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sexta-feira, 5 de abril de 2019

Gabriel Rockhill *
A violência é uma arma espetacular usada pela classe dominante para desacreditar os movimentos de baixo e justificar a sua repressão. É espetacular,  no sentido de ser uma grande e poderosa ferramenta política para governar as massas e mantê-las no seu lugar. Todavia, para fazer isso, a arma da violência também é espetacular num segundo sentido: cria uma encenação cuidadosamente orquestrada, que procura tornar invisível a violência da classe dominante e, simultaneamente, transforma atos de resistência em prodigiosos espetáculos de violência criminal.

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Desenho de Nathaniel St. Clair

A violência é uma arma espetacular usada pela classe dominante para desacreditar os movimentos de baixo e justificar a sua repressão. É espetacular,  no sentido de ser uma grande e poderosa ferramenta política para governar as massas e mantê-las no seu lugar. Todavia, para fazer isso, a arma da violência também é espetacular num segundo sentido: cria uma encenação cuidadosamente orquestrada, que procura tornar invisível a violência da classe dominante e, simultaneamente, transforma atos de resistência em prodigiosos espetáculos de violência criminal.
É assim que a Lei 18 dos Coletes Amarelos está a ser apresentada pelos média: no exato momento em que o governo estava a concluir a sua consulta democrática do povo, através do “Grande Debate” de Emmanuel Macron , os Coletes Amarelos desencadearam uma quantidade desmedida de violência que, agora, necessita de ser reprimida da forma mais forte que for possível. O presidente do Comité dos Campos Elíseos, Jean-Noël Reinhardt, declarou numa entrevista em que está rodeado de microfones de muitos dos principais meios de comunicação, que o movimento não é mais um movimento de Coletes Amarelos, mas sim de Coletes Negros que, simplesmente, “expressam ódio e a vontade de destruir”. Ao proclamar que essa situação não pode continuar a ser autorizada, por causa de seu impacto na atividade comercial e turística, bem como na difamação do símbolo dos Campos Elíseos, a sua declaração insere-se integralmente na declaração do primeiro-ministro, Édouard Philippe: novas medidas terão lugar para proibir os protestos em determinados locais e permitir ataques policiais ainda mais agressivos.
Neste momento de dar espetáculo com os danos causados à segurada propriedade privada da indústria comercial e de luxo, o que se apresenta como a quintessência da “violência”, é notável que o secretário-geral do sindicato da polícia da UNSA [União Nacional de Sindicatos Autónomos], Philippe Capon, tenha explicado publicamente  que a polícia recebeu ordem, no sábado, para não intervir, porque havia uma opção explícita de “deixar que se  quebrasse um certo número de coisas”. O momento poderia não ser o melhor, porque o governo tem as mãos atadas. Depois de algumas insignificantes concessões, em dezembro, bem como da teatralidade discursiva do “Grande Debate”, os coletes amarelos não foram para casa e sobreviveram ao inverno e às formas extremas de repressão e violência estatais desencadeadas contra eles.
Este atual espetáculo de violência, portanto, tem em vista dois propósitos. Em primeiro lugar, dissimula a estrutural violência do capitalismo e da oligarquia plutocrática, que são as fontes primárias dos atuais levantamentos. As condições de vida das massas são cada vez mais inaceitáveis e o tradicional sistema de partidos políticos e sindicatos é disfuncional. Um dos slogans do protesto que vai ao cerne das questões diz simplesmente: “Violência é pobreza [La violencia c'est la pauvreté]”. Em vez de levar a sério a natureza omnipresente e quotidiana desta violência, que é a violência da desigualdade capitalista, é construída uma “violência” espetacular, precisamente para fazer esquecer a destruição diária da vida sob o domínio capitalista. É entendida como uma interrupção temporária e perturbadora do status quo, que precisa ser erradicada. É a “violência” de queimar um banco, ao invés de fundar um ou, mais genericamente, a violência do sistema bancário no seu papel diário de assegurar a hegemonia para a globalidade da classe dominante.
Em segundo lugar, o espetáculo da violência orquestrado pelo Estado e pelos média funciona para anexar a letra escarlate de V de Violência ao movimento dos Coletes Amarelos, a fim de o criminalizar e, simultaneamente, justificar a sua brutal repressão. Houve numerosos casos em que a polícia foi apanhada pela câmara a danificar bens, a fim de culpar os manifestantes, e muitos policiais foram fotografados e filmados a carregar martelos, presumivelmente para esse fim. Pelo menos um membro da polícia de choque manifestou-se contra a violência usada contra manifestantes não-violentos, que foi encorajada pelo ministro do Interior, bem como contra o esforço de fomentar a violência nos protestos.
Os círculos de elite na França não foram completamente bem sucedidos neste aspeto da sua campanha de propaganda, porque mesmo instituições liberais como as Nações Unidas, Conselho Europeu, Parlamento Europeu e Amnistia Internacional viram essa sua tentativa como um meio de tornar a violência estatal invisível, ou, ao menos, justificada. O Comissário para os Direitos Humanos do Conselho da Europa, Dunja Mijatović, preparou um memorando, em 26 de fevereiro, que resume alguma da violência, enquanto também critica a falta de precisão e rigor nas estatísticas sustentadas pelo Estado e pelos média: “Segundo os dados da análise do Ministério do Interior 12 122 LBD, 1.428 granadas instantâneas de gás lacrimogéneo e 4 942 granadas de mão foram disparadas ou lançadas entre o início do movimento dos Coletes Amarelos e 4 de fevereiro de 2019”. Com base nos cálculos de um jornalista independente citado no relatório, houve “38 ferimentos nos membros superiores, incluindo 5 mãos perdidas, 52 ferimentos nos membros inferiores, 3 ferimentos nos genitais e 189 ferimentos na cabeça, incluindo 20 pessoas que perderam um olho”. Médicos e jornalistas foram regularmente atacados, e houve numerosos ataques brutais e um número recorde de manifestantes presos.
Porém, setores significativos do Estado, dos média e de comentadores políticos poderosos e influentes fizeram grandes esforços para encobrir esta sistemática aplicação da violência do Estado contra manifestantes, médicos, jornalistas e espectadores não violentos. Emmanuel Macron condensou a verdadeira essência da ideologia liberal em relação ao Estado ao proclamar categoricamente que não podemos falar de “repressão” ou de “violência policial” na França de hoje, porque “estas palavras são inaceitáveis sob o império da lei [ dans un état de droit]”. Então, dizendo tudo, não pode haver essa coisa de “violência de estado”, porque o estado está em oposição à violência, e esta só pode vir de forças selvagens e anárquicas de fora dele.
Aqui, vemos o duplo movimento do espetáculo da violência em todo o seu esplendor. Por um lado, o Estado esforça-se para dissimular a sua espetacular exploração, através do domínio capitalista, e a sua igualmente espetacular repressão de qualquer resistência a ele. Por outro lado, procura incitar ou criar o espetáculo da “violência” nos protestos, a fim de os desacreditar e, simultaneamente, usar este espetáculo como cobertura para a sua própria e crescente exploração e repressão. Estes são os dois principais aspetos do espetáculo da violência que, atualmente, se desenrola em França.
É imperativo identificar essa tática pelo que ela é, e encontrar novas estratégias para lutar contra os seus extremamente perniciosos efeitos. Caso contrário, corremos o risco de sucumbir à inversão ideológica diagnosticada, tão prescientemente, por Malcolm X, numa palestra proferida em 13 de dezembro de 1964, na qual ele explicou que a imprensa é tão poderosa no seu “papel de criar imagens” que “pode fazer um criminoso parecer a vítima e a vítima parecer um criminoso”.
Este artigo foi coletivamente organizado no Departamento de Educação Radical.
* Gabriel Rockhill  é um filósofo e crítico cultural franco-americano. É Professor Associado de Filosofia na Universidade de Villanova e diretor fundador do  Atelier de Teoria Crítica,  na Sorbonne. Os seus livros incluem Contador da História do Presente: Interrogações Extemporâneas sobre Globalização, Tecnologia e Democracia  (2017),  Intervenções no Pensamento Contemporâneo: História, Política e Estética  (2016), História Radical e a Arte da Política  (2014) e Lógica da História (2010). Além do seu trabalho académico, tem estado ativamente engajado em atividades extra-académicas, nos mundos de arte e do ativismo, bem como em  contribuições regulares para o debate intelectual público. Seguir no twitter: @GabrielRockhill.
Tradução do inglês de MFO
in Pelo Socialismo. blog

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