Deixo
para o meu texto desta sexta-feira, na edição semanal do Expresso, as
razões da greve dos motoristas de materiais perigosos, os desafios e
perigos que ela nos deixou e como podemos estar a caminhar para a
implosão do sindicalismo. Hoje, com menos contexto, fico-me pelo dilema
em que ficam o Governo, os patrões e os outros sindicatos.
Comecemos
pelos factos: os sindicatos de transportes, incluindo a maior federação
sindical, que representa todos e não apenas um pequeno grupo
especializado, chegaram a acordo com a ANTRAM em outubro. Um acordo que
se esperava há 21 anos. Foi uma vitória. Não estará lá tudo o que o
camionistas querem, mas foi um primeiro passo. O sindicato que agora faz
greve não foi envolvido porque não existia. Foi criado um mês depois e
formalizado em janeiro. Nasceu de um espírito que não é novo e que já
criou distorções graves na TAP (pilotos) e na CP (maquinistas): um
pequeno grupo que desempenha funções que podem paralisar um país
separa-se dos restantes por achar que sozinho pode conseguir mais para
si. Não preciso de dizer que isto é o oposto do que anima a
solidariedade sindical.
Uma greve tem de atender
ao princípio da proporcionalidade. Podem os interesses de 800 pessoas
afetar de forma tão forte a vida de 10 milhões? Pode o sindicalismo
sobreviver ao fim da solidariedade entre trabalhadores?
Quando
o novíssimo sindicato, dirigido por um empresário e por um advogado,
marcou a greve, o Governo reuniu as partes e definiram-se os serviços
mínimos. Logo no primeiro dia esses serviços mínimos foram
desrespeitados por um sindicato totalmente estranho a regras e hábitos
estabelecidos. Decretada a requisição civil para o cumprimento desses
serviços mínimos, também eles foram ignorados, o que deixa as
autoridades numa situação quase impossível de resolver sem o recurso a
soluções extremas. Que não costumamos testemunhar porque os sindicatos
que conhecemos querem preservar o direito à greve e prezam o apoio
popular.
Nesta parte, as
críticas ao Governo são injustas. O Governo não podia prever que os
serviços mínimos seriam desrespeitados. Quando isso se verificou,
demorou 24 horas a reagir. Também não poderia prever que até a
requisição civil seria desrespeitada. Demorou 48 horas a conseguir pôr
um ponto final na greve. Na gestão dos acontecimentos fez o que poderia
ser feito num conflito que é entre privados e perante um sindicato que
desrespeita a lei. O preço que pode ser pago para travar esta greve na
Páscoa por via negocial é que pode vir a ser alto.
O
que está em cima da mesa não é a reabertura, com todos os sindicatos
dos camionistas, do acordo assinado em outubro. O que está em cima da
mesa é um acordo especial com um grupo de pessoas que, tirando uma ou
outra especificidade, sofre do mesmo desgaste e das mesmas condições de
trabalho que os colegas que olimpicamente ignoram. As cedências não
podem ser em mais do que nas atividades que sejam específicas a este
grupo. Isso seria abrir uma frente de conflito com todos os restantes
camionistas. Se se premiar o poder deste sindicato, os associados de
outros sindicatos e até de outros sectores concluirão duas coisas: que o
sindicalismo mais eficaz é o que isola pequenos grupos e deixa cada um
deles a tratar de si – o que só é válido para quem tenha o poder de
parar um país e os outros que se lixem – e que o incumprimento das
regras mais básicas do sindicalismo e da greve compensam. Do lado dos
patrões, também se cria um problema: a negociação passa a ser
desvalorizada. Chegado a um acordo, nada garante que não nasça um
sindicato de um pequeno grupo que faz tudo voltar ao princípio. Cria um
ambiente de incerteza que torna a negociação impossível.
Os
efeitos rápidos desta greve são devastadores mas ela podia ser justa.
Para a avaliar é necessário atender ao princípio que deve nortear tudo
na ação política e social: o da proporcionalidade. Podem os interesses
de 800 pessoas afetar de forma tão forte a vida de 10 milhões? Pode um
processo negocial que durou meses e que resultou num acordo histórico ao
fim de 21 anos ser destruído porque uma pequena parte dos trabalhadores
que tem a faca e o queijo na mão quer mais só para si? Pode o
sindicalismo sobreviver ao fim do princípio básico de solidariedade
entre trabalhadores? Pode o direito à greve ser defendido se não
corresponder a um compromisso entre os diretos dos trabalhadores e o bem
comum e a um respeito pela lei que o enquadra? É na resposta honesta a
estas perguntas que têm a minha posição sobre esta greve e sobre as
cedências a que ela devem ser feitas. Sabendo que só sou ativamente
contra um tipo de greves: as que ignoram a solidariedade de classe e
fazem mal ao sindicalismo. Essas são contra todos nós.
in Expresso Diário on-line
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