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quarta-feira, 24 de abril de 2019

«Do que colhemos dos livros que lemos às promessas do que podemos colher dos que “ainda” não lemos e estão num perpétuo estado de graça, numa eterna gravidez repleta de tudo o que ainda nos poderão dizer, Bruno Vieira Amaral escreve sobre esse objeto chamado livro.»

«Qualquer pessoa que tenha em casa uma biblioteca, por pequena que seja, já teve de responder à fatídica pergunta do visitante que, intrigado pela razão e utilidade de tantos volumes, pretende saber quantos é que já lemos. A resposta “menos de metade”, que é a mais equilibrada e, com toda a probabilidade, a mais honesta, apazigua-o porque vê nos outros livros, os que ainda não foram lidos, provas de um arrogante exibicionismo intelectual do qual ele, filisteu impenitente, se encontra a salvo. Afinal, para quê ter tantos livros em exposição quando se leu menos de metade?
Um livro por ler, arrumado na estante, conta também a história das aproximações e recuos, da procrastinação e olímpicas desatenções, que é, em parte, a coroa da nossa vida de leitores
Haverá alguma justeza nesse raciocínio contabilístico e eu próprio, ao contemplar a minha modesta biblioteca, já me perguntei se preciso mesmo daqueles livros ou se não faria melhor em doar alguns a uma biblioteca pública ou a algum jovem e ávido leitor. Acontece que os livros que ainda não lemos e mantemos perto de nós são possibilidades em aberto. Tê-los à mão tranquiliza-nos, como se renovássemos em permanência a promessa de que um dia ainda os iremos ler. Esse dia poderá nunca chegar, mas um livro por ler, arrumado na estante, conta também a história das aproximações e recuos, da procrastinação e olímpicas desatenções, que é, em parte, a coroa da nossa vida de leitores.
Os livros que perfazem a fileira mais vasta dos “por ler” permanecem num perpétuo estado de graça, numa eterna gravidez repleta de tudo o que ainda nos poderão dizer. Por isso, queremo-los perto de nós, como uma garantia, um seguro, um instrumento a usar em caso de emergência
Passamos por alguns livros que depressa esquecemos. Se, anos depois, nos pedirem para lembrar uma frase, uma situação, uma personagem, seremos provavelmente traídos pela memória. E, no entanto, de um ponto de vista contabilístico, o livro estaria no rol dos “lidos”, burocraticamente despachado. Porém, os livros que perfazem a fileira mais vasta dos “por ler” permanecem num perpétuo estado de graça, numa eterna gravidez repleta de tudo o que ainda nos poderão dizer. Por isso, queremo-los perto de nós, como uma garantia, um seguro, um instrumento a usar em caso de emergência.
Outra razão para nos apegarmos aos livros – lidos ou por ler – é por acreditarmos, com uma boa dose de superstição e fetichismo, que naqueles objetos cabe parte da nossa história pessoal, são provas físicas de certos capítulos da nossa biografia imaginada. Os melhores presentes que recebi, aqueles que mais prazer me deram, foram livros. Certa vez, após uma breve visita aos meus tios do Porto, regressei a casa com três volumes em capa dura da poesia de Fernando Pessoa que lhes decoravam a estante. Tê-los aqui ao meu lado no momento em que escrevo estas linhas transporta-me para essa época longínqua em que os livros eram, para mim, um bem raro e, em razão da minha ignorância, tudo o que lia provocava a reverberação límpida das ideias novas. Receber um livro tinha, como tal, tanto de religioso como de erótico.
A volúpia da posse não deve ser negligenciada. Anos depois, ofereceram-me como presente natalício uma edição completa dos romances de Eça de Queirós. Como já tinha lido alguns dos romances, o entusiasmo deveu-se não tanto à antecipação de uma descoberta como ao êxtase da posse de um objeto desejado. De alguma forma, ter lido os livros não era suficiente. Era preciso possuí-los fisicamente. Por essa razão, guardo ainda livros que sinalizam na minha memória acontecimentos, pessoas, experiências de leitura que se tornam mais reais por saber do paradeiro deles, por poder contemplá-los e folheá-los a qualquer momento.
Os livros perdidos contam a dupla história empolgante da sua posse e da sua incalculável perda. Vivemos mortificados pela possível recuperação porque sabemos, no íntimo, que não podem ser substituídos
Lembro-me que foi por volta do Carnaval de 2000 que terminei a leitura de “Asfalto Selvagem”, de Nelson Rodrigues, sentado numa esplanada ribeirinha com Lisboa ao fundo. Hoje, não sei do livro. Creio tê-lo emprestado a alguém que não mo devolveu e, por um estranho efeito, o desaparecimento do objeto tornou menos nítida, mais nebulosa, a experiência de leitura e as memórias a ela associadas. Menos nítida não significa menos intensa. Pelo contrário. Como acontece com as relíquias perdidas, a cratera da sua ausência tornou tudo à sua volta mais imponderável e mítico. Os livros perdidos contam a dupla história empolgante da sua posse e da sua incalculável perda. Vivemos mortificados pela possível recuperação porque sabemos, no íntimo, que não podem ser substituídos.
Isto porque não há dois livros iguais (é também por isso que os colecionamos e preservamos). Tenho ali na estante uma edição de “Lavoura Arcaica”, de Raduan Nassar, em tudo igual à primeira que comprei, li e, mais tarde, perdi. Mas sempre que lhe pego não posso evitar a sensação de que se trata de um livro-impostor, um livro a fazer-se passar por outro, um livro adquirido para suprir uma lacuna intolerável. Não me posso enganar: sei bem que o livro real é o outro, o que perdi. O meu “Outono do Patriarca” também é diferente de todos os outros exemplares que a Publicações Europa-América mandou imprimir em 1978. Este traz com ele a tarde em que o comprei no Cais do Sodré, à saída do Metro, a luz cálida que entrava pela janela do barco quando o comecei a ler, a memória das casas que habitámos, o conhecimento das minhas mãos.
Nesse sentido, um livro perdido, um livro que, por generosidade, se furtou ao nosso contacto, um livro que alguém, por despeito, atirou ao lixo, será sempre uma página dolorosamente arrancada de nós, mas nunca esquecida
Um amigo contou-me esta história exemplar e didática: quando ainda namorava com a que viria a ser sua mulher, ofereceu-lhe um livro de poemas de Pablo Neruda. Casaram-se, viveram juntos alguns anos e, no dia em que decidiram separar-se, o meu amigo encontrou o livro amachucado no caixote do lixo. Um tal gesto dispensaria, a meu ver, a ida à conservatória para formalizar o divórcio. Tudo acabara ali, definitivamente, com um livro de amor atirado para o lixo e duvido que o meu amigo tivesse sofrido mais se a mulher, perpetrando uma dessas vinganças de uma imaginação monótona, lhe tivesse atirado as roupas pela janela ou lhe tivesse riscado a porta do carro. É que aquele livro era único. Não havia outro igual.
Em “Não Contem com o Fim dos Livros”, Umberto Eco contava como a recolha e preservação de livros nos mosteiros era a forma mais segura de os salvar, por exemplo, das invasões bárbaras e dos seus fogos punitivos. Guardar livros era o mesmo que salvá-los. Hoje, as coleções privadas, as nossas bibliotecas pessoais, destinam-se menos a salvar os livros do que a salvar-nos a nós próprios. Numa época de produção industrial, é a nossa relação pessoal com eles que os torna únicos. Nesse sentido, um livro perdido, um livro que, por generosidade, se furtou ao nosso contacto, um livro que alguém, por despeito, atirou ao lixo, será sempre uma página dolorosamente arrancada de nós, mas nunca esquecida. É por isso que os guardamos, que nos afeiçoamos a eles, como se fossem a parte escrita e encadernada da nossa existência.»  in Expresso Diário

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