«Do que colhemos dos
livros que lemos às promessas do que podemos colher dos que “ainda” não
lemos e estão num perpétuo estado de graça, numa eterna gravidez repleta
de tudo o que ainda nos poderão dizer, Bruno Vieira Amaral escreve
sobre esse objeto chamado livro.»
«Qualquer
pessoa que tenha em casa uma biblioteca, por pequena que seja, já teve
de responder à fatídica pergunta do visitante que, intrigado pela razão e
utilidade de tantos volumes, pretende saber quantos é que já lemos. A
resposta “menos de metade”, que é a mais equilibrada e, com toda a
probabilidade, a mais honesta, apazigua-o porque vê nos outros livros,
os que ainda não foram lidos, provas de um arrogante exibicionismo
intelectual do qual ele, filisteu impenitente, se encontra a salvo.
Afinal, para quê ter tantos livros em exposição quando se leu menos de
metade?
Um livro por ler, arrumado na estante,
conta também a história das aproximações e recuos, da procrastinação e
olímpicas desatenções, que é, em parte, a coroa da nossa vida de
leitores
Haverá alguma justeza nesse raciocínio
contabilístico e eu próprio, ao contemplar a minha modesta biblioteca,
já me perguntei se preciso mesmo daqueles livros ou se não faria melhor
em doar alguns a uma biblioteca pública ou a algum jovem e ávido leitor.
Acontece que os livros que ainda não lemos e mantemos perto de nós são
possibilidades em aberto. Tê-los à mão tranquiliza-nos, como se
renovássemos em permanência a promessa de que um dia ainda os iremos
ler. Esse dia poderá nunca chegar, mas um livro por ler, arrumado na
estante, conta também a história das aproximações e recuos, da
procrastinação e olímpicas desatenções, que é, em parte, a coroa da
nossa vida de leitores.
Os livros que perfazem a
fileira mais vasta dos “por ler” permanecem num perpétuo estado de
graça, numa eterna gravidez repleta de tudo o que ainda nos poderão
dizer. Por isso, queremo-los perto de nós, como uma garantia, um seguro,
um instrumento a usar em caso de emergência
Passamos
por alguns livros que depressa esquecemos. Se, anos depois, nos pedirem
para lembrar uma frase, uma situação, uma personagem, seremos
provavelmente traídos pela memória. E, no entanto, de um ponto de vista
contabilístico, o livro estaria no rol dos “lidos”, burocraticamente
despachado. Porém, os livros que perfazem a fileira mais vasta dos “por
ler” permanecem num perpétuo estado de graça, numa eterna gravidez
repleta de tudo o que ainda nos poderão dizer. Por isso, queremo-los
perto de nós, como uma garantia, um seguro, um instrumento a usar em
caso de emergência.
Outra razão para nos apegarmos
aos livros – lidos ou por ler – é por acreditarmos, com uma boa dose de
superstição e fetichismo, que naqueles objetos cabe parte da nossa
história pessoal, são provas físicas de certos capítulos da nossa
biografia imaginada. Os melhores presentes que recebi, aqueles que mais
prazer me deram, foram livros. Certa vez, após uma breve visita aos meus
tios do Porto, regressei a casa com três volumes em capa dura da poesia
de Fernando Pessoa que lhes decoravam a estante. Tê-los aqui ao meu
lado no momento em que escrevo estas linhas transporta-me para essa
época longínqua em que os livros eram, para mim, um bem raro e, em razão
da minha ignorância, tudo o que lia provocava a reverberação límpida
das ideias novas. Receber um livro tinha, como tal, tanto de religioso
como de erótico.
A volúpia da posse não deve ser
negligenciada. Anos depois, ofereceram-me como presente natalício uma
edição completa dos romances de Eça de Queirós. Como já tinha lido
alguns dos romances, o entusiasmo deveu-se não tanto à antecipação de
uma descoberta como ao êxtase da posse de um objeto desejado. De alguma
forma, ter lido os livros não era suficiente. Era preciso possuí-los
fisicamente. Por essa razão, guardo ainda livros que sinalizam na minha
memória acontecimentos, pessoas, experiências de leitura que se tornam
mais reais por saber do paradeiro deles, por poder contemplá-los e
folheá-los a qualquer momento.
Os livros
perdidos contam a dupla história empolgante da sua posse e da sua
incalculável perda. Vivemos mortificados pela possível recuperação
porque sabemos, no íntimo, que não podem ser substituídos
Lembro-me
que foi por volta do Carnaval de 2000 que terminei a leitura de
“Asfalto Selvagem”, de Nelson Rodrigues, sentado numa esplanada
ribeirinha com Lisboa ao fundo. Hoje, não sei do livro. Creio tê-lo
emprestado a alguém que não mo devolveu e, por um estranho efeito, o
desaparecimento do objeto tornou menos nítida, mais nebulosa, a
experiência de leitura e as memórias a ela associadas. Menos nítida não
significa menos intensa. Pelo contrário. Como acontece com as relíquias
perdidas, a cratera da sua ausência tornou tudo à sua volta mais
imponderável e mítico. Os livros perdidos contam a dupla história
empolgante da sua posse e da sua incalculável perda. Vivemos
mortificados pela possível recuperação porque sabemos, no íntimo, que
não podem ser substituídos.
Isto porque não há dois
livros iguais (é também por isso que os colecionamos e preservamos).
Tenho ali na estante uma edição de “Lavoura Arcaica”, de Raduan Nassar,
em tudo igual à primeira que comprei, li e, mais tarde, perdi. Mas
sempre que lhe pego não posso evitar a sensação de que se trata de um
livro-impostor, um livro a fazer-se passar por outro, um livro adquirido
para suprir uma lacuna intolerável. Não me posso enganar: sei bem que o
livro real é o outro, o que perdi. O meu “Outono do Patriarca” também é
diferente de todos os outros exemplares que a Publicações
Europa-América mandou imprimir em 1978. Este traz com ele a tarde em que
o comprei no Cais do Sodré, à saída do Metro, a luz cálida que entrava
pela janela do barco quando o comecei a ler, a memória das casas que
habitámos, o conhecimento das minhas mãos.
Nesse
sentido, um livro perdido, um livro que, por generosidade, se furtou ao
nosso contacto, um livro que alguém, por despeito, atirou ao lixo, será
sempre uma página dolorosamente arrancada de nós, mas nunca esquecida
Um
amigo contou-me esta história exemplar e didática: quando ainda
namorava com a que viria a ser sua mulher, ofereceu-lhe um livro de
poemas de Pablo Neruda. Casaram-se, viveram juntos alguns anos e, no dia
em que decidiram separar-se, o meu amigo encontrou o livro amachucado
no caixote do lixo. Um tal gesto dispensaria, a meu ver, a ida à
conservatória para formalizar o divórcio. Tudo acabara ali,
definitivamente, com um livro de amor atirado para o lixo e duvido que o
meu amigo tivesse sofrido mais se a mulher, perpetrando uma dessas
vinganças de uma imaginação monótona, lhe tivesse atirado as roupas pela
janela ou lhe tivesse riscado a porta do carro. É que aquele livro era
único. Não havia outro igual.
Em “Não Contem com o
Fim dos Livros”, Umberto Eco contava como a recolha e preservação de
livros nos mosteiros era a forma mais segura de os salvar, por exemplo,
das invasões bárbaras e dos seus fogos punitivos. Guardar livros era o
mesmo que salvá-los. Hoje, as coleções privadas, as nossas bibliotecas
pessoais, destinam-se menos a salvar os livros do que a salvar-nos a nós
próprios. Numa época de produção industrial, é a nossa relação pessoal
com eles que os torna únicos. Nesse sentido, um livro perdido, um livro
que, por generosidade, se furtou ao nosso contacto, um livro que alguém,
por despeito, atirou ao lixo, será sempre uma página dolorosamente
arrancada de nós, mas nunca esquecida. É por isso que os guardamos, que
nos afeiçoamos a eles, como se fossem a parte escrita e encadernada da
nossa existência.» in Expresso Diário
Sem comentários:
Enviar um comentário