Autocrítica ou anticomunismo? Aportes teóricos para compreender a autofobia na esquerda brasileira
Por Jones Manoel [1]
A Domenico Losurdo (1941-2018), um dos maiores intelectuais da história do marxismo. Um pensador dos condenados da terra.
É comum ouvirmos falar de forma genérica
que: “a esquerda tem que fazer uma autocrítica dos seus erros passados”.
Os autores dessa frase partem de um pressuposto falso. Essa autocrítica
não só existe, como desde a década de 1990 até hoje é praticamente
impossível se afirmar marxista sem citar os “erros do passado”. A
autocrítica, porém, parece nunca ter fim. Como um fiel católico, quanto
mais perdão pedimos, parece que mais temos pecados.
O nível de domínio ideológico dessa falsa
concepção de “autocrítica” é tão grande que, habitualmente, quando se
necessita de um exemplo negativo para criticar um governo, partido ou
movimento de direita, o exemplo é buscado no nazifascismo ou em algum
país socialista. Jair Bolsonaro já foi comparado com Lênin, Hugo Chávez,
Mao Tsé-Tung e Fidel Castro. Na hagiografia do mundo construída pelo
liberalismo em que se conta: “era uma vez um mundo feliz para sempre e
democrático; um dia, porém, dois lobos maus – o nazismo e o comunismo –
tentaram devorar a Dona Democracia.” Mas o liberalismo consegue derrotar
os dois e Fim da História!
Para compreendermos de verdade porque
isso não tem nada a ver com autocrítica – não passando de uma expressão
do anticomunismo [2] – cabe buscar adentrar-se nos fundamentos dessa
ideologia caracterizando seus aspectos centrais, fundamentos teóricos e
seu balanço histórico da modernidade burguesa. Depois de feito esse
percurso, buscaremos pontuar o papel da falsificação histórica, retirada
dos horrores da história dos comunistas do seu quadro
histórico-concreto e pontuar a substancial ignorância que existe na
esquerda brasileira sobre produções recentes que derrubam vários mitos
da Guerra Fria. Terminado esse caminho, finalizamos com a conclusão.
A hagiografia do liberalismo, o recalque da questão colonial e o mito da não violência.
Marx ironiza as visões românticas sobre o
surgimento do capitalismo a partir do esforço individual de uma parte
mais laboriosa e disciplinada da população e diz que: “na história real,
como se sabe, o papel principal é desempenhado pela conquista, a
subjugação, o assassínio para roubar, em suma, a violência” (MARX, 2015,
p. 786). O que Marx combate é uma autoimagem do liberalismo, produzida
por seus próprios ideólogos e vencedora ao final do século XX; que
coloca a história do liberalismo como um caminho inexorável em defesa
das “liberdades individuais” e da democracia contra seus inimigos –
especialmente o movimento operário.
Na história real o liberalismo nasce
compreendendo que os direitos naturais não se estendiam aos escravos,
povos coloniais, mulheres e trabalhadores, como bem demonstra Losurdo
(2006, p. 13-42; 2017, p. 179-211). Ao contrário da visão muito
difundida, o liberalismo nasce organicamente conectado com a escravidão.
Não só grandes pensadores liberais, como Jonh Locke e Adam Smith eram
abertamente a favor do lucrativo negócio da escravidão colonial – sendo
Locke acionista numa empresa de tráfico de escravos; como também a
Revolução Gloriosa na Inglaterra e a Revolução Americana deram grande
impulso ao negócio da escravidão [3].
O direito de voto também era negado aos
trabalhadores. Immanuel Kant, Bernard Mandeville, Barão de Montesquieu,
Alexis de Tocqueville e muitos outros justificavam, a partir de diversos
argumentos, a restrição ao direito de voto para os operários. Um dos
argumentos mais comuns era de que os operários são “instrumentos de
trabalho falantes”, “máquinas bípedes”. Em suma, seres despidos da razão
e das luzes e incapaz de participar do poder. Muitos pensadores
liberais, como o Barão de Montesquieu, ainda sublinhavam que a
participação do povo nos negócios políticos tinha potencial de criar o
caos na República e ameaçar a propriedade privada (LOSURDO, 2004. p.
15-60). Por falar em Tocqueville, é oportuno lembrar que o autor, no seu
clássico “A democracia na América”, definiu os EUA como um exemplo de
democracia a despeito da escravidão dos negros, o extermínio dos povos
indígenas peles vermelhas e as formas de segregação racial que
enfrentavam os negros livres – a democracia na América era democrática
porque a raça dos senhores, os proprietários brancos, desfrutava de um
regime constitucional-representativo. (LOSURDO, 2006b, p. 83-86;
TOCQUEVILLE, 2005).
O alargamento da esfera dos portadores de
direitos naturais do homem, o fim do sistema colonial clássico, a
derrubada de regimes de apartheid, a luta pelo sufrágio universal e a
criação de uma democracia burguesa que não fosse um regime
constitucional com direitos políticos apenas para burguesia não foram
conquistas do liberalismo em defesa das liberdades individuais, mas
vitórias do movimento operário e das lutas de libertação nacional nas
colônias contra o liberalismo (LOSURDO, 2015) [4].
A primeira tese fundamental do
anticomunismo atual, portanto, é a exclusão do liberalismo da sua
história real, transformando-o em um mito, produzindo uma hagiografia
liberal. Esse mito está profundamente ligado a outro elemento central: o
recalcamento da questão colonial. A história da dominação colonial, ser
constitutivo do capitalismo, é apagada como se nunca tivesse existido
ou tratada de forma idílica, uma versão atualizada da ideologia do
“fardo civilizatório do homem branco” (LÊNIN, 2016; LOSURDO, 2017).
Podemos usar três exemplos ilustrativos
desse recalcamento da questão colonial na história do capitalismo. O
filósofo Norberto Bobbio defendia nos anos posteriores à Segunda Guerra
que os comunistas precisavam incorporar o liberalismo na sua teoria e
prática de governo nos países socialistas. Palmiro Togliatti, porém, faz
o seguinte questionamento: “Quando e em que medida foram aplicados aos
povos coloniais aqueles princípios liberais sobre os quais se diz
fundado o Estado inglês do século XIX?” E prossegue afirmando que “a
verdade é que a doutrina liberal […] está fundada numa discriminação
bárbara entre as criaturas humanas, que se alastra não só nas colônias,
mas na própria metrópole, como demonstra o caso dos negros
estadunidenses” (TOGLIATTI apud LOSURDO, 2018, p. 72).
Bobbio sabia que liberalismo e democracia
não são convergentes e que essa última foi uma construção das lutas do
movimento operário; ao mesmo tempo, pensava o liberalismo apagado da
questão colonial e absolutizava uma certa visão da história do
liberalismo na realidade europeia – balanço histórico em si também
mitificado [5]. Basta citar, por exemplo, a realidade colonial da
Irlanda. Já a filosofa alemã Hannah Arendt, no seu clássico livro “As
Origens do Totalitarismo” (ARENDT, [1949] 2012), começa falando do
imperialismo europeu em África e Ásia e mostra como instituições totais,
como o campo de concentração, foram uma criação da política colonial
dos Estados europeus. Eis que, misteriosamente, na terceira parte do seu
livro, o imperialismo colonial desaparece de cena e o totalitarismo diz
respeito apenas ao nazismo e a URSS (ARENDT, 2012, p. 415-611).
Progredindo nesse caminho, no seu livro
“Sobre a revolução” (ARENDT, [1965] 2011, p.92-158), Arendt afirma que a
Revolução Americana, ao contrário da Francesa, garantiu a “liberdade”
constituindo-se num processo revolucionário não violento que nunca
conheceu episódios como o terror jacobino. A Revolução Americana, por
não ter a questão social como centro, evitou os perigos totalitários
presentes no pensamento e na ação de uma tradição histórica que vai de
Robespierre, Marx, Lênin e encontra seu ápice em Stálin. O colonialismo
interno dos EUA com a “marcha para o oeste” e o extermínio dos peles
vermelhas, a ampliação da escravidão, o regime de supremacia racial e a
ação imperialista dos EUA nos anos pós revolução – expropriação de
territórios do México, anexação do Havaí, neocolonialismo nas Filipinas
etc. – não jogam peso na construção teórico-filosófica e no balanço
histórico da autora. Sai a análise histórica e assume o papel central a
apologia [6].
Só que a apologia em Arendt ainda é
indireta, tendo como fundamento o ocultamento. Já com o historiador
Niall Ferguson, há uma exaltação do colonialismo. Ferguson é um
saudosista do Império inglês e do colonialismo ocidental. Ele reconhece
vários de seus atos de barbárie, como os massacres, práticas de tortura
em massa, campos de concentração, segregação racial; mas a despeito de
tudo isso, celebra o Ocidente liberal como portador de valores
superiores de democracia, direitos humanos etc. (FERGUNSON, 2010; 2011)
[7]. Ainda atribui ao Ocidente o mérito inquestionável de ter fornecido
uma via à modernidade para os colonizados. Nesse sentido, por exemplo,
não importa se quase metade da população do Congo foi massacrada pelo
colonialismo belga; mesmo assim, a Bélgica representava a civilização
contra a barbárie nativa e possibilitou a esse povo “entrar na
modernidade” (LOSURDO, 2017, p. 253-308).
O apagamento da questão colonial e a apologia do imperialismo caminham pari passu
com o terceiro mito burguês: a não violência. Na visão ideológica do
capitalismo, a violência não é parte constitutiva e estrutural do
funcionamento desse sistema socioeconômico. Segundo Habermas (2011) e
Arendt (2011), a política é por essência uma ação humana mediada pela
comunicação e o consenso (ROUANET, 1987). No plano filosófico, está
excluída a violência que existe na história real. Para Joseph
Schumpeter, o capitalismo não tem qualquer necessidade de guerra e
violência, sendo esses fenômenos um resquício de elementos
pré-capitalistas [8]. A violência na política é uma perversão
introduzida pela tradição democrático-revolucionária que vai do
jacobinismo ao bolchevismo [9].
Os massacres nas metrópoles capitalistas
como a repressão à Comuna de Paris, o assassinato de militantes na
Revolução Alemã de 1918, as duas grandes guerras mundiais, o ciclo de
ditaduras empresais-militares na América Latina, massacres como o dos
comunistas na Indonésia e tantos outros episódios históricos não
perturbam a visão do liberalismo e da democracia burguesa como
essencialmente não-violentos (MAGRI, 2014, p. 76-84).
A partir desses três pilares é que toda
violência, repressão e aparecimento de instituições totais nas
experiências socialistas devem ser vistas. Não em um quadro
histórico-concreto em toda sua complexidade, mas como um derivado
necessário da ideologia marxista, ela própria portadora de um vírus
essencialmente totalitário – em suma, uma excepcionalidade histórica em
um mundo democrático e pacífico. Nesse sentido, é dever de todos os
comunistas que fizeram a devida “autocrítica” olhar toda sua história
como o ápice – ao lado do nazifascismo – da barbárie na modernidade.
Podemos ilustrar essa tese a partir da abordagem de duas figuras
históricas do primeiro plano durante a Segunda Guerra: Winston Churchill
e Josef Stálin.
O primeiro é considerado um grande
estadista e democrata. Churchill, todavia, foi um político que ganhou
notoriedade como um fanático defensor do império colonial inglês. Era um
entusiasta da white supremacy (supremacia branca), considerava os povos
colonizados como bárbaros, foi responsável por inúmeros massacres
coloniais na Índia, defendeu com obsessão o esmagamento militar da
Rússia Soviética e nutria muitas simpatias pelo fascismo italiano [10].
Segundo Gandhi, o governo inglês de Churchill era “hitleriano” e
aplicava na Índia tudo o que os nazistas defendiam [11].
A despeito de tudo isso, é possível, sem
quaisquer problemas, reivindicar Churchill como exemplo de democrata; já
qualquer menção a Stálin que não seja a mais apressada condenação, é
lida como adesão ao totalitarismo. Não importa se durante a liderança de
Stálin na URSS houve um firme apoio aos movimentos de libertação
nacional, combate ao racismo e ao apartheid; se a URSS, sob Stálin, foi o
primeiro país do mundo a criminalizar o racismo na Constituição de 1936
e a pôr em prática uma eficiente política educacional e cultural de
promoção da igualdade racial; ou se a URSS tornou-se, no auge do
stalinismo, um centro mundial de formação política, cultural e militar
totalmente gratuita para milhares de pessoas quebrarem as correntes do
colonialismo; ou se toda periferia do sistema capitalista, da África do
Sul passando pela Argélia, Vietnã até o gueto negro dos EUA, Stálin era
símbolo de libertação e emancipação (MAGRI, 2014; LOSURDO, 2010; SALEM,
2008) [12].
Considerar, concretamente, a dialética
entre emancipação e desemancipação nas experiências socialistas, é
interditado pela ideologia burguesa. Aliado a isso, os próprios momentos
de horror – e eles aconteceram! – devem ser retirados do quadro
histórico real e reduzidos a uma abordagem dedutiva da ideologia ou da
personalidade de tal ou qual líder. Nesse sentido, a repressão
stalinista é desconectada do permanente estado de exceção imposto à URSS
pelo imperialismo e seus atos de sabotagem, terrorismo, ameaça de
guerra, bloqueio econômico etc.
Um exemplo é suficiente para demonstrar
isso: quando os comunistas conseguem chegar ao poder na China, a cúpula
do Estado norte-americano além de ameaçar usar armas atômicas, impôs um
duro bloqueio econômico. Eles sabiam que como os comunistas não tinham
experiência na administração da economia urbana, o bloqueio econômico
junto com outros expedientes, como a pressão militar permanente,
conduziriam erros (POMAR, 2003). O “Grande Salto para Frente” nada mais
foi que uma tentativa desesperada de queimar etapas no desenvolvimento
econômico para superar as fragilidades da economia subdesenvolvida
sabotada pelo imperialismo. Frente aos erros e tragédias desse período
histórico da China, porém, essa “parte” da história incomoda, deve ser
apagada e tudo se resume a um instinto assassino dos comunistas.
Na guerra, a primeira vítima é a verdade.
No quadro hegemônico do balanço histórico
do movimento operário de comunista no século XX, não é exagerado
insistir na retirada das condições histórico-concretas onde os horrores
foram produzidos. Isso, evidentemente, não significa nenhum relativismo
moral, mas uma compreensão verdadeiramente científica da história [13]. A
requisição por um balanço histórico sério torna-se ainda mais urgente
com a percepção de que a ideologia dominante, na sua operação de escrita
da história, recorre à pura e simples mentira. Vejamos.
Os números fantásticos de mortos na URSS
que sobem a cada ano sem o mínimo de rigor científico são um bom exemplo
desse tipo de mentira [14]. Números de presos e mortos durante a
repressão no período maoísta também são inflados – mesmo fenômeno que já
atinge o jacobinismo francês (LOSURDO, 2018, p. 22). Mas, se nesse caso
existe um falseamento a partir de uma base real (mortes realmente
aconteceram), em outros, a mentira caminha livre de qualquer lastro na
realidade. Podemos citar alguns exemplos: a) o mito de que Stálin
confiava em Hitler e ele e a direção do PCUS ficaram surpresos com a
quebra do Pacto de não agressão germano-soviético (Medvedev, 2006, p.
291); b) a existência de um suposto “Holodomor” contra os ucrânios,
mentira fundamental para aproximar soviéticos e nazistas (cada um com
sua “Solução final”) (LOSURDO, 2010, p. 198); c) a fome planejada na
China que exterminou 90 milhões de camponeses (ARRIGHI, 2008, p. 375); e
d) o antissemitismo soviético como política de Estado (LOSURDO, 2010,
p. 217).
Guardado toda diversidade, no campo da
direita, qualquer questionamento a essas mentiras é lido como algo
inaceitável. No diverso campo da esquerda, no geral, é visto como um
relativismo moral de alguém que ainda não aceitou a necessária
autocrítica. Oras, recuperar a verdade histórica e mostrar, por exemplo,
que o gulag soviético não pode ser comparado ao campo de extermínio
nazista não significa dizer “o gulag era lindo”.
Nessa temática, a particularidade
brasileira é ainda mais grave. A chamada “nova historiografia
soviética”, que surge ao final dos anos de 1970 e ganha força na década
seguinte, conseguiu derrubar vários mitos anticomunistas construídos
durante a Guerra Fria. Essa historiografia, porém, simplesmente não tem
espaço no mercado editorial brasileiro e também não é do interesse dos
partidos de esquerda realizar sua divulgação [15]. Nesse sentido, as
obras de Geoffrey Roberts, J. Arch Getty, Robert W. Thurston e Annie
Lacroix-Riz, para citar alguns exemplos, continuam sendo desconhecidas
do público leitor e do conjunto da militância brasileira.
Conclusão: superar a autofobia e realizar uma verdadeira autocrítica.
Domenico Losurdo detalha um fenômeno
interessante: grupos sociais derrotados, muitas vezes na história,
passam a assimilar a ideologia, identidade e balanço histórico dos
vencedores. Essa é a autofobia. A negação da história e identidade em um
processo de fuga da história. Essa postura pode assumir uma feição de
“direita” e outra de “esquerda”. Vários ex-comunistas renegaram esse
passado vermelho, mesmo sendo dirigentes de partidos, e afirmaram que
“nunca foram comunistas” e assumiram os “valores universais” do
Ocidente: propriedade privada, democracia burguesa, OTAN etc. Outros,
porém, continuam se afirmando socialistas e lutam por uma sociedade
pós-capitalista; mas fazem isso guiados pela ideologia dominante.
Confundem, assim, autocrítica com autofobia, diz Losurdo.
Porém, apesar das assonâncias,
autocrítica e autofobia constituem duas posições antitéticas. Em seu
rigor, e até mesmo em seu radicalismo, a autocrítica exprime a
consciência da necessidade de acertar as contas com a própria história; a
autofobia é uma fuga vil desta história e da realidade da luta
ideológica e cultural que sob ela que ainda arde. Se a autocrítica é o
pressuposto da reconstrução da identidade comunista, a autofobia é
sinônimo de capitulação e de renúncia da identidade autônoma (LOSURDO,
2004, p. 15).
Nesse sentido, a verdadeira autocritica,
não deve renegar toda experiência do movimento comunista do século XX.
Posturas como defender um mítico “retorno a Marx” como se todos os
líderes, militantes, partidos e movimentos no século passado tivessem
traído a palavra sagrada revelada nas escrituras não passa de uma fuga
covarde da realidade e uma expressão da autofobia que redunda no
anticomunismo. Esse tipo de postura impede, por exemplo, de responder
uma pergunta fundamental que o século XX colocou aos revolucionários e
que algumas experiências socialistas, como Cuba, ainda procuram
responder: como garantir a democracia socialista e uma forma de
liberdade superior – a de tipo burguesa – numa situação de estado de
guerra permanente imposto pelo imperialismo e tendo que superar o
subdesenvolvimento e a dependência?
A verdadeira autocrítica pressupõe, portanto, um balanço crítico e científico sobre o nosso passado; combatendo a ideologia dominante, inserindo os erros de nossa história em um quadro histórico-concreto e valorizando o nosso legado emancipatório. Sem o movimento comunista, dentre outras coisas, o mundo provavelmente ainda conheceria o nazismo e a escravidão racial aberta.
A verdadeira autocrítica pressupõe, portanto, um balanço crítico e científico sobre o nosso passado; combatendo a ideologia dominante, inserindo os erros de nossa história em um quadro histórico-concreto e valorizando o nosso legado emancipatório. Sem o movimento comunista, dentre outras coisas, o mundo provavelmente ainda conheceria o nazismo e a escravidão racial aberta.
Pode parecer um truísmo – e de fato o é
-, mas os intelectuais e ideólogos burgueses não estão interessados em
divulgar e debater o legado emancipatório dos comunistas. Para eles,
como já dissemos, tudo não passa de uma série infinita de horrores. Se
não defendermos criticamente a nossa história, ninguém o fará. O nosso
passado será expropriado – como é a mais-valia dos trabalhadores – e o
futuro, interditado. Como bem disse Walter Benjamin na famosa tese 7
sobre o conceito de História: “O dom de despertar no passado as
centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido
de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E
esse inimigo não tem cessado de vencer”.
Notas:
[1] Jones Manoel – historiador, professor
de História da rede estadual da Bahia, mestre em Serviço Social,
educador popular e militante do PCB. Email para contato:
manoel_jones@hotmail.com
[2] É importante negritar que esse debate
não é uma escolástica acadêmica restrita ao ambiente universitário. Na
linguagem política de políticos profissionais, como Fernando Haddad e
Ciro Gomes (ambos candidatos a presidência em 2018, ficando,
respectivamente, com o segundo e o terceiro lugar do pleito), nos meios
de comunicação chamados de “progressistas”, como a Revista Carta Capital
e no jornal El País e em meios de informação cada vez mais responsáveis
pela “educação política” de uma parcela da população, como canais no
Youtube, a ideia de fugir de extremos iguais, extrema direita e extrema
esquerda, ambos violentos, autoritários e antidemocráticos – o comunismo
soviético o represente por excelência da “extrema esquerda” e o nazismo
da “extrema direita” – é cada vez mais forte. Essa ideologia tem íntima
relação com a hagiografia do liberalismo. Esperamos que ao final do
texto o leitor perceba claramente essa relação.
[3] “A escravidão não é algo que
permaneça não obstante o sucesso das três revoluções liberais; ao
contrário, ela conhece o seu máximo desenvolvimento em virtude desse
sucesso: “o total da população escrava nas Américas somava
aproximadamente 330.000 no ano de 1700, chegou a quase três milhões no
ano de 1800, até alcançar o pico de mais de 6 milhões nos anos 50 do
séc. XIX” (LOSURDO, 2006. p. 47).”
[4] Em 5 de junho de 1920, no Esboço
inicial das Teses sobre a Questão Nacional e Colonial, no II Congresso
da Internacional Comunista, Lênin expressa em termos teóricos o que, na
prática, foi um elemento central (não sem contradições e erros) da ação
dos comunistas no século XX: “não só em toda propaganda e agitação dos
partidos comunistas – tanto da tribuna parlamentar como fora dela –
devem ser incansavelmente desmascaradas as constantes violações da
igualdade das nações e das garantias dos direitos das minorias nacionais
em todos os Estados capitalistas, a despeito das suas constituições
‘democráticas’ […]; Segundo, é necessário uma ajuda direta de todos os
partidos comunistas aos movimentos revolucionários nas nações
dependentes ou que não gozam de igualdade de direitos (por exemplo, na
Irlanda, entre os negros da América etc.) e nas colônias” (LÊNIN, 2017,
p. 438).
[5] Importante pontuar que
posteriormente, já nos anos de 1970, Bobbio expressa uma história mais
crítica do liberalismo e reconhece suas cláusulas de exclusão e a
barbárie colonial. Exemplo disso é seu livro Política e Cultura, Editora
Unesp, [1977] 2015. Mesmo assim, porém, em situações concretas, como na
invasão de Granada, Panamá e nos atos terroristas dos EUA contra a
Nicarágua Sandinista, Bobbio manteve silêncio e apoiou a primeira guerra
[neocolonial] contra o Iraque. Esse último episódio chocou bastante os
alunos e seguidores de Bobbio dado sua imagem de “pacifista” e defensor
de uma ordem mundial baseada no direito internacional e não na força.
[6] Não é demais lembrar que Alexis de
Tocqueville, o famoso liberal francês, torna-se uma das grandes
referências teóricas de Hannah Arendt e é notória sua influência no
livro “Sobre a Revolução”. Tocqueville, que dentre outras proezas, foi
um defensor total da conquista colonial francesa no Mabreg e da
crucificação colonial da China.
[7] A ideologia da superioridade
civilizatória do europeu comparece, inclusive, em vários sujeitos
políticos – intelectuais, veículos de comunicação, partidos políticos
etc. – identificados com a esquerda. Ano passado, durante uma entrevista
ao jornal espanhol El país, disse o filósofo Slavoj Žižek: “aceitemos
que as pessoas venham para cá porque, apesar de toda a corrupção,
continuamos oferecendo ao mundo aquele que talvez seja o grande modelo
de bem-estar relativo, um único modelo que combina bem-estar e
liberdade, o melhor até agora na história mundial. Portanto, deveríamos
estar orgulhosos do nosso destino europeu. O fantástico da nossa
tradição democrática é que a imperfeição está dentro do sistema, faz
parte da capacidade da nossa democracia de ser crítica consigo mesma. É
um sistema único, que inclui a autocrítica.” A entrevista completa pode
ser acessada nesse link: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/14/cultura/1544788158_128530.html
[8] Para uma crítica à visão de
Schumpeter, presente em “The Sociology of Imperialism” (A sociologia do
imperialismo), ver o também já citado Losurdo, 2018, p. 155-158.
[9] “Neste aspecto, é surpreendente como
boa parte das éticas contemporâneas, tão em voga nas academias, busca
encontrar solução para os problemas da sociedade contemporânea, a partir
de pretensos princípios morais universalizáveis, sem considerar a sua
viabilidade junto à base econômica-material que move a sociedade civil.
Como se fosse possível construir-se valores morais justos sobre uma
infraestrutura injusta [e eu acrescendo: violenta]. É o caso das éticas
discursivas de K. Apel e J. Habermas e da teoria da justiça de Jonh
Rawls” (VIEIRA, 2006, p. 16)
[10] Churchill era um grande admirador de
Mussolini, que chegara ao poder em Itália em 1922. Saudava tanto o
anticomunismo de Mussolini, quanto a sua forma autoritária de organizar e
disciplinar os italianos. Visitou a Itália em 1927 […] e encontrou-se
com Mussolini, sobre quem proferiu rasgados elogios numa conferência de
imprensa […]. ‘Se fosse italiano, estou seguro que estaria de todo o
coração ao vosso lado, desde o início até ao fim, na vossa luta
triunfante contra os apetites e paixões animalescas do Leninismo’. E
sobre as simpatias de Churchill pelos golpistas espanhóis escreve
Ponting: “todas as suas simpatias estavam com Franco e o lado
nacionalista. […] Descreveu o governo legítimo e a parte republicana
como ‘um proletariado pobre e atrasado que exige o derrube da Igreja, do
Estado e da propriedade e a instalação dum regime Comunista’. Contra
eles erguiam-se ‘forças patrióticas, religiosas e burguesas, sob o
comando do exército […] em marcha para reestabelecer a ordem através da
instauração duma ditadura militar’” – CADIMA, Jorge. Nos 70 anos da
vitória de 1945, 2015. Disponível no link: https://pcb.org.br/portal2/8195/nos-70-anos-da-vitoria-de-1945/
[11] “Na Índia, temos um governo
hitleriano, ainda que camuflado em termos mais brandos […] Hitler foi o
pecado da Grã-Bretanha. Hitler é apenas uma resposta ao imperialismo
britânico” (GANDHI apud LOSURDO, 2010, P. 191).
[12] “A URSS de Stalin influencia
poderosamente a luta dos afro-americanos (e dos povos coloniais) contra o
despotismo racial. No Sul dos EUA se assiste a um fenômeno novo e
preocupante do ponto de vista da casta dominante: é a crescente
‘imprudência’ dos jovens negros. Estes, graças aos comunistas, começam,
de fato, a receber o que o poder teimosamente lhes negava, a saber, uma
cultura que vai muito além da instrução elementar tradicionalmente
transmitida aos que estão destinados a fornecer trabalho semiescravo a
serviço da raça dos senhores. Agora, porém, nas escolas organizadas pelo
partido comunista no norte dos Estados Unidos ou nas escolas de Moscou,
na URSS de Stalin, os negros se empenham em estudar economia, política,
história mundial; interrogam essas disciplinas para compreender também
as razões da dura sorte reservada a eles num país que se comporta como
campeão da liberdade” (Losurdo, 2010, p. 280-281)
[13] A interessante destacar que as duas
principais revoluções liberais hoje defendidas pela burguesia, a
Revolução Inglesa e a Americana, não são moralizadas por sua violência
ou elementos de barbárie, como a manutenção e ampliação da escravidão. O
olhar moralizador e de horror é reservado apenas às revoluções
socialistas e anticoloniais. Professor que sou, debatendo com colegas de
profissão, quando apresento a contra-história das revoluções liberais, a
resposta que sempre escuto era “isso era a ideologia da época”. Ou
seja, a Revolução Americana, por exemplo, está livre de qualquer juízo
ético, político e moral, afinal, era “assim que se pensava no período”.
[14] Jean Salem (2008, p. 30-32) mostra
como essa lógica se desenvolve na França. Um cálculo que começa com 10
milhões de mortos na URSS e consegue, tranquilamente, alcançar a casa
dos 110 milhões de mortos já anos de 1970 (2008, p. 27).
[15] As exceções, como as traduções de Domenico Losurdo e de Wendy Goldman, apenas confirmam a regra.
Referências.
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_______________. Sobre a revolução. Companhia das Letras, São Paulo, 2011.
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in LavraPalavra.com
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