Ainda ouço essa voz que o tempo não vai levar
"Ocorre que a identificação pela arte vem com uma boa dose de idealização que sempre acoberta e aplaina a contraditoriedade da pessoa por trás do artista. Como pode quem cantou "Sentinela" com "Milton Nascimento" apoiar o obscurantismo e a violência das classes dominantes?"
Por Mauro Luis Iasi.
“Morte vela sentinela sou
Do corpo desse meu irmão que já se foi
Revejo nessa hora tudo que aprendi,
memória não morrerá
Do corpo desse meu irmão que já se foi
Revejo nessa hora tudo que aprendi,
memória não morrerá
Longe, longe, ouço essa voz
Que o tempo não vai levar”
Que o tempo não vai levar”
Fernando Brant/Milton Nascimento
“Tempo, espaço,
vida nem morte é a resposta.
E de homens procurando o bem,
Fazendo o mal.”
vida nem morte é a resposta.
E de homens procurando o bem,
Fazendo o mal.”
Erza Pound
No coração destes tempos sombrios somos acometidos por um fenômeno
arrasador: alguns artistas que nos são muito caros fazem declarações
desconcertantes a favor do fascista bufão que se encontra alojado na
presidência somando-se assim à lama fétida da barbárie. O caráter
desconcertante de tais atos se dá, em parte, pela importância que este
ou aquele artista teve na construção de nossa consciência e nossa
sensibilidade, que nos leva exatamente no sentido oposto. Daí o
estranhamento e a sensação de traição.
A lista não é pequena e não é minha intenção enumerar estes
personagens, mas, apenas como exemplo, podemos falar de Fagner, Samuel
Rosa, Lobão, Djavan e, mais recentemente, Nana Caymmi, que de maneira
grosseira e vulgar criticou Caetano, Gil e Chico, declarando sua
confiança no miliciano a serviço das forças do mal.
Nossa primeira reação é, compreensivelmente, a raiva, seguida da vontade de retirá-los imediatamente de nossas playlists. Ainda que compreenda essa reação, quero aqui propor de refletir um pouco mais sobre o assunto.
O que é falso? Aquele momento de sensibilidade que nos tocou? A
manifestação brutal de apoio a uma personagem que declara seu amor à
ditadura e a tortura? Devemos começar por dizer que ambas são partes
constituintes da verdade e revelam aspectos da personalidade e
consciência desses artistas. Ocorre que a identificação pela arte vem
com uma boa dose de idealização que sempre acoberta e aplaina a
contraditoriedade da pessoa por trás do artista. Como pode quem cantou
“Sentinela“ com Milton Nascimento apoiar o obscurantismo e a violência
das classes dominantes?
Podemos somar esse estranhamento a muitos casos. Como pode quem
cantou como cantou em seus poemas, a vida e a luta, acabar
miseravelmente apoiando os tucanos degenerados como fez Ferreira Gullar?
Um dos mais belos poemas sobre os desaparecidos é do poeta Affonso
Romano de Sant’Anna, que em 1990 aceitou presidir a Fundação Biblioteca
Nacional a convite do governo Collor. Até mesmo Drummond, nosso querido
poeta, aceitou emprestar seu prestígio ao Ministro Capanema quando no
governo Vargas tentava atrair a intelectualidade.
Analisando o fazer poético, que podemos estender para outras formas
artísticas, Haroldo de Campos nos diz que o poeta lança metade da
laranja em sua obra, a outra metade guarda com ele. Quando lemos o poema
e nos identificamos é porque somamos à metade de nossa própria laranja.
Para que isso ocorra, a obra artística tem que se desprender da
particularidade de seu autor, alcançar uma certa genericidade. Lukács
está convencido de que a arte é uma daquelas mediações que trás a
possibilidade de se elevar do cotidiano expressando uma manifestação
universal. Ora, essa abstração, exatamente pelo seu potencial universal,
não pode carregar inteira a laranja do seu criador.
Acreditamos de forma precária que as manifestações da consciência de
um artista, quando, por exemplo, nos tocam por uma sensibilidade
humanista ou um compromisso com os que são explorados, são expressão de
um compromisso de classe que pode não existir no criador. Sabemos que
não há uma conexão mecânica entre a posição de classe e a consciência, e
isso é fundamental no fenômeno que analisamos. Diz Lukács:
Por mais que o artista, como todo homem, seja determinado ideologicamente pela base econômica própria de sua classe, ele também pode, como todo homem, em termos abstratos, voltar-se contra ela.
(Lukács, G. A ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013, p.773-774)
Essa possibilidade, que de certa maneira é um desenvolvimento
interessante no pensamento do marxista húngaro se considerarmos o
acalorado debate com Sartre, leva à probabilidade de que o “apelo
figurado do homem que busca ultrapassar a sua própria particularidade”
possa através da arte, dependendo das circunstâncias, “tornar-se
pioneiro da generidade para si”, relativizando as pressões ideológicas
de sua condição de classe (idem, p. 774). Mais claramente ainda o autor
afirma em seguida: “a possibilidade de uma exteriorização ideológica
significativa que contradiz estritamente a direção ideológica
fundamental da classe a que pertence o seu autor” (idem, ibidem).
De modo geral, os artistas ocupam os segmentos médios da sociedade,
uns com origens mais populares, outros com laços com classes dominantes.
É característico dos segmentos médios a oscilação entre os universos
valorativos das camadas proletárias e das classes dominantes, fazendo
com sua consciência seja, via de regra, um ser compósito e bizarro. O
elevar-se em direção à universalidade, tornado possível na
exteriorização da obra artística, não apaga seu pertencimento de classe,
abrindo a possibilidade de contradições compreensíveis.
Compreender essas determinações não significa desautorizar nossa
indignação, mas pode nos abrir uma possibilidade interessante. Estamos
falando da alienação e, como sabemos, a alienação tem várias dimensões.
Ela é externação (Entäusserung) que se manifesta em um processo de objetivação (Vergegenständigung), abrindo a possibilidade de um distanciamento (Distanzierung).
Ora, o obra artística é a externação da subjetividade do artista, mas
ela é a objetivação em algo que dele se distancia, sem o que a
possibilidade de universalidade, própria de toda arte verdadeira,
poderia se dar. No interior deste movimento, o que fica abstraído é a
particularidade do sujeito, ainda que traços essenciais de sua
subjetividade migrem para a objetivação artística.
Quando a metade da laranja encontra a nossa subjetividade, produz uma
nova síntese e, de certa maneira, permite o nosso elevar-se em direção
ao genérico. Isso significa que a base da identificação é o potencial de
generidade do artista que encontra a nossa possibilidade. A verdade da
laranja não esta nele ou em nós, mas acima de nós, na dimensão abstrata
da universalidade humana.
Um exemplo. Minha geração viveu o final da ditadura ouvindo Chico
Buarque, Vandré, mas também Caetano. Para minha consciência em formação
foi tão importante o “ Para não dizer que não falei em flores” (Vandré), o “Funeral de um lavrador” (Chico Buarque sobre a letra de João Cabral) como “Alegria, alegria” de
Caetano. Aí vem Roberto Schwarz com sua crítica arrasadora, acompanhado
do incrível Henfil descascando o comportamento “odára” do baiano. Que
devia fazer? Fazer de conta que os versos e o comportamento do
compositor baiano não me tocavam na dimensão mais universal, inclusive
servindo decisivamente a minha rebeldia e compromisso político? Seria
possível amar Caetano e Belchior? Se para o ofício dos críticos isso era
tarefa difícil (e eu respeito profundamente este ofício), quero dizer
que para nós… não. Caminhávamos contra o vento, sem lenço e sem
documento, vivendo nossas alucinações nas coisas reais, caminhando e
cantando e lutando contra a ditadura, porque tudo que se elevava ao
humana se choca contra o que é anti-humano.
Teria dúvida em guiar meu posicionamento político pelo julgamento de
Caetano, mas não hesitaria um segundo em abraçá-lo em profunda gratidão
pelos bordados costurados em minha alma pela agulha fina de sua voz e
sua poesia. Se enquanto pessoa ele briga com Belchior (ou Belchior com
ele), na dimensão da humanidade que me compõe se encontram e riem destas
pequenas desavenças.
Mart’nália pediu, com razão, para alguém mandar a Nana à merda.
Certo, ouvindo o que ele disse, posso cumprir essa missão. Mas, como
poderia mandar que se cale a voz que cantou Cais? Ocorre que
não preciso: aquela voz e a música que a carrega não pertence mais
totalmente à pessoa, alienou-se, objetivou-se, vive numa outra dimensão
acima dos direitos autorias e da propriedade das coisas, alojou-se na
universalidade possível nestes tempos de barbárie.
Em certos momentos em que nos sentimos muito sozinhos, com medo,
quando os fantasmas do destino nos procuram, vozes invisíveis nos
salvam, cantarolando em nossos ouvidos: “pode ser a depressão… mas não
tente se matar, pelo menos esta noite não”.
Veja, Lobão é uma expressão evidente de decadência e degeneração, mas
seus versos e sua voz se projetam para além dele. Talvez, o que
tenhamos dificuldade em aceitar é que mesmo os mais babacas têm um lado
humano, assim como aqueles que julgávamos mais humanos tem seu lado
babaca. Como nós. Há exceções, evidentemente, como o Roger que é quase
um babaca perfeito.
A segunda epígrafe é de Erza Pound, que nasceu nos EUA e viveu na
Itália, que como dizia era poeta, por isso “bebia da vida como homens
menores bebem vinho”, que por seu ódio contra a arrogância estadunidense
acabou apoiando o fascismo italiano na segunda guerra. No final de sua
vida disse: “minhas intensões eram boas, mas enganei-me na maneira de
alcançá-las. Fui um estúpido. Conhecimento me chegou tarde demais”. Por
conta de suas transmissões radiofônicas contra os EUA na guerra, foi
preso, considerado insano e internado em um hospício. Seus poemas vão
muito além de seu destino trágico ou suas lamentáveis escolhas
políticas. “Vinde minhas canções”, disse ele em um poema, “vamos
arranjar bastantes desafetos”(…) “armemo-nos contra este mar de
vulgaridades”. Não se pode separar o poema do poeta, mas é possível
gostar do poema sem gostar das escolhas pessoais dos poetas, pois, como
disse Chico Buarque:
“Mesmo que os cantores sejam falsos como euSerão bonitas, não importa
São bonitas as canções
Mesmo miseráveis os poetas
Os seus versos serão bons
in Boitempo blog. com
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