“Lei e Ordem” vs. “Empatia e Cura”
John Davis *
… a revolução foi impulsionada mais pelas necessidades materiais do que pela ideologia iluminista, pelos salários de miséria, as fétidas condições de habitação, a pouca comida , as roupas inadequadas e os impostos excessivos, e não pelos escritos de Locke, Montesquieu e Rousseau. Mas, embora essa energia das classes pobres possa ter gerado a entidade política que conhecemos como América, a criança foi amamentada pelos ricos e envolta em instituições concebidas por eles.
Os cidadãos americanos têm-se confrontado, sabendo-o ou não, com o legado da história americana a cada quatro anos, desde 1788. Nesta época de eleições, temos a escolha entre “Lei e Ordem” – o conservadorismo como uma subserviência moralmente falida em relação ao poder –, ou “Empatia e Cura” – uma mezinha que oferece uma atitude compassiva em vez de uma mudança progressiva. Ambos representam tentativas de moldar a sociedade com base em alguma ficção histórica idealizada, em vez de confrontar as exigências claras e presentes das injustiças passadas.
O mote “Lei e Ordem” foi invocado pela primeira vez por John Adams [1735-1826, segundo presidente dos Estados Unidos , de 1797 a 1801 – NT], o segundo presidente da América, que basicamente escreveu o livro de regras que agora é seguido fielmente pelo quadragésimo quinto presidente [Donald Trump – NT]. Aprovou as Leis de Estrangeiros e da Sedição em, 1798, tornando mais difícil para os imigrantes tornarem-se cidadãos e, simultaneamente, mais fácil deportá-los – conduzindo uma guerra de medo contra uma subclasse já oprimida de recém-chegados servos contratados, trabalhadores ao dia e artesãos itinerantes.
As insurreições populares surgiram logo após a conclusão bem-sucedida da Guerra da Independência, todas desencadeadas pela imposição de impostos onerosos sobre a classe trabalhadora. As mais famosas foram a Rebelião de Shay, de 1786-1787, a Rebelião do Whisky, de 1794, e a Rebelião de Fries, no sudeste da Pensilvânia, em 1798, à qual Adams respondeu com a sua infame Proclamação #9, que exigia a mobilização de tropas federais para reprimir os manifestantes .
“Empatia e Cura”, praticada como arte política, representa a deslocação da ação através de uma manipulação emocional sibilina. Os dois últimos presidentes democratas deste país foram mestres nesta arte, embora a praticassem com estilos muito diferentes. Ambos continuaram com sucesso as predações do neoliberalismo, onde a ganância de poucos alimenta a miséria de muitos, enquanto sugerem eloquentemente que o contrário deveria e poderia ser feito. O atual candidato democrata é um expoente paradigmático e altamente experiente, embora um pouco confuso, dessa arte negra.
Aqueles que clamam pela imposição da “Lei e da Ordem” estão a exigir uma confirmação dos arranjos de poder que favorecem a sua própria posição na sociedade. Codificada nessa consigna está a noção de que qualquer mudança no status quo ameaça a estabilidade da sociedade e que as opiniões que desafiam o sistema são intrinsecamente sediciosas. “Lei e Ordem” é o eufemismo que oculta o uso da força bruta e do armamento tático na manutenção das condições legais, sociais e económicas da opressão. É o instrumento do autoritarismo e o inimigo declarado da rua.
Os cidadãos que clamam por “Empatia e Cura” procuram a anulação da interminável reconstituição da linhagem da nação – a repreensão aos imigrantes ao estilo de John Adams; o flagrante favorecimento dos ricos; a adoção de uma economia baseada na exploração e rapina da natureza e total desprezo pelo valor do mundo natural; a hedionda imposição de controles sociais por meio da força; e a subjugação das mulheres. No entanto, os seus líderes políticos são fiéis aos mesmos interesses dos ricos que apoiam a fação “Lei e Ordem” e, sob um verniz progressista, também eles mostram o punho de ferro da opressão económica – mas com as luvas de veludo da conversa açucarada da liberdade e justiça. Nas décadas de 1760 e 1770, os colonos americanos ricos vincularam a classe média à sua causa por estes meios. A conversa sobre liberdade e igualdade permitiu-lhes garantir uma unidade suficiente para derrotar os britânicos, sem abrir mão da instituição da escravatura ou da sua vasta vantagem material sobre a maioria da população branca.
Cada um representa o apoio ao que Eric Foner, historiador americano, descreve como uma “História nacional inventada e um destino suposto que gira em torno da ideia de liberdade”. Mas a fundação do país dependeu de uma revolução que nasceu nas ruas – nos becos de Boston, nas ruas de Nova York, nas praças públicas de Filadélfia e nos enclaves rurais no Vale do Hudson, Vermont e Carolina do sul. Lá, a revolução foi impulsionada mais pelas necessidades materiais do que pela ideologia iluminista, pelos salários de miséria, as fétidas condições de habitação, a pouca comida , as roupas inadequadas e os impostos excessivos, e não pelos escritos de Locke, Montesquieu e Rousseau. Mas, embora essa energia das classes pobres possa ter gerado a entidade política que conhecemos como América, a criança foi amamentada pelos ricos e envolta em instituições concebidas por eles.
A América foi colonizada pela primeira vez por indivíduos ricos e por corporações licenciadas pela coroa britânica, juntamente com os trabalhadores necessários para realizarem as suas ambições. O seu desenvolvimento foi baseado na expansão geográfica da economia de extração e exploração que surgiu na Europa nos finais da Idade Média e que se apoderou quase inteiramente dos impulsos comunitários do feudalismo. Desde o início, a “descoberta” do Novo Mundo foi produto da ganância. Os seus principais atores eram ricos protocapitalistas em busca de tesouros. Só mais tarde, na América do Norte, com a chegada dos peregrinos, a terra se tornou um campo de sonhos, onde as ideologias do Iluminismo e as noções de liberdade religiosa puderam levantar voo. Mas, desde o início, houve uma não correspondência entre o alto nível filosófico e espiritual e as realidades básicas dos colonos, dependente como era (e continua a ser) da usurpação das terras dos habitantes indígenas.
No final do século XVI, as colónias envolveram-se no triângulo do comércio entre as Américas, a Europa e a África. O rum era destilado na Nova Inglaterra a partir do açúcar de Barbados e enviado para a Grã-Bretanha, onde gerava lucro suficiente para comprar escravos adicionais para manter a produção da matéria-prima no Caribe. As colónias foram cúmplices do comércio de escravos durante muitas décadas, mesmo antes de os próprios escravos terem chegado em 1619, onde eram usados para a produção em grande escala de colheitas de exportação, como o algodão, que constituíram a formação da extraordinária riqueza da América. A escravidão dos africanos estava, portanto, profundamente enraizada na economia e na sociedade dos Estados Unidos quando chegou o momento de discutir a forma como os pontos mais delicados da liberdade seriam consagrados na Declaração de Independência e na Constituição dos Estados Unidos. No evento, os Pais Fundadores lançaram a questão borda fora, comprometendo-se para sempre, a si próprios e ao seu país – e prenunciando a torpeza moral contemporânea dos líderes políticos americanos, que sempre se recusam a resolver os principais males sociais, ambientais e económicos da época.
Nos primórdios da América, a justiça racial estava profundamente comprometida, tanto pela escravidão como pelo genocídio da população indígena. Podemos presumir que as mulheres não eram mais bem tratadas do que o eram na sociedade europeia – ou muito pior, pois prevalecia um ambiente pioneiro androcêntrico e a hierarquia racial permitia o seu abuso. A violência obscureceu a ganância. A pobreza era endémica. Estes eram os ingredientes de uma nação em formação. A Revolução Americana, que estabeleceu a independência da Grã-Bretanha e permitiu ao país emergir de uma Europa ainda na sua maioria aristocrática, permitiu a conceção de uma Constituição numa folha em branco – mas era um documento que institucionalizou, ao invés de eliminar, as características originárias do país, e é para esse legado que agora estamos despertos.
Toda a esperança numa justiça racial, igualdade de rendimentos, ação climática e a eliminação do preconceito de género aguardam a próxima revolução, não o resultado das eleições federais de novembro. Cada uma dessas amplas áreas de disfunção social atual tem raízes que se estendem pelo passado americano. Igualdade, justiça, inclusão e esperança ambiental autênticas só podem manifestar-se através de um confronto com essa história, e não na adaptação das suas instituições fundamentais. A verdade e a reconciliação dependem da desconstrução radical da mitologia americana – a bandeira agitando-se no ar, os hinos, os juramentos de fidelidade à nação. Isso só pode acontecer no campo de batalha, com protestos, incivilidade, disrupção.
A afirmação de Thomas Paine, no seu livro Common Sense [Senso comum – NT], 1776, de que “Temos o poder de começar o mundo de novo”, permanece válida se fugirmos dos bastiões da reação, das nossas instituições corruptas e dos partidos políticos comprometidos com a sua manutenção. Na nossa segunda revolução, a ordem social, económica e política da nação tomará nova forma, tal como a primeira, na ágora americana – a rua.
* John Davis é um arquiteto que vive no sul da Califórnia. Leia mais trabalhos seus em urbanwildland.org.
Fonte: https://www.counterpunch.org/2020/09/18/law-and-order-vs-empathy-and-healing/, publicado e acedido em 2020/09/18.
Tradução do inglês de TAM
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