contraditoriedade da pessoa por trás do artista. Como pode quem cantou “Sentinela“ com Milton Nascimento apoiar o obscurantismo e a violência das classes dominantes?
Podemos somar esse estranhamento a muitos casos. Como pode quem cantou como cantou em seus poemas, a vida e a luta, acabar miseravelmente apoiando os tucanos degenerados como fez Ferreira Gullar? Um dos mais belos poemas sobre os desaparecidos é do poeta Affonso Romano de Sant’Anna, que em 1990 aceitou presidir a Fundação Biblioteca Nacional a convite do governo Collor. Até mesmo Drummond, nosso querido poeta, aceitou emprestar seu prestígio ao Ministro Capanema quando no governo Vargas tentava atrair a intelectualidade.
Analisando o fazer poético, que podemos estender para outras formas artísticas, Haroldo de Campos nos diz que o poeta lança metade da laranja em sua obra, a outra metade guarda com ele. Quando lemos o poema e nos identificamos é porque somamos à metade de nossa própria laranja. Para que isso ocorra, a obra artística tem que se desprender da particularidade de seu autor, alcançar uma certa genericidade. Lukács está convencido de que a arte é uma daquelas mediações que trás a possibilidade de se elevar do cotidiano expressando uma manifestação universal. Ora, essa abstração, exatamente pelo seu potencial universal, não pode carregar inteira a laranja do seu criador.
Acreditamos de forma precária que as manifestações da consciência de um artista, quando, por exemplo, nos tocam por uma sensibilidade humanista ou um compromisso com os que são explorados, são expressão de um compromisso de classe que pode não existir no criador. Sabemos que não há uma conexão mecânica entre a posição de classe e a consciência, e isso é fundamental no fenômeno que analisamos. Diz Lukács:
Por mais que o artista, como todo homem, seja determinado ideologicamente pela base econômica própria de sua classe, ele também pode, como todo homem, em termos abstratos, voltar-se contra ela.
(Lukács, G. A ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013, p.773-774)
Essa possibilidade, que de certa maneira é um desenvolvimento interessante no pensamento do marxista húngaro se considerarmos o acalorado debate com Sartre, leva à probabilidade de que o “apelo figurado do homem que busca ultrapassar a sua própria particularidade” possa através da arte, dependendo das circunstâncias, “tornar-se pioneiro da generidade para si”, relativizando as pressões ideológicas de sua condição de classe (idem, p. 774). Mais claramente ainda o autor afirma em seguida: “a possibilidade de uma exteriorização ideológica significativa que contradiz estritamente a direção ideológica fundamental da classe a que pertence o seu autor” (idem, ibidem).
De modo geral, os artistas ocupam os segmentos médios da sociedade, uns com origens mais populares, outros com laços com classes dominantes. É característico dos segmentos médios a oscilação entre os universos valorativos das camadas proletárias e das classes dominantes, fazendo com sua consciência seja, via de regra, um ser compósito e bizarro. O elevar-se em direção à universalidade, tornado possível na exteriorização da obra artística, não apaga seu pertencimento de classe, abrindo a possibilidade de contradições compreensíveis.
Compreender essas determinações não significa desautorizar nossa indignação, mas pode nos abrir uma possibilidade interessante. Estamos falando da alienação e, como sabemos, a alienação tem várias dimensões. Ela é externação (Entäusserung) que se manifesta em um processo de objetivação (Vergegenständigung), abrindo a possibilidade de um distanciamento (Distanzierung). Ora, o obra artística é a externação da subjetividade do artista, mas ela é a objetivação em algo que dele se distancia, sem o que a possibilidade de universalidade, própria de toda arte verdadeira, poderia se dar. No interior deste movimento, o que fica abstraído é a particularidade do sujeito, ainda que traços essenciais de sua subjetividade migrem para a objetivação artística.
Quando a metade da laranja encontra a nossa subjetividade, produz uma nova síntese e, de certa maneira, permite o nosso elevar-se em direção ao genérico. Isso significa que a base da identificação é o potencial de generidade do artista que encontra a nossa possibilidade. A verdade da laranja não esta nele ou em nós, mas acima de nós, na dimensão abstrata da universalidade humana.
Um exemplo. Minha geração viveu o final da ditadura ouvindo Chico Buarque, Vandré, mas também Caetano. Para minha consciência em formação foi tão importante o “ Para não dizer que não falei em flores” (Vandré), o “Funeral de um lavrador” (Chico Buarque sobre a letra de João Cabral) como “Alegria, alegria” de Caetano. Aí vem Roberto Schwarz com sua crítica arrasadora, acompanhado do incrível Henfil descascando o comportamento “odára” do baiano. Que devia fazer? Fazer de conta que os versos e o comportamento do compositor baiano não me tocavam na dimensão mais universal, inclusive servindo decisivamente a minha rebeldia e compromisso político? Seria possível amar Caetano e Belchior? Se para o ofício dos críticos isso era tarefa difícil (e eu respeito profundamente este ofício), quero dizer que para nós… não. Caminhávamos contra o vento, sem lenço e sem documento, vivendo nossas alucinações nas coisas reais, caminhando e cantando e lutando contra a ditadura, porque tudo que se elevava ao humana se choca contra o que é anti-humano.
Teria dúvida em guiar meu posicionamento político pelo julgamento de Caetano, mas não hesitaria um segundo em abraçá-lo em profunda gratidão pelos bordados costurados em minha alma pela agulha fina de sua voz e sua poesia. Se enquanto pessoa ele briga com Belchior (ou Belchior com ele), na dimensão da humanidade que me compõe se encontram e riem destas pequenas desavenças.
Mart’nália pediu, com razão, para alguém mandar a Nana à merda. Certo, ouvindo o que ele disse, posso cumprir essa missão. Mas, como poderia mandar que se cale a voz que cantou Cais? Ocorre que não preciso: aquela voz e a música que a carrega não pertence mais totalmente à pessoa, alienou-se, objetivou-se, vive numa outra dimensão acima dos direitos autorias e da propriedade das coisas, alojou-se na universalidade possível nestes tempos de barbárie.
Em certos momentos em que nos sentimos muito sozinhos, com medo, quando os fantasmas do destino nos procuram, vozes invisíveis nos salvam, cantarolando em nossos ouvidos: “pode ser a depressão… mas não tente se matar, pelo menos esta noite não”.
Veja, Lobão é uma expressão evidente de decadência e degeneração, mas seus versos e sua voz se projetam para além dele. Talvez, o que tenhamos dificuldade em aceitar é que mesmo os mais babacas têm um lado humano, assim como aqueles que julgávamos mais humanos tem seu lado babaca. Como nós. Há exceções, evidentemente, como o Roger que é quase um babaca perfeito.
A segunda epígrafe é de Erza Pound, que nasceu nos EUA e viveu na Itália, que como dizia era poeta, por isso “bebia da vida como homens menores bebem vinho”, que por seu ódio contra a arrogância estadunidense acabou apoiando o fascismo italiano na segunda guerra. No final de sua vida disse: “minhas intensões eram boas, mas enganei-me na maneira de alcançá-las. Fui um estúpido. Conhecimento me chegou tarde demais”. Por conta de suas transmissões radiofônicas contra os EUA na guerra, foi preso, considerado insano e internado em um hospício. Seus poemas vão muito além de seu destino trágico ou suas lamentáveis escolhas políticas. “Vinde minhas canções”, disse ele em um poema, “vamos arranjar bastantes desafetos”(…) “armemo-nos contra este mar de vulgaridades”. Não se pode separar o poema do poeta, mas é possível gostar do poema sem gostar das escolhas pessoais dos poetas, pois, como disse Chico Buarque:
“Mesmo que os cantores sejam falsos como eu
Serão bonitas, não importa
São bonitas as canções
Mesmo miseráveis os poetas
Os seus versos serão bons

in Boitempo blog. com

sábado, 20 de abril de 2019

O erro de David Harvey na compreensão da lei do valor em Marx

Por Michael Roberts, via The Next Recession, traduzido por Augusto Ribeiro Silva
Recentemente, o Professor David Harvey (DH) enviou um e-mail para várias pessoas, inclusive para mim, com um breve artigo para discussão em anexo. O artigo apresenta a leitura de DH de que a teoria do valor de Marx em economias capitalistas havia sido gravemente mal interpretada.

No caso de você não saber (o que seria difícil de acreditar), o Professor Harvey é provavelmente o mais eminente estudioso de Marx vivo hoje, autor de livros, artigos e vídeos educacionais sobre teoria econômica marxista. O breve artigo que circulou expressava sucintamente sua leitura da teoria do valor de Marx, que ele recentemente apresentou mais extensivamente em seu último livro, “A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI“. [1]
No artigo, intitulado “A recusa de Marx da teoria do valor do trabalho“, DH argumenta que Marx sequer tinha uma “teoria do valor do trabalho”. Sua teoria do valor era distinta daquela do economista clássico David Ricardo. Invés disso, segundo DH, Marx teria argumentado que o valor era um reflexo do trabalho corporificado em uma mercadoria que só seria criado/revelado em trocas no mercado. Como afirma DH: “se não há mercado, não há valor”. Se isso estiver correto, então seria durante a realização do valor em sua expressão em dinheiro que o valor emergiria, não no processo de produção em si.
DH então argumenta que se salários forem forçados para baixo ou até ao mínimo, então não haverá mercado ou mercadorias e, portanto, nenhum valor – e essa é a “verdadeira raiz das crises capitalistas”. Por conseguinte, uma política para evitar crises seria “aumentar salários para garantir ‘consumo racional’ do ponto de vista do capital e colonizar a vida cotidiana como um campo para o consumismo”. Essa seria a consequência de uma leitura correta da teoria do valor em Marx, segundo DH.
DH destaca que essa interpretação da teoria do valor “vai muito além do que Ricardo tinha em mente e é igualmente muito distante da concepção de valor geralmente atribuída a Marx.” Certamente. Mas estaria DH certo em sua interpretação da teoria do valor em Marx e, se ele estiver, teria essa interpretação alguma validade empírica? Eu responderia ambas essas questões com: ‘no’, ‘non’, ‘nein’, para usar as três línguas melhor conhecidas por Marx.
DH inicia dizendo: “acredita-se amplamente que Marx adaptou a teoria do valor do trabalho a partir de Ricardo como conceito fundador para seu estudo da acumulação capitalista” e “como a teoria do valor do trabalho foi amplamente desacreditada, frequentemente constata-se, autoritariamente, que as teorias de Marx são imprestáveis.” Não fica claro a quem DH está se referindo aqui. Claramente economistas burgueses mainstream consideram a teoria do valor de Marx inválida. Os marginalistas neoclássicos há muito rejeitaram o conceito de valor-trabalho, taxando-o de “metafísico”. Economistas neo-ricardianos, pós-sraffianos e pós-keynesianos, particularmente, estão fortemente inclinados a rejeitar qualquer noção de “valor”, classificando-a como mistificação ideológica.
Mas a maioria dos economistas marxistas estão cientes da distinção entre a teoria do valor em Marx e em Ricardo. E a diferença não é o que DH diz ser, que Ricardo tinha uma “teoria do valor do trabalho” e Marx não. A diferença é que Ricardo tinha uma teoria de valor (de uso) baseada em “trabalho concreto” (quantidade física de trabalho) medida em tempo de trabalho. A lei do valor em Marx era baseada em “trabalho abstrato” (valor medido em tempo de trabalho quando “socialmente” testado no mercado).
Sob o capitalismo, a força de trabalho humana é em si uma mercadoria a ser vendida no mercado. De fato, essa é uma característica chave do modo de produção capitalista, em que a maioria não dispõe de meios de produção e, portanto, deve vender sua força de trabalho para os donos dos meios de produção. Então, assim como com outras mercadorias, trabalho tem uma propriedade dupla. Por um lado, é trabalho útil, isto é, aplicação de trabalho humano em uma forma concreta e para um propósito específico, com essa propriedade criando valores de uso. Por outro lado, é trabalho abstrato, isto é, aplicação de “força de trabalho” humana sem características específicas que cria o valor da mercadoria na qual ele é representado. A partir disso Marx fez a distinção entre trabalho e força de trabalho, uma distinção que é absolutamente crucial para a compreensão da fonte do lucro.
Esse foi o grande avanço da teoria do valor de Marx. O tempo de trabalho corporificado nas mercadorias normalmente compradas pelo trabalhador para a sua reprodução e a de sua família em um dia é menos do que o tempo de trabalho que o trabalhador de fato oferece para o dono do capital durante o mesmo período. O resultado é que para qualquer período de tempo dado, o trabalhador produz mais valor do que o salário correspondente que é pago pelo dono do capital para o usufruto da força de trabalho. A essa diferença Marx dá os nomes de “trabalho não pago” e “mais-trabalho” – ou mais-valia. A teoria do valor do trabalho abstrato de Marx expõe a natureza exploradora do modo de produção capitalista, algo que nem a teoria do valor de Adam Smith nem a de Ricardo fazem.
DH menciona apenas uma vez (e de passagem) essa descoberta vital de Marx (o trabalho abstrato) que distingue a lei de Marx da teoria do valor do trabalho clássica. E isso ocorre porque DH deseja impor sua interpretação da teoria de Marx como uma em que valor é criado/realizado apenas na troca, e não no processo de produção pela força de trabalho. DH diz que “o valor é inicialmente tomado como um reflexo do trabalho social (abstrato) cristalizado nas mercadorias.” Mas “como uma norma regulatória no mercado, o valor pode existir, como mostra Marx, apenas quando e onde a troca de mercadorias se tornou um ‘ato social normal’.” Então, sem dinheiro, não haveria valor.
Sim, mas o valor de uma mercadoria ainda é o trabalho contido nela e expandido durante o processo de produção antes de ser levado ao mercado. O valor é a aplicação de trabalho humano físico e mental, que é então extraído pelo processo social de produção e levado ao mercado. Valor não é uma criação do dinheiro – pelo contrário. Dinheiro é a representação ou valor de troca do trabalho aplicado, e não o oposto. Acredito que Marx seja nítido nesse ponto crucial. Ele diz n’O Capital Volume Um: “O valor das mercadorias é expresso em seus preços antes de elas entrarem em circulação, sendo, portanto, o pressuposto, e não o resultado dessa última.” [2] [pág. 233 – O Capital Livro I, Editora Boitempo, 1ª edição revista]
Murray Smith, na edição nova e vindoura de seu livro, “Invisible Leviathan” [3], oferece uma explicação concisa da diferença entre a lei do valor de Marx e a interpretação de DH. Marx disse que: “O dinheiro como medida do valor é a forma necessária em que aparece a medida do valor que é imanente às mercadorias, o tempo de trabalho.” Smith comenta que isso “é certamente inconsistente com a ideia de que o valor pode ser criado no ato da troca. (…) É precisamente porque a troca efetua um processo de ‘equalização de produtos do trabalho no mercado’ (isto é, envolve uma abstração real) que a produção orientada à troca deve levar em conta o fato de que ‘trabalho fisiológico’ cria valor de troca e forma o valor de uso – isto é, se constitui como concreto e abstrato simultaneamente. Tentar argumentar que valor é criado ‘não na produção, mas na articulação de produção e circulação’ é uma noção repleta de pensamento circular e que requer a mais robusta ginástica mental para que entretenha(…). O problema com essa abordagem é que se for aceito que o trabalho abstrato associado não tem existência substancial apartado da forma de valor, o dinheiro, então os valores das mercadorias parecem ser separados totalmente de qualquer determinação pelas condições de sua produção, e o caminho estaria pavimentado para uma efetiva identificação de valor e preço.”
Em vez disso, a lei do valor de Marx se baseia na visão de que o trabalho envolvido na produção de mercadorias produz o valor, enquanto a troca o realiza na forma-dinheiro. É apenas por causa disso que Marx é capaz de distinguir entre quantidades de valor e mais-valia criadas na produção de mercadorias, e as quantidades geralmente diferentes realizadas através da troca.
Ao contrário do que pensam os economistas mainstream e neo-ricardianos, não se trata de “mistificação”. O valor é objetivo e real e não apenas expresso em dinheiro. A lei do valor de Marx, na qual o trabalho abstrato (medido em tempo de trabalho) explica o valor de troca e os preços, pode ser validada empiricamente. [4]
Há razão por trás da interpretação de DH. Se valor for criado apenas no momento da troca por dinheiro e “o dinheiro reina”, então será a demanda (efetiva) que decidirá se o capitalismo tranquilamente acumulará sem crises recorrentes. Para mostrar isso, DH descreve com algum detalhe o impacto da acumulação capitalista sobre as condições e padrões de vida enquanto os capitalistas empenham-se em aumentar a mais-valia relativa através da introdução de maquinaria. Ele usa alguns exemplos gráficos proporcionados por Marx no Capítulo 23 [25 no original] do Volume Um. DH enfatiza que a acumulação capitalista pretende minimizar o valor da força de trabalho ao ponto da pauperização.
DH conclui que “Se esse é um resultado típico da operação da lei capitalista da acumulação de valor, então há uma profunda contradição entre as condições progressivamente deterioradas da reprodução social e a necessidade do capital de expandir o mercado. Como Marx nota no Volume 2 d’O Capital, a verdadeira raiz das crises capitalistas está na supressão de salários e a redução da massa da população à condição de pobres despossuídos.” Então a “verdadeira raiz das crises” encontra-se na “supressão dos salários” e na “redução da massa da população à condição de pobres despossuídos”. Essa é a uma teoria das crises de viés subconsumista.
Há muito a ser pontuado aqui. Primeiro, o Capítulo 23 [novamente, 25 no original], intitulado A lei geral da acumulação capitalista, não se refere apenas à pauperização da classe trabalhadora. DH deixa de fora um aspecto muito importante da lei geral: a tendência ao aumento da composição orgânica do capital [5]. É isso que aumenta a mais-valia relativa, mas também é um fator chave na tendência de queda da taxa de lucro (desenvolvida no Volume 3), “a lei mais importante da economia política” [6], que estabelece a base da teoria das crises de Marx. DH ignora esse aspecto.
Mas DH se aprofunda em sua interpretação subconsumista. “Valor depende da existência de quereres, necessidades e desejos, apoiados pela capacidade de uma população de consumidores de pagar(…) Isso também significa que a diminuição de salários a quase nada será contraproducente na realização de valor e mais-valia no mercado. Aumentar salários para garantir ‘consumo racional’ do ponto de vista do capital e colonizar a vida cotidiana como um campo para o consumismo são cruciais para a teoria do valor.” A partir disso DH argumenta que o capitalismo entra em crise porque os salários são suprimidos; então aumentar salários, garantindo “consumo racional”, proporcionaria a “capacidade da pagar” e daria fim às crises.
Essa interpretação subconsumista da teoria de Marx foi firmemente rejeitada – pelo próprio Marx – na famosa nota no mesmo Volume 2 ao qual DH se refere (sublinhados meus).
É pura tautologia dizer que as crises surgem da falta de um consumo solvente, ou da carência de consumidores solventes. (…) Que as mercadorias sejam invendáveis significa apenas que não foram encontrados compradores solventes para elas e, portanto, consumidores (já que, em última instância, as mercadorias são compradas para o consumo produtivo ou individual). Mas caso se queira dar a essa tautologia a aparência de uma fundamentação profunda, dizendo que a classe trabalhadora recebe uma parte demasiadamente pequena de seu próprio produto, de modo que o mal seria remediado tão logo ela recebesse uma fração maior de tal produto e, por conseguinte, seu salário aumentasse nessa proporção, bastará observar que as crises são sempre preparadas num período em que o salário sobe de maneira geral e a classe trabalhadora obtém realiter [realmente] uma participação maior na parcela do produto anual destinada ao consumo. Já do ponto de vista desses paladinos do entendimento humano saudável e “simples” (!), esses períodos teriam, ao contrário, de eliminar as crises.” [7] [pág. 514 O Capital Livro II, Editora Boitempo, 1ª edição]
A meu ver, Marx rejeitou tanto a lei do valor na interpretação de DH como também a conclusão de que as crises são causadas pela incapacidade de pagar pelos “quereres, necessidades e desejos” das pessoas. Mas Marx poderia estar errado e DH certo sobre a causa das crises. No entanto, as evidências empíricas não apoiam DH.
Deixe-me citar apenas três fatos. O primeiro é que o consumo dos trabalhadores não é o maior setor de “demanda” numa economia capitalista; é o consumo de capital produtivo. Produto interno bruto é uma medida da demanda anual por “quereres, necessidades e desejos”. Nos EUA, o consumo parece constituir 70% do PIB. No entanto, se você olhar para o “produto bruto” que inclui todo os produtos intermediários com valor agregado não contabilizados no PIB, então o consumo aparece como apenas 36% do produto total; o restante constitui demanda do capital por partes, materiais, bens intermediários e serviços. É o investimento de capitalistas que é o fator determinante e motor da demanda, não o consumo de trabalhadores.
Isso fica demonstrado no segundo fato. Se analisarmos as mudanças em investimento e consumo que precedem cada recessão ou baixa na economia norte-americana do pós-guerra, veremos que a demanda de consumo teve pequeno ou nenhum papel na causação de uma queda. Nas seis recessões desde 1953, o consumo pessoal caiu menos do que o PIB ou o investimento em cada ocasião e absolutamente não caiu em 1980-2. O investimento caiu de 8 a 30% em todas as ocasiões.
Mudanças de porcentagem em consumo pessoal real (PC), investimento e produto interno bruto (GDP).
grafico
O terceiro fato diz respeito diretamente a salários e à alegação de DH de que aumentá-los ajudaria o capital. Carchedi estabelece que das 12 crises após Segunda Guerra, 11 foram precedidas por aumento dos salários e apenas uma por queda dos salários (a crise de 1991) [8]. Isso confirma a visão de Marx na nota do Volume 2 acima.
Eu concluo a partir do breve artigo de DH que ele pretende estabelecer uma tese de que a luta de classes não é mais centrada ou decidida entre trabalho e capital no ponto de produção da mais-valia. Em vez disso, no capitalismo “moderno”, ela se encontra em outros pontos desse “circuito do capital” que ele apresenta em seu último livro e em várias apresentações globalmente. Para DH, é no ponto da realização (isto é, aluguéis, hipotecas, superfaturamento por farmacêuticas etc.) ou na distribuição (por impostos, serviços públicos etc.) que os “pontos quentes” da luta de classes estão focados agora. A luta de classes na produção agora é menos importante (ou até inexistente).
A meu ver, para apoiar isso, DH apresenta uma série de confusões teóricas em seu artigo. Primeiro, Marx não teria uma teoria do valor do trabalho. Segundo, o valor só seria criado na troca (na realização). Terceiro, a taxa de lucro (ou mesmo o próprio lucro) seria irrelevante para as crises: o importante seria o decréscimo do valor da força de trabalho ao mínimo (ou até a zero!) não permitindo que os trabalhadores sejam capazes de alcançar seus “quereres, desejos etc.” Isso resulta numa teoria do subconsumo bruta – ainda mais bruta que a de Keynes.
DH deliberadamente ignora a diferença (e a dualidade) entre trabalho concreto e abstrato, e sua contrapartida, valor de uso e valor de troca. A natureza dual do valor numa mercadoria, como Marx descobriu, é reduzida por Harvey a uma incapacidade dos trabalhadores de comprar seus valores de uso. Valor de uso (quereres e desejos) é a chave, não o valor de troca no valor, para DH. A teoria das crises de Marx (baseada em mais-valia insuficiente) é substituída por valores de uso insuficientes para trabalhadores como consumidores. Sobreacumulação é substituída por subconsumo. A luta de classes deixa de ser sobre trabalhadores versus capitalistas para se tornar sobre consumidores versus capitalistas ou pagadores de impostos versus governos.
Não é a visão de Marx. Mais importante, a abordagem inteira é confusa para uma análise classista e estratégica para a luta da classe trabalhadora.

Os erros de compreensão de Michael Roberts
Por David Harvey, traduzido por Augusto Ribeiro Silva
Há, obviamente, alguns pontos sérios para discussão a respeito da teoria do valor de Marx e eu espero que o diálogo com Michael Roberts auxilie nessa questão. Antes de me ater a eles, eu preciso corrigir uma série de erros de leitura e interpretação sobre minha posição presentes na resposta de Roberts. Permitam-me ser claro: o valor sempre é criado no ato da produção. Mas é realizado no momento da troca no mercado. Eu, portanto, penso no valor em termos do que Marx chama de “a unidade contraditória da produção e da realização.” O valor não pode ser produzido através da troca no mercado. Marx é suficientemente claro a esse respeito.
A essência do valor é o trabalho abstrato ou, como eu prefiro dizer, “trabalho socialmente necessário”. Roberts está obviamente correto em dizer que a definição de Marx é inteiramente diferente do tempo de trabalho concreto postulado por Ricardo. No entanto, não importa se dissermos “trabalho abstrato” ou “socialmente necessário”, o ônus da questão cairá sempre em como a abstração seria feita e no que se entenderia por socialmente necessário. A resposta a tais questões deve se basear em processos materiais e não construída através de exercícios idealistas. Portanto, por qual processo materialista o valor será construído se não for “inerente” às mercadorias, mas historicamente criado.
A resposta é dada no ponto de partida de Marx n’O Capital, que é o ato material idealizado da troca de mercadorias. Se o capitalista leva a mercadoria ao mercado e não há querer, necessidade ou desejo por ela, então o trabalho cristalizado nela é socialmente desnecessário e, portanto, não tem valor (isso é o que Marx diz ao fim da primeira seção d’O Capital) [página 211 da edição da Boitempo, Livro I]. Isso não significa que o valor seja criado no mercado (o que Roberts erroneamente me acusa de dizer). Mas – e essa pode ser minha visão particular da questão – eu tomo o valor criado na produção como um valor meramente potencial até que ele seja realizado. Outra forma de dizê-lo seria afirmar que o valor é produzido, mas que será perdido se não houver para ele demanda no mercado. Nesse caso, precisaríamos construir uma teoria forte de desvalorização para dar conta do que ocorre no mercado. A desvalorização raramente aparece nas considerações de Roberts e não tem lugar em sua resposta. Dado meu interesse na relação entre valor e não-valor ou anti-valor, essa última formulação pode também funcionar para mim. Mas em ambos os casos eu acredito que seja inegável que o estado de quereres, necessidades e desejos apoiados por capacidade de pagamento tenha um papel importante na sustentação da circulação do capital. Isso não significa, como Roberts infere repetidas vezes, que esse seja o único fator relevante na formação da crise. Eu me esforcei para dizer diversas vezes que esse é apenas um momento importante na circulação do capital onde desvalorizações (eventualmente, mas nem sempre, da proporção de uma crise) podem ocorrer.
Mas Roberts adora por diversas vezes me relegar a essa categoria pejorativa de subconsumista sempre que eu menciono tais questões. Foi Marx, e não eu, quem disse que “a verdadeira raiz das crises” está no poder de compra diminuído das classes trabalhadoras e se eu cito Marx nesse momento é porque é um impecável antídoto para todos aqueles que incansavelmente recorrem à queda da taxa de lucro. Eu tenho argumentado que crises vêm em muitas formas e tamanhos. A queda da taxa de lucro ou o colapso da demanda consumidora são duas de muitas explicações (eu noto de passagem que Marx, em seus comentários sobre as crises de 1847 e 1857 – crises que assemelharam-se excepcionalmente à de 2007-8 – descreveu as crises como comerciais e financeiras sem qualquer menção à queda da taxa de lucro ou a demanda consumidora insuficiente).
Minha objeção a qualquer interpretação produtivista excludente (para fazer uma caracterização pejorativa correspondente!) é que elas isolam totalmente toda a história de criação de quereres, necessidades e desejos (sem mencionar a mecânica de garantia da capacidade de pagamento) na história da acumulação capitalista. Acredito que devamos prestar muito mais atenção a esse aspecto. Isso não significa que eu subestime, negue ou refute todo o trabalho que tem sido feito no processo de trabalho e a importância das lutas de classes que têm ocorrido e continuam a ocorrer na esfera produtiva. Mas essas lutas devem ser relacionadas às lutas em torno da realização, distribuição (por exemplo, extrações de renda, execuções de dívida), reprodução social, o manejo da relação metabólica com a natureza e os presentes gratuitos da cultura e da natureza. Esses todos têm tido grande importância em movimentos anticapitalistas recentes e eu insisto que os encaremos com seriedade ao lado do mais tradicional foco na esquerda marxista com a tendência de assumir a luta de classes no ponto da produção como o momento-chave da luta. É por isso que eu acredito que o diagrama que eu ofereço da circulação e a definição de capital como valor em movimento seja tão importante. É estranho ver tudo isso desprezado na citação de Murray Smith como “pensamento circular”!!
Essa perspectiva abre algumas linhas interessantes de questionamento e pontos de divergência. As considerações de Marx sobre lutas em torno da jornada de trabalho e das forças que movem mudanças tecnológicas e organizacionais em busca de mais-valia relativa todas dependem das “leis coercitivas da competição”. Esse termo aparece em vários pontos-chave no argumento de Marx ao longo d’O Capital. Onde essa força é mobilizada e mais distintamente notada? No mercado, é claro! Nós não podemos entender o que ocorre no âmbito da produção (ou reprodução social) sem a atuação de forças de mercado. São as leis coercitivas da competição no mercado que orientam o reinvestimento capitalista e o prolongamento da jornada de trabalho etc.
Mas isso nos remete a como Marx estabelece a abstração de valor – o que é, aliás, na visão de Marx, uma relação social, portanto “imaterial porém objetiva” e não “inerente” e “real” como a citação de Murray propõe (“Exatamente ao contrário da objetividade sensível e crua dos corpos-mercadorias, na objetividade de seu valor não está contido um único átomo de matéria natural.” diz Marx n’O Capital). [página 125 de O Capital Livro 1, editora Boitempo, 1ª edição revisada] O valor emerge não como produto do pensamento, mas como produto de um processo material histórico. O estudo de Marx de formas de valor equivalentes e relativas leva à generalização da troca que fundamenta o surgimento do valor como uma norma regulatória que opera no mercado, e é essa norma regulatória do valor que então retorna para dominar comportamentos não apenas no mercado, mas também no âmbito da produção e da reprodução social. Esse é um movimento muito dialético que Marx faz, mas é comumente encontrado no trabalho de Marx. Apenas dessa maneira, por exemplo, pode-se entender como se dá que os trabalhadores façam o capital que em seguida retorna para dominá-los e que todos nós possamos nos tornar prisioneiros de nossos próprios produtos (atenção acadêmicos!!).
Finalmente, permitam-me comentar sobre o exemplo empírico no qual Roberts reduz a demanda final de 70 para 30 porcento. Para ser claro, há uma questão complicada sobre como lidar com relações de valor através de cadeias de mercadorias (há um artigo interessante de Starosta sobre Cadeias de Mercadorias e a teoria do valor de Marx na revista Antipode de 2011). Mas imagine a situação em que minério de ferro seja minerado e a empresa mineradora produza valor e mais-valia, a serem realizados através da venda para uma companhia que produza aço, que por sua vez realize mais valor e mais mais-valia através duma venda para uma empresa automobilística, que produza ainda mais valor e mais-valia pela venda de automóveis para consumidores finais que queiram e necessitem de um automóvel e tenham dinheiro para comprá-lo. O valor do automóvel é todo o trabalho abstrato pretérito aplicado. Suponha que, por algum motivo, os consumidores finais não sejam capazes de pagar ou estejam saturados de automóveis. Então todo o valor acumulado é perdido (desvalorizado). Na prática, como Marx observou, a cadeia de pagamentos pode demorar para se estabelecer, mas quando ela o faz toda a produção de valor nessa cadeia desaparece.
Claro, todo outro tipo de cenários pode ser imaginado. Mas o ponto aqui é que ninguém exceto loucos e especuladores desejarão acumular aço na ausência de um mercado adequado. Então o que ocorre com o valor nessas situações torna-se problemático e as considerações de Robert fazem parecer que investimento na produção de meios de produção é independente da demanda final e pode ocorrer independentemente das condições finais do mercado. Claro, há certos tipos de investimento com todo tipo de defasagem temporal (capital fixo e infraestrutura), como a superprodução chinesa de cidades financiadas pelo endividamento, onde as coisas ficam muito complicadas (como eu destaquei no capítulo final de Loucura da Razão Econômica). Mas o exemplo empírico de Roberts não faz sentido para mim na elucidação do porquê da realização ou as políticas de realização serem irrelevantes ou no máximo colaterais à ação central do âmbito produtivo.
Tudo isso e nós ainda não nos debruçamos sobre as questões espinhosas do dinheiro e das políticas de distribuição ao lado da circulação de capital portador de juros em relação à teoria do valor. Podem bancos produzir valor? Eles claramente podem produzir representações de valor a passo largo… Seríamos nós colaterais também?

Notas:
2) [pág. 233 – O Capital Livro I, Editora Boitempo, 1ª edição revista]
3) Murray Smith, Invisible Leviathan, 2018
4) Cockshott e Cottrel dividiram a economia em um grande número de setores para mostrar que o valor monetário do produto bruto desses setores correlaciona-se fielmente com o trabalho empenhado na sua produção. Anwar Shaikh também fez algo similar. Ele comparou preços de mercado, valores de trabalho e preços padrão de produção calculados das tabelas de fluxo [input/output] dos Estados Unidos e constatou que em média valores de trabalho desviam de preços de mercado por apenas 9,2% e que preços de produção (calculados a taxas de lucro observadas) desviam de preços de mercado por apenas 8,2%. Lefteris Tsoulfidis e Dimitris Paitaridis investigaram a questão das variações de preço-valor usando a tabela de fluxo [input/output] do Canadá. Eles constataram que para a economia canadense os resultados são consistentes com a teoria do valor de Marx. E G. Carchedi, em um artigo recente, mostrou que a validade da lei do valor de Marx pode ser testada com dados oficiais dos Estados Unidos, os quais são preços deflacionados em dinheiro de valores de uso. Ele constatou que taxas de lucro de dinheiro e valor moviam-se na mesma direção (com uma tendência ao decréscimo) e mantinham-se muito próximas uma à outra.
5) “A acumulação de capital, que originalmente aparecia tão somente como sua ampliação quantitativa, realiza-se, como vimos, numa contínua alteração qualitativa de sua composição, num acréscimo constante de seu componente constante à custa de seu componente variável.” [pág. 704 O Capital Livro I, Editora Boitempo, 1ª edição revisada]
6) Grundrisse.
7) O Capital Volume 2, Capítulo 20
in LavraPalavra.com

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Publico no meu blog porque concordo inteiramente



Antes pelo contrário
Antes pelo contrário
Daniel Oliveira
Uma greve contra todos

Deixo para o meu texto desta sexta-feira, na edição semanal do Expresso, as razões da greve dos motoristas de materiais perigosos, os desafios e perigos que ela nos deixou e como podemos estar a caminhar para a implosão do sindicalismo. Hoje, com menos contexto, fico-me pelo dilema em que ficam o Governo, os patrões e os outros sindicatos.
Comecemos pelos factos: os sindicatos de transportes, incluindo a maior federação sindical, que representa todos e não apenas um pequeno grupo especializado, chegaram a acordo com a ANTRAM em outubro. Um acordo que se esperava há 21 anos. Foi uma vitória. Não estará lá tudo o que o camionistas querem, mas foi um primeiro passo. O sindicato que agora faz greve não foi envolvido porque não existia. Foi criado um mês depois e formalizado em janeiro. Nasceu de um espírito que não é novo e que já criou distorções graves na TAP (pilotos) e na CP (maquinistas): um pequeno grupo que desempenha funções que podem paralisar um país separa-se dos restantes por achar que sozinho pode conseguir mais para si. Não preciso de dizer que isto é o oposto do que anima a solidariedade sindical.
Uma greve tem de atender ao princípio da proporcionalidade. Podem os interesses de 800 pessoas afetar de forma tão forte a vida de 10 milhões? Pode o sindicalismo sobreviver ao fim da solidariedade entre trabalhadores?
Quando o novíssimo sindicato, dirigido por um empresário e por um advogado, marcou a greve, o Governo reuniu as partes e definiram-se os serviços mínimos. Logo no primeiro dia esses serviços mínimos foram desrespeitados por um sindicato totalmente estranho a regras e hábitos estabelecidos. Decretada a requisição civil para o cumprimento desses serviços mínimos, também eles foram ignorados, o que deixa as autoridades numa situação quase impossível de resolver sem o recurso a soluções extremas. Que não costumamos testemunhar porque os sindicatos que conhecemos querem preservar o direito à greve e prezam o apoio popular.
Nesta parte, as críticas ao Governo são injustas. O Governo não podia prever que os serviços mínimos seriam desrespeitados. Quando isso se verificou, demorou 24 horas a reagir. Também não poderia prever que até a requisição civil seria desrespeitada. Demorou 48 horas a conseguir pôr um ponto final na greve. Na gestão dos acontecimentos fez o que poderia ser feito num conflito que é entre privados e perante um sindicato que desrespeita a lei. O preço que pode ser pago para travar esta greve na Páscoa por via negocial é que pode vir a ser alto.
O que está em cima da mesa não é a reabertura, com todos os sindicatos dos camionistas, do acordo assinado em outubro. O que está em cima da mesa é um acordo especial com um grupo de pessoas que, tirando uma ou outra especificidade, sofre do mesmo desgaste e das mesmas condições de trabalho que os colegas que olimpicamente ignoram. As cedências não podem ser em mais do que nas atividades que sejam específicas a este grupo. Isso seria abrir uma frente de conflito com todos os restantes camionistas. Se se premiar o poder deste sindicato, os associados de outros sindicatos e até de outros sectores concluirão duas coisas: que o sindicalismo mais eficaz é o que isola pequenos grupos e deixa cada um deles a tratar de si – o que só é válido para quem tenha o poder de parar um país e os outros que se lixem – e que o incumprimento das regras mais básicas do sindicalismo e da greve compensam. Do lado dos patrões, também se cria um problema: a negociação passa a ser desvalorizada. Chegado a um acordo, nada garante que não nasça um sindicato de um pequeno grupo que faz tudo voltar ao princípio. Cria um ambiente de incerteza que torna a negociação impossível.
Os efeitos rápidos desta greve são devastadores mas ela podia ser justa. Para a avaliar é necessário atender ao princípio que deve nortear tudo na ação política e social: o da proporcionalidade. Podem os interesses de 800 pessoas afetar de forma tão forte a vida de 10 milhões? Pode um processo negocial que durou meses e que resultou num acordo histórico ao fim de 21 anos ser destruído porque uma pequena parte dos trabalhadores que tem a faca e o queijo na mão quer mais só para si? Pode o sindicalismo sobreviver ao fim do princípio básico de solidariedade entre trabalhadores? Pode o direito à greve ser defendido se não corresponder a um compromisso entre os diretos dos trabalhadores e o bem comum e a um respeito pela lei que o enquadra? É na resposta honesta a estas perguntas que têm a minha posição sobre esta greve e sobre as cedências a que ela devem ser feitas. Sabendo que só sou ativamente contra um tipo de greves: as que ignoram a solidariedade de classe e fazem mal ao sindicalismo. Essas são contra todos nós.
in Expresso Diário on-line

quarta-feira, 17 de abril de 2019



Daniel Oliveira

Quem parte e reparte?

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Sobre a história das famílias, tenho sublinhado a pequenez da nossa elite e a brutal desigualdade da nossa sociedade como principal fator para a endogenia nos vários círculos de poder. Em todos os círculos de poder e não apenas na política e nos partidos. Já foi muito pior do que hoje. Mas continuamos a ser um dos países mais desiguais da Europa. E era aí, e não em leis inúteis para entreter campanhas eleitorais, que devia estar o debate político que nos interessa.
Na semana passada, o “Diário de Notícias” fez umas contas interessantes. Que mostram como funcionam os mecanismos de perpetuação e aprofundamento das desigualdades. Segundo o DN, os presidentes executivos (CEO) das empresas do PSI20 (as maiores cotadas em bolsa) ganharam, em 2018, 52 vezes mais do que os trabalhadores que dirigem. Receberam, em média, 1,1 milhões de euros. Isto são valores brutos e incluem, além dos salários, prémios de desempenho e contribuições para planos de pensões. Mas não estão aqui dividendos dos administradores que são simultaneamente acionistas.
Em 2014, os CEO das empresas do PSI20 recebiam 33 vezes mais do que os seus trabalhadores. Agora recebem 52 vezes mais. Porque de 2014 a 2018 os salários dos administradores aumentaram muito mas o custo médio com os funcionários manteve-se quase inalterado. O que quer dizer que aos primeiros sinais de recuperação económica os gestores trataram apenas de si
Os trabalhadores destas mesmas empresas receberam, em média, 21,1 mil euros por ano, seguindo os mesmos critérios. Os valores dos custos com pessoal incluem funcionários noutros países, que ocupam cerca de metade dos postos de trabalho. Ainda assim, a diferença é abissal. Sobretudo quando também não estão aqui os salários dos trabalhadores que trabalham para estas empresas através de call centers e subcontratações, o que em empresas como a EDP, por exemplo, é bastante significativo.
Se fizermos uma espécie de ranking da desigualdade temos, logo no topo, a Jerónimo Martins. Na dona do Pingo Doce a diferença entre os rendimentos de Pedro Soares dos Santos e os seus trabalhadores é de 140 vezes. Se não fosse este grupo de distribuição a diferença entre os ganhos dos CEO e os trabalhadores cairia, no conjunto das empresas, para 37 vezes. Ele ganha 1,9 milhões de euros (um dos rendimentos mais altos), os seus funcionários ganham, em média, 13,5 mil euros (os mais baixos). Esta é a empresa onde os trabalhadores estrangeiros têm de ser tidos em conta, já que muitos estão na Polónia. Ainda assim, os polacos já se começam a aproximar de Portugal, com um salário mínimo de 500 euros. Eles não chegam para explicar esta diferença brutal.
Depois temos a EDP, com uma diferença de 39 vezes (graças aos rendimentos anuais de 2,2 milhões de euros de António Mexia), a Sonae (os rendimentos anuais de Paulo Azevedo, se contarmos com prémio de 2015 liquidado em 2018, são metade dos do dono da Jerónimo Martins), a GALP e Semapa, com diferenças superiores a 30 vezes, e a Navigator e EDP Renováveis.
Mas o mais impressionante não são estes valores. É o que aconteceu neste período de recuperação económica. Isso sim, dá-nos a dimensão de como as coisas funcionam. Em 2014, a média dos rendimentos dos CEO era 700 mil euros anuais. Recebiam 33 vezes mais. Agora recebem 1,1 milhões de euros e ganham 52 vezes mais. Porquê? Porque de 2014 a 2018 o custo médio com cada funcionário manteve-se quase inalterado. O que quer dizer que aos primeiros sinais de recuperação económica os gestores trataram de si e deixaram os seus trabalhadores quase na mesma. A conversa que para distribuir é preciso produzir choca com estes números. Claro que para distribuir é preciso produzir. Mas não chega. Para distribuir é preciso que os mecanismos de pressão dos trabalhadores funcionem. E não estão a funcionar.
Quando isto foi debate pela última vez, o PS apresentou um projeto de resolução para penalizar as grandes diferenças salariais nas contribuições à segurança social. Os patrões não aceitaram a proposta em sede de concertação social e tudo morreu. Assim como morreu a proposta do Bloco de Esquerda para punir esta desigualdade salarial. Compreendo e não discordo da tentativa de legislar sobre esta pornográfica diferença. Mas a questão não é, mais uma vez, moral. É política. É que instrumentos criamos que forcem a uma redistribuição mais justa. Com um sindicalismo fraco e leis laborais que fragilizam a posição do trabalhador na empresa é inevitável que esta desigualdade se aprofunde. Quem tem a faca e o queijo na mão não costuma dividir o queijo de forma justa. É preciso que a faca seja partilhada. Não depende da bondade ou da maldade, depende da distribuição de poder. E temos tirado poder aos trabalhadores e a quem os representa.
Já citei aqui várias vezes o livro “Espírito da Igualdade”, dos britânicos Richard Wilkinson e Kate Pickett. Nele, comparam-se dados estatísticos de doenças mentais, toxicodependência, alcoolismo, esperança de vida, mortalidade infantil, obesidade, desempenho escolar, gravidez na adolescência, homicídios, taxas de encarceramento, mobilidade social e confiança entre cidadãos em vários países desenvolvidos. E conclui-se que, no primeiro mundo, são os índices de igualdade na distribuição da riqueza e não a riqueza produzida os que mais determinam a qualidade de vida de todos os cidadãos. Até os mais ricos vivem melhor em sociedades igualitárias do que em sociedades como a nossa. É a desigualdade, ilustrada por esta multiplicação por 52, que está na base do nosso atraso. A endogamia da elite é só uma das suas muitas consequências.
in Expresso diário

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.