Gabriel Rockhill *
A violência é uma arma espetacular usada pela classe dominante para desacreditar os movimentos de baixo e justificar a sua repressão. É espetacular, no sentido de ser uma grande e poderosa ferramenta política para governar as massas e mantê-las no seu lugar. Todavia, para fazer isso, a arma da violência também é espetacular num segundo sentido: cria uma encenação cuidadosamente orquestrada, que procura tornar invisível a violência da classe dominante e, simultaneamente, transforma atos de resistência em prodigiosos espetáculos de violência criminal.
Desenho de Nathaniel St. Clair
A violência é uma arma espetacular usada
pela classe dominante para desacreditar os movimentos de baixo e
justificar a sua repressão. É espetacular, no sentido de ser uma grande
e poderosa ferramenta política para governar as massas e mantê-las no
seu lugar. Todavia, para fazer isso, a arma da violência também
é espetacular num segundo sentido: cria uma encenação cuidadosamente
orquestrada, que procura tornar invisível a violência da classe
dominante e, simultaneamente, transforma atos de resistência em
prodigiosos espetáculos de violência criminal.
É assim que a Lei 18 dos Coletes
Amarelos está a ser apresentada pelos média: no exato momento em que o
governo estava a concluir a sua consulta democrática do povo, através do
“Grande Debate” de Emmanuel Macron , os Coletes Amarelos
desencadearam uma quantidade desmedida de violência que, agora,
necessita de ser reprimida da forma mais forte que for possível. O
presidente do Comité dos Campos Elíseos, Jean-Noël Reinhardt, declarou numa entrevista
em que está rodeado de microfones de muitos dos principais meios de
comunicação, que o movimento não é mais um movimento de Coletes
Amarelos, mas sim de Coletes Negros que, simplesmente, “expressam ódio e a vontade de destruir”.
Ao proclamar que essa situação não pode continuar a ser autorizada, por
causa de seu impacto na atividade comercial e turística, bem como na
difamação do símbolo dos Campos Elíseos, a sua declaração insere-se
integralmente na declaração do primeiro-ministro,
Édouard Philippe: novas medidas terão lugar para proibir os protestos
em determinados locais e permitir ataques policiais ainda mais
agressivos.
Neste momento de dar espetáculo com os
danos causados à segurada propriedade privada da indústria comercial e
de luxo, o que se apresenta como a quintessência da “violência”, é notável que o secretário-geral do sindicato da polícia da UNSA [União Nacional de Sindicatos Autónomos], Philippe Capon, tenha explicado publicamente que a polícia recebeu ordem, no sábado, para não intervir, porque havia uma opção explícita de “deixar que se quebrasse um certo número de coisas”.
O momento poderia não ser o melhor, porque o governo tem as mãos
atadas. Depois de algumas insignificantes concessões, em dezembro, bem
como da teatralidade discursiva do “Grande Debate”, os coletes
amarelos não foram para casa e sobreviveram ao inverno e às formas
extremas de repressão e violência estatais desencadeadas contra eles.
Este atual espetáculo de violência,
portanto, tem em vista dois propósitos. Em primeiro lugar, dissimula a
estrutural violência do capitalismo e da oligarquia plutocrática, que
são as fontes primárias dos atuais levantamentos. As condições de vida
das massas são cada vez mais inaceitáveis e o tradicional sistema de
partidos políticos e sindicatos é disfuncional. Um dos slogans do
protesto que vai ao cerne das questões diz simplesmente: “Violência é pobreza [La violencia c'est la pauvreté]”.
Em vez de levar a sério a natureza omnipresente e quotidiana desta
violência, que é a violência da desigualdade capitalista, é construída
uma “violência” espetacular, precisamente para fazer esquecer a
destruição diária da vida sob o domínio capitalista. É entendida como
uma interrupção temporária e perturbadora do status quo, que precisa ser erradicada. É a “violência”
de queimar um banco, ao invés de fundar um ou, mais genericamente, a
violência do sistema bancário no seu papel diário de assegurar a
hegemonia para a globalidade da classe dominante.
Em segundo lugar, o espetáculo da
violência orquestrado pelo Estado e pelos média funciona para anexar a
letra escarlate de V de Violência ao movimento dos Coletes Amarelos, a
fim de o criminalizar e, simultaneamente, justificar a sua brutal
repressão. Houve numerosos casos em que a polícia foi apanhada pela
câmara a danificar bens, a fim de culpar os manifestantes, e muitos
policiais foram fotografados e filmados a carregar martelos,
presumivelmente para esse fim. Pelo menos um membro da polícia de
choque manifestou-se contra a violência usada
contra manifestantes não-violentos, que foi encorajada pelo ministro do
Interior, bem como contra o esforço de fomentar a violência nos
protestos.
Os círculos de elite na França não foram
completamente bem sucedidos neste aspeto da sua campanha de propaganda,
porque mesmo instituições liberais como as Nações Unidas, Conselho Europeu, Parlamento Europeu e Amnistia Internacional viram
essa sua tentativa como um meio de tornar a violência estatal
invisível, ou, ao menos, justificada. O Comissário para os Direitos
Humanos do Conselho da Europa, Dunja Mijatović, preparou um memorando, em
26 de fevereiro, que resume alguma da violência, enquanto também
critica a falta de precisão e rigor nas estatísticas sustentadas pelo
Estado e pelos média: “Segundo os dados da análise do Ministério do
Interior 12 122 LBD, 1.428 granadas instantâneas de gás lacrimogéneo e 4
942 granadas de mão foram disparadas ou lançadas entre o início do
movimento dos Coletes Amarelos e 4 de fevereiro de 2019”. Com base nos cálculos de um jornalista independente citado no relatório, houve “38
ferimentos nos membros superiores, incluindo 5 mãos perdidas, 52
ferimentos nos membros inferiores, 3 ferimentos nos genitais e 189
ferimentos na cabeça, incluindo 20 pessoas que perderam um olho”. Médicos e jornalistas foram regularmente atacados, e houve numerosos ataques brutais e um número recorde de manifestantes presos.
Porém, setores significativos do Estado,
dos média e de comentadores políticos poderosos e influentes fizeram
grandes esforços para encobrir esta sistemática aplicação da violência
do Estado contra manifestantes, médicos, jornalistas e espectadores não
violentos. Emmanuel Macron condensou a verdadeira essência da ideologia
liberal em relação ao Estado ao proclamar categoricamente que não podemos falar de “repressão” ou de “violência policial” na França de hoje, porque “estas palavras são inaceitáveis sob o império da lei [ dans un état de droit]”. Então, dizendo tudo, não pode haver essa coisa de “violência de estado”, porque o estado está em oposição à violência, e esta só pode vir de forças selvagens e anárquicas de fora dele.
Aqui, vemos o duplo movimento do
espetáculo da violência em todo o seu esplendor. Por um lado, o Estado
esforça-se para dissimular a sua espetacular exploração, através do
domínio capitalista, e a sua igualmente espetacular repressão de
qualquer resistência a ele. Por outro lado, procura incitar ou criar o
espetáculo da “violência” nos protestos, a fim de os
desacreditar e, simultaneamente, usar este espetáculo como cobertura
para a sua própria e crescente exploração e repressão. Estes são os dois
principais aspetos do espetáculo da violência que, atualmente, se
desenrola em França.
É imperativo identificar essa tática
pelo que ela é, e encontrar novas estratégias para lutar contra os seus
extremamente perniciosos efeitos. Caso contrário, corremos o risco de
sucumbir à inversão ideológica diagnosticada, tão prescientemente, por
Malcolm X, numa palestra proferida em 13 de dezembro de 1964, na qual
ele explicou que a imprensa é tão poderosa no seu “papel de criar imagens” que “pode fazer um criminoso parecer a vítima e a vítima parecer um criminoso”.
Este artigo foi coletivamente organizado no Departamento de Educação Radical.
* Gabriel Rockhill é
um filósofo e crítico cultural franco-americano. É Professor Associado
de Filosofia na Universidade de Villanova e diretor fundador do Atelier de Teoria Crítica, na Sorbonne. Os seus livros incluem Contador da História do Presente: Interrogações Extemporâneas sobre Globalização, Tecnologia e Democracia (2017), Intervenções no Pensamento Contemporâneo: História, Política e Estética (2016), História Radical e a Arte da Política (2014) e Lógica da História (2010). Além
do seu trabalho académico, tem estado ativamente engajado em atividades
extra-académicas, nos mundos de arte e do ativismo, bem como em
contribuições regulares para o debate intelectual público. Seguir no
twitter: @GabrielRockhill.
Fonte: https://www.counterpunch.org/2019/03/22/spectacular-violence-as-a-weapon-of-war-against-the-yellow-vests/, publicado em 2019/03/02, acedido em 2019/03/26
Tradução do inglês de MFO
in Pelo Socialismo. blog
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