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quarta-feira, 17 de abril de 2019



Daniel Oliveira

Quem parte e reparte?

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Sobre a história das famílias, tenho sublinhado a pequenez da nossa elite e a brutal desigualdade da nossa sociedade como principal fator para a endogenia nos vários círculos de poder. Em todos os círculos de poder e não apenas na política e nos partidos. Já foi muito pior do que hoje. Mas continuamos a ser um dos países mais desiguais da Europa. E era aí, e não em leis inúteis para entreter campanhas eleitorais, que devia estar o debate político que nos interessa.
Na semana passada, o “Diário de Notícias” fez umas contas interessantes. Que mostram como funcionam os mecanismos de perpetuação e aprofundamento das desigualdades. Segundo o DN, os presidentes executivos (CEO) das empresas do PSI20 (as maiores cotadas em bolsa) ganharam, em 2018, 52 vezes mais do que os trabalhadores que dirigem. Receberam, em média, 1,1 milhões de euros. Isto são valores brutos e incluem, além dos salários, prémios de desempenho e contribuições para planos de pensões. Mas não estão aqui dividendos dos administradores que são simultaneamente acionistas.
Em 2014, os CEO das empresas do PSI20 recebiam 33 vezes mais do que os seus trabalhadores. Agora recebem 52 vezes mais. Porque de 2014 a 2018 os salários dos administradores aumentaram muito mas o custo médio com os funcionários manteve-se quase inalterado. O que quer dizer que aos primeiros sinais de recuperação económica os gestores trataram apenas de si
Os trabalhadores destas mesmas empresas receberam, em média, 21,1 mil euros por ano, seguindo os mesmos critérios. Os valores dos custos com pessoal incluem funcionários noutros países, que ocupam cerca de metade dos postos de trabalho. Ainda assim, a diferença é abissal. Sobretudo quando também não estão aqui os salários dos trabalhadores que trabalham para estas empresas através de call centers e subcontratações, o que em empresas como a EDP, por exemplo, é bastante significativo.
Se fizermos uma espécie de ranking da desigualdade temos, logo no topo, a Jerónimo Martins. Na dona do Pingo Doce a diferença entre os rendimentos de Pedro Soares dos Santos e os seus trabalhadores é de 140 vezes. Se não fosse este grupo de distribuição a diferença entre os ganhos dos CEO e os trabalhadores cairia, no conjunto das empresas, para 37 vezes. Ele ganha 1,9 milhões de euros (um dos rendimentos mais altos), os seus funcionários ganham, em média, 13,5 mil euros (os mais baixos). Esta é a empresa onde os trabalhadores estrangeiros têm de ser tidos em conta, já que muitos estão na Polónia. Ainda assim, os polacos já se começam a aproximar de Portugal, com um salário mínimo de 500 euros. Eles não chegam para explicar esta diferença brutal.
Depois temos a EDP, com uma diferença de 39 vezes (graças aos rendimentos anuais de 2,2 milhões de euros de António Mexia), a Sonae (os rendimentos anuais de Paulo Azevedo, se contarmos com prémio de 2015 liquidado em 2018, são metade dos do dono da Jerónimo Martins), a GALP e Semapa, com diferenças superiores a 30 vezes, e a Navigator e EDP Renováveis.
Mas o mais impressionante não são estes valores. É o que aconteceu neste período de recuperação económica. Isso sim, dá-nos a dimensão de como as coisas funcionam. Em 2014, a média dos rendimentos dos CEO era 700 mil euros anuais. Recebiam 33 vezes mais. Agora recebem 1,1 milhões de euros e ganham 52 vezes mais. Porquê? Porque de 2014 a 2018 o custo médio com cada funcionário manteve-se quase inalterado. O que quer dizer que aos primeiros sinais de recuperação económica os gestores trataram de si e deixaram os seus trabalhadores quase na mesma. A conversa que para distribuir é preciso produzir choca com estes números. Claro que para distribuir é preciso produzir. Mas não chega. Para distribuir é preciso que os mecanismos de pressão dos trabalhadores funcionem. E não estão a funcionar.
Quando isto foi debate pela última vez, o PS apresentou um projeto de resolução para penalizar as grandes diferenças salariais nas contribuições à segurança social. Os patrões não aceitaram a proposta em sede de concertação social e tudo morreu. Assim como morreu a proposta do Bloco de Esquerda para punir esta desigualdade salarial. Compreendo e não discordo da tentativa de legislar sobre esta pornográfica diferença. Mas a questão não é, mais uma vez, moral. É política. É que instrumentos criamos que forcem a uma redistribuição mais justa. Com um sindicalismo fraco e leis laborais que fragilizam a posição do trabalhador na empresa é inevitável que esta desigualdade se aprofunde. Quem tem a faca e o queijo na mão não costuma dividir o queijo de forma justa. É preciso que a faca seja partilhada. Não depende da bondade ou da maldade, depende da distribuição de poder. E temos tirado poder aos trabalhadores e a quem os representa.
Já citei aqui várias vezes o livro “Espírito da Igualdade”, dos britânicos Richard Wilkinson e Kate Pickett. Nele, comparam-se dados estatísticos de doenças mentais, toxicodependência, alcoolismo, esperança de vida, mortalidade infantil, obesidade, desempenho escolar, gravidez na adolescência, homicídios, taxas de encarceramento, mobilidade social e confiança entre cidadãos em vários países desenvolvidos. E conclui-se que, no primeiro mundo, são os índices de igualdade na distribuição da riqueza e não a riqueza produzida os que mais determinam a qualidade de vida de todos os cidadãos. Até os mais ricos vivem melhor em sociedades igualitárias do que em sociedades como a nossa. É a desigualdade, ilustrada por esta multiplicação por 52, que está na base do nosso atraso. A endogamia da elite é só uma das suas muitas consequências.
in Expresso diário

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