A ECONOMIA ARMAMENTISTA NA URSS
Angelo Segrillo
A economia armamentista na União Soviética, seu peso econômico-financeiro, foi um assunto muito debatido durante a Guerra Fria, especialmente depois do início do programa SDI ("Guerra nas Estrelas") por Reagan em 1983. Segundo alguns autores, o aumento dos custos da corrida armamentista após isso se revelou pesado demais para a economia soviética e esta entrou em crise. Teria sido esse o caso? Qual o peso real do setor militar na economia soviética neste e em outros períodos? O setor militar ainda é tabu na Rússia mesmo depois do fim da Guerra Fria. Na Rússia, vários arquivos relacionados ao período soviético continuam fechados aos pesquisadores comuns. A razão é que dados militares, especialmente do período final soviético, impingem nas estatísticas secretas atuais do governo da Federação Russa. Convém notar que até hoje a Rússia é o país com o maior número de ogivas nucleares do mundo quando se contabilizam as ogivas posicionadas e não-posicionadas em seu conjunto. Mas, afinal, o setor militar era ou não um fardo pesado para a economia soviética?Antes de responder essa pergunta, precisamos saber qual era o tamanho real do setor militar da URSS, que na época era um segredo de estado. Neste ensaio trabalharei com o conceito de gastos militares em percentagem de PNB (Produto Nacional Bruto) ou equivalente. Durante a Guerra Fria havia quatro grandes fontes de estimativas dos gastos militares soviéticos. Havia os dados do item oborona("defesa") do orçamento oficial soviético. O SIPRI (Stockholm International Peace Research Institute) e a CIA (Central Intelligence Agency) publicavam estimativas periódicas destes gastos. Finalmente devemos citar também as estimativas heterodoxas de William T. Lee. Elas podem ser vistas nas Tabelas 1 e 2. Podemos verque elas variavam entre si, pois utilizavam diferentes metodologias. O item "defesa" do orçamento oficial soviético era obviamente baixo demais e descrevia apenas despesas correntes. O SIPRI utilizava os dados oficiais soviéticos e tentava complementá-los com diversas outras fontes externas primárias e secundárias, ocidentais e soviéticas. A CIA utilizava o método dos building blocks. Utilizando as informações secretas que possuía sobre o número real de armamentos e equipamentos soviéticos (através de fotografias aéreas de aviões-espiões, etc.) compunha um total das tropas e equipamentos das forças armadas soviéticas e calculava quanto custaria construir nos EUA, em dólares, um aparato similar. Daí calculava o peso disso (em percentagem do PNB) na economia soviética. William T. Lee usava um processo heterodoxo. Partia dos dados oficiais da economia como um todo (e não apenas do orçamento oficial) e procurava reproduzir o percurso dos bens intermediários e finais na economia para analisar que parte era dedicada ao setor militar (todos os resíduos inexplicáveis em cada ramo de produção eram pressupostos serem secretamente dedicados à defesa).Nenhum dos métodos era perfeito. O SIPRI era criticado por basear-se demais em informações oficiais soviéticas (e não determinar precisamente sua metodologia) e William T. Lee por fazer algumas pressuposições discutíveis e ter determinadas inconsistências metodológicas. A CIA era acusada de passar por cima das diferenças estruturais entre as sociedades soviéticas e americanas ao realizar seus cálculos. Por exemplo, imaginar-se quanto custaria, em dólares, nos EUA, manter-se uma brigada de 50 soldados, não quer dizer que o resultado seja o equivalente da quantia realmente gasta na URSS para manter-se estes 50 soldados (já que os soldos dos militares soviéticos eram mais baixos em relação aos dos EUA). Igualmente, o sistema de preços na URSS não obedecia às leis de mercado, sendo fixado administrativamente. Assim, um avião soviético poderia ter seu preço mantido artificialmente baixo (mesmo abaixo de seus custos de produção) onerando menos os ministérios de defesa do que normalmente custaria nos EUA. Pela Tabela 2 podemos ver algumas das diferenças no resultado destes diversos métodos. Os gastos militares em percentagem do tamanho total da economia do país (em termos de PNB/PIB ou seu equivalente soviético do PML) em 1980 estavam em 3,7% segundo o orçamento oficial 726soviético, 8,7% segundo o SIPRI, por volta de 13% segundo a CIA, e em 18% segundo Lee. Agora, passada a perestroika, podemos ver quem estava mais perto da verdade. Gorbachev, em discurso pronunciado em 1990 na cidade de Nizhnyi Tagil, nos Urais, num momento em que queria mostrar o excesso dos gastos militares soviéticos, afirmou que: "... no período do décimo primeiro plano quinquenal, e mesmo no décimo segundo [ou seja, década de 1980]... o peso dos gastos militares chegou a atingir 18 por cento da renda nacional...". O conceito de renda nacional soviético (chamado no Ocidente de Produto Material Líquido ou PML) difere do conceito ocidental de Produto Nacional Bruto (total de bens e serviços produzidos por um país), principalmente pelo fato de incluir somente a produção material, excluindo o setor terciário de comércio e serviços. Assim, levando-se em conta que, em meados da década de 1980, o PML da URSS representava 74,4% de seu PNB, o máximo de 18% do PML soviético a que se referiu Gorbachev, representaria 13,4% do PNB soviético.Ou seja, de todas as estimativas de gastos militares soviéticos que vimos acima e pela Tabela 2, a que chegou mais perto do "alvo" foram as da CIA. Entretanto, a pergunta crucial da Guerra Fria continua. Afinal, uma carga de 13,4% do PNB constituía um fardo para a economia soviética e a estava atrasando? A questão se gastos militares altos ajudam ou atrapalham a economia é controversa. Existem exemplos claros de quando gastos militares ajudaram a economia. Por exemplo, foi apenas com a Segunda Guerra Mundial (e a recuperação que se seguiu a ela) que o mundo saiu definitivamente da crise iniciada em 1929. As encomendas de fornecimento geradas pela Guerra da Coreia estimularam muito a economia da Ásia, especialmente a do Japão. Além disso, os avanços tecnológicos trazidos pela Segunda Guerra Mundial formaram a base da Terceira Revolução Industrial (da eletrônica e da computação) que se seguiu a ela. Por outro lado, várias guerras (a Primeira Guerra Mundial, a Guerra do Vietnã, etc.) trouxeram gastos militares aumentados que formaram um fardo pesado para certas economias nacionais.O fato de que gastos militares nem sempre significam prejuízo é mais facilmente visualizado nas economias capitalistas. Afinal, o mercado de armas movimenta quantias e lucros altos. Nos Estados Unidos, por exemplo, grande parte da produção de armamentos é realizada por empresas do setor privado, que recebem encomendas governamentais. Inclusive, uma quantidade significativa desta produção é exportada. Na década que antecedeu a perestroika (1975 a 1985), o valor das exportações de armas dos EUA totalizou 103,5 bilhões de dólares (a preços de 1983). Isto equivalia (em dólares constantes de 1983) a cerca de metade do PNB do Brasil em 1984. Mas e em uma economia socialista como a da URSS? Representaria 18% do PML (ou 13,4% do PNB) soviético um fardo para o sistema? Afinal, na URSSa produção de armamentos não era feita "para lucro" como nos países capitalistas.Apesar de até a década de 1960 a exportação de armas da URSS ser, em sua maioria, para países socialistas e movimentos de libertação do Terceiro Mundo ou outros movimentos insurrecionais a preços frequentemente subsidiados, a situação mudou um pouco na década de 1970, segundo Holloway, "com o aumento de renda dos países produtores de petróleo, alguns dos quais (Iraque, Líbia, Argélia) eram grandes compradores de armas soviéticas. Estima-se que, entre 1971 e 1980, 65% das vendas de armas soviéticas aos países menos desenvolvidos era feita em moeda forte, e rendeu US$ 21 bilhões". Mas esse nível de exportação era baixo em comparação com o dos EUA. A verdadeira questão colocada pelos analistas é se o setor militar era uma "esponja" de recursos da economia soviética como um todo ou se a impulsionava. Podemos tentar solucionar esta questão fazendo uma comparação dos períodos de maiores gastos militares da URSS em termos de percentagem do PNB da Tabela 2 com o crescimento econômico da economia como um todo. O aumento dos gastos militares está relacionado com períodos de desaceleração econômica ou não?Analisando as Tabelas 2 e 5, podemos notar que não há correlação direta entre os períodos de gastos militares aumentados e desaceleração econômica. Os períodos de maiores gastos militares, em termos de percentagem do PNB (excetuando-se o período da Segunda Guerra 727Mundial, que é atípico) são os anos que antecederam imediatamente a SegundaGuerra Mundial, os anos iniciais da década de 1950 (com a Guerra da Coreia) e meados dos anos 1980 (com a corrida deslanchada pelo programa "Guerra nas Estrelas" de Reagan). Ora, os anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial foram de alto crescimento econômico bem como os primeiros anos da década de 1950 (que tiveram maior crescimento que a segunda metade da década, por exemplo). Já os meados da década de 1980 foram da desaceleração econômica que inclusive levou os líderes soviéticos a deslancharem a perestroika. Assim, correlação direta entre gastos militares aumentados e desaceleração econômica no caso soviético não há. Mas e o caso específico da década de 1980? Estaria ali o fardo militar realmente atrapalhando a economia?O caso específico da década de 1980 é complicado. Ao contrário do final da década de 1930,1055quando os spin-offscientíficos do setor militar claramente ajudavam a elevar o nível de setores industriais civis em formação, na época de crescimento mais sofisticado da Terceira Revolução Industrial (especialmente durante o boomda microeletrônica) o excesso de concentração em alguns setores da indústria pesada e militar poderia estar drenando recursos e pessoal necessários em setores de consumo e serviços civis de ponta. Mas, mesmo nesse período, os três grandes estudos econométricos (Hopkins/Kennedy, 1982; Wharton Econometric –SOVMOD em Bond, 1983; Hildebrandt, 1983) que simularam um cenário de diminuição dos gastos militares para tentar obter reaceleração econômica concluíram que cortes na área militar não conseguiriam responder pela reaceleração do crescimento da produtividade e da produção de maneira sensível e inequívoca. Como analisei em Segrillo (2000), as causas da desaceleração econômica e de produtividade na URSS pré-perestroika estavam em outra parte e, a não ser que essas causas fossem atacadas, uma mera diminuição dos gastos militares não seria por si só capaz de reativar a vitalidade no setor civil.Confundindo ainda mais esta controversa questão do fardo das despesas militares na União Soviética está o fato de que uma imensa proporção da produção das indústrias dos ministérios militares era destinada a fins civis. Isso tanto devido a que as indústrias dos ministérios militares fabricavam grande parte dos bens civis que as forças armadas soviéticas usavam como pelo fato de que, desde os anos 1930, as indústrias militares, por terem tecnologia de ponta, frequentemente eram as que começavam os investimentos em setores pioneiros nas épocas iniciais e continuavam a produzir estes bens depois (exemplo dos casos das TVs a cores, videocassetes, etc.). Brezhnev afirmou no XXIV Congresso do PCUS, em 1971, que 42% da produção dos ministérios militares era destinado a fins civis. Segundo Cooper (1986, p. 38 e 41), dos produtos soviéticos fabricados em 1980, as indústrias dos ministérios de defesa produziram 100% dos videocassetes, TVs, rádios e câmaras fotográficas, além de (aproximadamente) 10% dos automóveis, 30% das bicicletas, 47% dos refrigeradores, 35% das máquinas de lavar e 33% dos aspiradores em pó.Deve-se excluir essa imensa produção civil quando se calculam os gastos militares da URSS para se evitar os exageros de autores que afirmavam que os gastos militares soviéticos chegavam a 30% ou até 40% do PNB do país! Ou seja, os gastos militares soviéticos, em termos de percentagem de PNB eram muito altos (cerca de quatro vezes os dos EUA), mas a URSS não era uma economia (puramente) de guerra. Talvez a questão possa ser mais bem posta nos seguintes termos. Apesar da não se poder dizer que os altos gastos militares soviéticos fossem responsáveis pela desaceleração econômica do país, eram um dosfatores a pesar (...)»
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