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segunda-feira, 17 de agosto de 2020

 



Excerto do artigo

Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.212 Lisboa set. 2014

 

DOSSIÊ

Modernidade, classes sociais e cidadania política: Portugal sob um olhar internacional

Modernity, social classes and political citizenship: Portugal in the international context

 

Tiago Carvalho*

*Departamento de Sociologia, Universidade de Cambridge, Free School Lane, Cambridge, CB2 3RQ, UK. E-mail: tmlc3@cam.ac.uk

 

RESUMO

A relação entre classes sociais e cidadania é um elemento central na observação das formas diferenciadas de poder e de influência na relação entre cidadãos e instituições no âmbito do Estado-nação na modernidade. Partindo de uma tipologia de cidadania política que identifica formas diferenciadas de ativismo e envolvimento e com base em dados do European Social Survey 2002, coloca-se Portugal no centro de uma análise internacional, procurando estudar as suas especificidades face à Europa. Encontra-se um efeito geral que se repercute pelas classes sociais, ainda que diferenciado consoante a região da Europa. Portugal destaca-se pela importância dos detentores de capital cultural.

Palavras-chave: classes sociais; cidadania política; Europa; ­Portugal.

 

ABSTRACT

The relationship between social classes and citizenship is a central element in citizens’ observation of different forms of power and influence in the Nation-State in Modernity. Based on a typology of political citizenship that identifies different forms of activism and involvement and using European Social Survey 2002 data, with Portugal at the center of an international analysis, we seek to understand its specificities in a European context. There is an overall effect of social classes, even if there are differences between European regions. Portugal stands out in the importance of the holders of cultural capital.

Keywords: social classes; political citizenship; Europe, ­Portugal.

 

INTRODUÇÃO

 

São muitas e conhecidas as análises efetuadas aos padrões, processos e estruturas de classes e desigualdades em Portugal (Nunes, 1964; Martins, 2006; Machado e Costa, 1998; Carmo, 2010).1 Contudo, à exceção de escassos trabalhos (Cabral, 1997, 2000, 2006a, 2006b) poucos são aqueles que consideram a cidadania política enquanto um tipo específico de desigualdade, fulcral no acesso a recursos e poder. Assim, pretende-se com este texto, através de uma dimensão analítica complementar, entender de que forma a relação entre classes sociais e cidadania constitui um indicador da relação que os cidadãos desenvolvem com as instituições e, assim, perscrutar formas diferenciadas de integração no âmbito do Estado-Nação a partir de dados do European Social Survey 2002.

A análise será feita em dois momentos: (1) desenvolve-se uma tipologia de cidadania política e compara-se, em diferentes blocos de países, a relação da mesma com as classes sociais; (2) testa-se a robustez das classes sociais face a outras variáveis, perspetivando fatores complementares de explicação da cidadania política.

 

MODERNIDADE, CLASSES SOCIAIS E CIDADANIA

 

As classes sociais, enquanto ferramenta de análise sociológica, têm sido ciclicamente questionadas por um conjunto de autores e teorias. Nos últimos vinte anos foram, sobretudo, as teorias da modernidade (reflexiva e pós-modernidade) que contestaram a sua validade heurística. Através de um movimento ascendente e descendente, respetivamente, para a globalização e o indivíduo, as suas propostas esvaziaram de sentido e importância conceitos anteriormente fulcrais, como classes sociais e Estado-nação.

Os autores destas correntes, em termos gerais, enfatizam que novas forças sociais conduzem os indivíduos a escolher reflexivamente, sendo que a pertença de classe deixou de ser um impedimento às decisões de vida, não formatando nem as práticas, nem as identidades. Referem, assim, a instabilidade, a fragmentação, a individualização, a destandardização, a reflexividade e a fluidez social prevalecentes nas sociedades modernas ou pós-modernas, conseguida através do “aperfeiçoamento” dos mercados e da consequente destradicionalização (Inglehart, 1990 e 1997; Pakulski e Waters, 1996; Beck, 2007).

Os seus argumentos aplicam-se ao campo económico, cultural e político (Atkinson, 2010, pp. 1-14; Crompton, 2008, pp. 71-93). No plano económico sustentam que um conjunto alargado de mudanças como a terciarização, o pós-fordismo, a flexibilidade e a desregulação do mercado de trabalho conduziram a um nivelamento do consumo e afluência, devido à difusão da propriedade e da educação (Beck, 2007; Inglehart, 1990 e 1997). Em termos culturais dissolve-se a cultura de classes baseada na produção e é o consumo que passa a estruturar os estilos de vida (Pakulski e Waters, 1996).

No campo político, vários autores sustentam que com o desaparecimento da “política de classes” emergiram clivagens pós-materialistas (Inglehart, 1997) em que se baseiam os novos movimentos sociais focados nas “políticas da vida” (Giddens, 1997), centrados no indivíduo e socialmente heterogéneos. Este tipo de argumentação está intimamente ligado às correntes que prenunciam o fim das classes sociais, assim como com o desvanecimento da ligação entre classes sociais e sociologia política, sobretudo no que diz respeito ao voto de classe (Clark e Lipset, 2001). Porém, outros autores mostram que é possível verificar o impacto do estatuto socioeconómico (SES) na explicação da participação não eleitoral (Verba e Nie, 1972).

É, portanto, necessário demonstrar a relevância das classes sociais neste campo específico, isto é, perceber como estruturam as ações políticas. As desigualdades têm um papel fulcral na análise da distribuição do poder em democracia já que permitem identificar diferentes capacidades de exercício de influência das instituições (Rueschemeyer, 2004; Cabral, 1997): às desigualdades sociais sobrepõem-se desigualdades políticas que se apreendem através da diversidade de formas de participação. Deve-se, assim, admitir que as classes sociais continuam a ter validade heurística e que são uma ferramenta importante para a análise dos fenómenos sociais. Contudo, não são o único fator explicativo, apesar da sua relevância na explicação de diversos fenómenos (Costa et al., 2000). Há sobretudo que ter em atenção os contextos institucionais e históricos e a forma como as classes sociais neles se enquadram.

Contrariamente aos autores até agora referidos, Mouzelis (2008) propõe uma definição de modernidade que, numa perspetiva institucionalista e ­histórica, remete para a centralidade do Estado-nação na estruturação das relações sociais e que se centra nos processos de diferenciação social e integração. Este enquadramento permite focalizar, em especial, os fenómenos sociopolíticos, já que o autor acentua, na sua proposta de desenvolvimento histórico do Estado-nação, as relações entre classes sociais e cidadania enquanto indicador da forma como as classes subalternas e destituídas de poder político foram progressivamente, por via do alargamento dos direitos, ganhando preponderância devido à sua proximidade ao centro político.

Deste modo, através da relação entre classes sociais e cidadania é possível, segundo Mouzelis, constatar de que forma se constituem processos de centralização e diferenciação institucional e, como tal, a proximidade dos cidadãos ao centro político. Uma sociedade civil forte, na perspetiva de Mouzelis (1995), manifesta-se pela expansão e realização dos diversos direitos de forma autónoma pelas diferentes classes sociais, sendo que estes só são plenamente realizados pela ação dos direitos políticos, sinal, portanto, de integração no centro político dos cidadãos como argumenta Cabral (2000). Ou seja, a cidadania política, expressão da sociedade civil, é, enquanto participação, um indicador chave da forma como o poder se distribui no âmbito dos processos democráticos.

Os conceitos centrais que estruturam este trabalho são, então, os de classe social e de cidadania política. As classes sociais enquanto sistema articulado, dinâmico, duradouro e multidimensional de desigualdades, baseado em diferenciais de recursos, de poder e de oportunidades, permitem perscrutar de que forma a posição social afeta o conjunto das ações políticas (Bourdieu, 1997; Costa et al., 2000; Silva, 2009). A cidadania política trata-se, como refere Cabral (1997, 2000), dentro tríade clássica de direitos (civis, políticos e sociais), dos únicos que se desfrutam pela ação, porque ao “contrário dos atributos da cidadania cívica e social, (…) nunca são automáticos, mas sim algo que tem de ser exercido (…) de forma activa” (Cabral, 2000, pp. 86-87), o que permite alcançar uma medida de funcionamento real dos regimes democráticos, através do “exercício objectivo dos seus direitos” (idem).

É fulcral determinar modalidades diferenciadas de cidadania política, indo além das tradicionais medidas de participação que se baseiam apenas nas práticas realizadas, perspetivando a combinação de diversas dimensões. ­Propõem-se duas dimensões para a cidadania política: a ativa e a latente (Ekman e Amna, 2012). A primeira diz respeito à participação política, enquanto a segunda incorpora o envolvimento comunitário e moral, sem incluir necessariamente a participação, expressando-se no interesse e discussão de problemas comuns, identificação e sentido de pertença.

Pretende-se, assim, verificar os efeitos estruturais das desigualdades no acesso à democracia independentemente da posição social ocupada, testando a preponderância das classes sociais em diferentes blocos de países da Europa e em Portugal. Os trabalhos que se têm dedicado a estas questões (Caizos e Voces, 2010; Nunes e Carmo, 2010; Nunes, 2013; Cabral, 2000; Silva e Vieira, 2011) demonstram que o volume e o tipo de recursos dominantes em cada classe social são preponderantes no entendimento da participação política.

Resulta, assim, que em contexto de modernidade a integração é passível de constatação por via das relações entre classes sociais e cidadania política, dando conta dos tipos de distância ao poder e influência (Cabral, 2000). A relação entre os cidadãos e as instituições políticas permite, assim, compreender de que forma se estruturam relações de poder no âmbito do Estado-nação e o impacto das desigualdades sociais de classe é fulcral no descortinar dos enviesamentos nesta relação. (...)

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