Desisto
de tentar escrever sobre a atualidade do Brexit. Nessa matéria, espero
que seja concedido o adiamento a Theresa May e que esta se consiga
sentar com Jeremy Corbyn para os dois chegarem a um acordo. Os dois
precisam, porque este processo está a erodir todo o sistema político
britânico. Só quando esta fase estiver ultrapassada é que o Reino Unido
poderá voltar a debater de forma mais clara o seu futuro. O que implica
saber que futuro será esse. Estou convencido, mas posso estar enganado,
que o Brexit é inevitável. Com acordo, sem acordo, com um mau acordo.
Até estou convencido, mas posso também estar enganado, que se houvesse
um novo referendo o “leave” voltaria a vencer. Os arrependidos que
existiam seriam facilmente substituídos por aqueles que se sentiriam
insultados com o desrespeito pelo resultado do referendo anterior. Não
se impressionem muito com as manifestações em Londres. Como se percebeu
no referendo, Londres não é a Inglaterra. É Londres.
Falemos
então do futuro. É impressionante como as ideias mais absurdas se
conseguem instalar como evidências indiscutíveis. E a que está instalada
é esta: o Reino Unido irá entrar, depois do Brexit, num buraco negro.
Já aqui caricaturei: será uma nova Coreia do Norte, fechada ao mundo; as
noites de Londres serão tão tristes e perigosas como as de Caracas, os
fluxos comerciais irão aproximar-se dos de Cuba. Retirem o exagero a
isto mas não a histeria.
É
estranho que esta saída do Reino Unido da órbita terrestre não se tenha
começado a sentir de forma aguda na iminência de um desenlace que parece
cada vez mais inevitável. Ao contrário do que seria normal em vésperas
de uma catástrofe anunciada, a economia não veio por aí abaixo depois do
referendo. E o saldo migratório, tendo caído para cidadãos comunitários
(mas continua a ser positivo, mostrando que o Reino Unido ainda é mais
atrativo para os europeus do que a Europa é atrativa para os
britânicos), até melhorou para os cidadãos extracomunitários. O mundo
que vive fora da Europa parece continuar a acreditar que há futuro para
os britânicos.
Não sei,
suspeito que ninguém sabe ao certo, o que acontecerá ao Reino Unido fora
de União Europeia. Sei que o discurso apocalíptico que domina a
inteligência das capitais europeias é revelador do estado de negação em
que vivemos sobre a real relevância que ainda temos
O
equívoco resulta de haver muita gente que acredita que a União Europeia
subsistiu os seus estados membros e que a atratividade de cada um deles
depende exclusivamente da sua integração neste espaço. Esta convicção
pode ser verdadeira para estados pobres (e mesmo isso mereceria um
debate cuidadoso), não o é seguramente para países como o Reino Unido.
Custará a acreditar em Bruxelas, mas a história dos europeus não começou
com a assinatura do Tratado de Maastricht. Mesmo antes do Tratado de
Roma havia Europa.
O Reino
Unido tem um antigo império. E isso conta muito. Será difícil para um
alemão percebê-lo, mas nós compreendemos bem. Somos um país irrelevante e
conseguimos, apesar de tudo, manter relações comerciais relevantes com
as ex-colónias. Incluindo ex-colónias com muitos recursos, como Angola.
Imaginem um país como o Reino Unido, com os laços políticos, económicos,
culturais e estratégicos que foi mantendo. Depois há a língua. Que
continuará a ser tão relevante que até se manterá inevitavelmente como a
língua franca na União depois deles saírem de lá. Com a desculpa que um
país de menos de cinco milhões (a Irlanda) a fala. A centralidade de
Londres, que não resulta apenas do poder de Londres, é de tal forma
evidente e duradoura que se estranha que alguém acredite que
desaparecerá de um dia para o outro.
Houve
um tempo em que se falava da transferência da City para Frankfurt,
Paris ou Luxemburgo. Mesmo que haja uma quebra inicial, ainda alguém
acredita nisso? Alguém acha que para o poder financeiro russo ou
asiático isso é, pelo menos em muito tempo, uma possibilidade? E acham
que os Estados Unidos vão dispensar acordos comerciais com o seu aliado
de sempre? Acreditam que manter uma relação próxima com Londres será um
capricho de Donald Trump e que os seus sucessores vão ignorar os
ingleses para não melindrar os alemães ou franceses? E os 53 países da
Commonwealth vão cortar as relações preferenciais que mantêm com os
britânicos? E o inglês vai deixar de ser a língua mundial? Acham que
vamos passar a ver séries francesas, a ouvir música alemã e a rir-nos
com o humor holandês? Acham que Londres deixará de ser, só porque o país
abandonou o mercado único, uma das principais capitais culturais e
financeiras do mundo? Em que mundo de fantasia vive esta Europa para
julgar que a tábua rasa que tentou fazer da História, sem sucesso,
acontecerá com a Inglaterra.
Não
tenho dúvidas que as coisas serão bastante difíceis para os ingleses.
Também tenho poucas dúvidas, apesar do discurso autossuficiente com um
boa dose de ressentimento que se ouve na Europa, que as coisas também
serão difíceis na União. Até porque o peso relativo da Alemanha vai
aumentar e com ele a sua tentação imperial. Mas parece-me que o mais
provável é o Reino Unido sobreviver a isto melhor do que por aí se
escreve. E isto não quer dizer que eu ache que o passo que os ingleses
estão a dar seja o mais certo. Quer apenas dizer que o anúncio do
colapso inglês parece-me manifestamente exagerado.
A
ideia de que o Reino Unido iniciou uma inexorável caminhada para o
abismo que determinará o fim da sua centralidade resulta de cegueira
europeia sobre o que está a acontecer no mundo. A decadência do Reino
Unido, a acontecer, corresponderá à decadência de toda a Europa. Não
começou com o Brexit. Sempre que alguém vem de uma viagem à China
explica onde está a origem dessa decadência e como ainda estamos no
começo.
Podemos dizer que o Reino Unido ficará
menos preparado para este embate fora da União do que estaria dentro
dela. Não tenho suficiente confiança em quem dirige os destinos da UE
para achar que isso seja verdade. Sei que ao sair da UE o Reino Unido
não se enfiou num buraco escuro longe do mundo. Porque nem a sua
centralidade financeira, política e cultural se devia à UE, nem é
provável que alguma vez se viesse a dever. Não sei, suspeito que ninguém
sabe ao certo, o que acontecerá ao Reino Unido fora da União Europeia.
Sei que o discurso apocalíptico que domina a inteligência das capitais
europeias é revelador do estado de negação em que vivemos sobre a real
relevância que ainda temos.
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