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segunda-feira, 26 de outubro de 2020

ENSAIO - Fascismos e comunismos

 José Augusto Nozes Pires

CRÍTICA DA RAZÃO CONSENSUAL- Fascismo versus comunismo

Capítulo I- O Pavilhão da Mentira

«Somente duas coisas são infinitas: o Universo e a estupidez humana. E não estou seguro quanto à primeira.» Albert Einstein

    Celebramos o centenário da Grande Revolução Socialista Soviética. Sociedade sonhada de mil maneiras pelos oprimidos de sempre nos cânticos de trabalho servil, nos romances utópicos, nas revoltas camponesas, nas grandes revoluções da Modernidade, nas experiências sociais de visionários, nas insurreições dos escravos nas Américas, na Comuna de Paris, no potencial subversivo do génio artístico. Contra esse acontecimento pioneiro na história da Humanidade assistimos a velhas e redobradas campanhas da Direita neoliberal. Assistimos à reinvenção de velhas mentiras contra o Acontecimento que rompeu com milhares de anos de História e marcou de forma indelével o mundo nos cem anos que se seguiram.

Os comunistas são alvos constantes de calúnias, desde logo no decurso das vidas admiráveis de Karl Marx e Friedrich Engels. Alvos da fúria assassina do nazi-fascismo, alvos na “Guerra Fria” promovida pelos EUA e seus aliados, continuamente até ao período presente. Perseguidos e caluniados inclusivamente todos aqueles democratas que apenas manifestaram alguma simpatia e compreensão com os comunistas, como se verificou no período de a “caça às bruxas” do macarthismo, na ditadura de Salazar-Caetano e no Chile sob a ditadura de Pinochet. A “Guerra Fria” não foi senão o curso de sucessivas “guerras quentes”, desde a Coreia ao Vietnam e ao Médio Oriente, da África à América Latina, sem esquecermos a nossa Revolução dos Cravos.

Não é somente a extrema-direita que odeia os movimentos, partidos e governos que se reivindicam do projeto socialista e comunista, são todas as formações políticas pró-capitalistas, qualquer que seja o seu nome. Os nomes são palavras; com estas tanto se diz a verdade como se mente. Nacional-Socialismo, Estado Corporativo, Estado Novo, democracia orgânica, Frente Nacional, democracia…tudo são palavras para disfarçar uma finalidade principal: a acumulação de capital e a taxa de lucro conveniente.

O ódio, a difamação, a mentira, não têm limites. A “moral” da Política é, sobretudo, a política da Economia. Quem quer que queira honestamente conhecer a verdade pode somar os milhões de mortos de todas as guerras contra o socialismo e o comunismo. Compreenderá facilmente que o principal inimigo, o alvo e a vítima, desde há quase duzentos anos, do Capital, são os trabalhadores e os povos que dele se querem libertar.

Um jornalista da televisão pública que destila notícias distorcidas na mente dos portugueses que pagam a dita é também romancista. Dá pelo nome de José Rodrigues dos Santos. Lamentavelmente, vende bem a má mercadoria.

Obriga-nos a prestar-lhe atenção, quando, como escritor, não perderíamos com ele um minuto sequer. Trata-se dos seus últimos livros, “As Flores de Lótus” e «O Pavilhão Púrpura». E ameaça-nos com uma trilogia…

O livro narra as deambulações de quatro personagens distintas, na China, Japão, Ucrânia e Portugal, nos anos trinta do século passado, década que antecedeu a Segunda Guerra Mundial.

O romance carece de envergadura literária e não permanecerá na história da literatura mais tempo que outras novelas de “aeroporto” igualmente de grande sucesso comercial. Contudo não me ocuparei a demonstrar a técnica astuta que caracteriza essa literatura comercial vulgar: o uso abundante de clichés, o arranjo de personagens estereotipadas, a esperteza de provocar sentimentos mórbidos, os diálogos postiços.

Os acontecimentos (a guerra civil na China, a ascensão do fascismo no Japão, a coletivização da agricultura na União Soviética) são narrados com o artifício da simplificação e com o recurso ao velho esquema novelesco dos “bons” e dos “vilões”, maldade pura e pura inocência. A subjetividade é o ingrediente fundamental de um escritor: narra conforme ele sente e julga. Mas, no caso que me importa, é um juízo de valor apriorístico que distorce deliberadamente os factos objetivos.

Qual é, então, a mensagem política que nos obriga a desmentir categoricamente?

A seguinte: o nazi-fascismo tem origens no marxismo! Se o leitor à partida repudia o nazi-fascismo, então que ele saiba que mais diabólica é a doutrina que o gerou. Nem mais.

J. R. dos Santos deita mão do truque do narrador iluminado que descreve a maldade de uma “monstruosa” doutrina e suas vítimas (gente angelical sem preconceitos, ideologias, contradições).

De Salazar compõe-se o retrato de um estadista “maquiavélico” mas com um sentido positivo: astuto mas desinteressado. No livro, em um diálogo com um militar que mostra antipatizar com a fação do «Nacional-sindicalismo», Salazar explica-lhe que a Mocidade Portuguesa e outras organizações servem apenas para apaziguar os adeptos fascistas de Rolão Preto; e que se inspirou na Carta del Lavoro de Mussolini porque é preciso “concentrarmo-nos no que essas correntes têm de meritório”. O ditador é tratado por presumida vox populi como o “Toninho”. Uma ternura.

Em declarações públicas J.R. dos Santos em sua defesa recorre aos chamados «historiadores revisionistas» como se estes tivessem sido autoridades científicas indiscutíveis, quando, na verdade, têm sido desmentidos e mesmo em alguns casos ridicularizados pelos seus pares.

 O pensamento de J.R. dos Santos é uma amálgama de contradições e juízos falaciosos: o fascismo (refere-se ao italiano? ao nazismo?) “é uma das revisões do marxismo”. O que sobra então do original? Nada, porque, segundo ele, na realidade o fascismo é a origem do marxismo. É marxista o nacionalismo e o “socialismo” do Nacional-socialismo, o partido de Hitler. «Até que ponto um revisionismo ainda é marxista?», pergunta a criatura; pois, essa é a questão a que ele devia responder. Enfim, diz ele, «as origens…são em geral, múltiplas e variadas». Pois são. Provavelmente do próprio liberalismo…Do pensamento de Marx é que não há sinal nenhum.

 J.R. dos Santos vai buscar apoio em Georges Sorel e Otto Bauer.

Capítulo II- Sorel e Bauer

O pensamento de Georges Sorel (1847-1922) percorreu várias fases muito distintas. Inicialmente adepto do chamado “determinismo científico” (essa espécie de “marxismo” sem Marx) passou-se rapidamente para a versão, sempre revisionista, do marxismo como uma “doutrina ética”, ao modo de Bernstein e dos neo-kantianos. Do determinismo para o reformismo, estes paradoxos são bem conhecidos pelos marxistas. Novo trânsito: do reformismo para o voluntarismo do “sindicalismo revolucionário”. Embora um fruto das condições objetivas e subjetivas da época, à sua personalidade peculiar convinha esta escolha. Publica Réflexions sur la violence (1906), que o tornam célebre, onde advoga que na “guerra de classes” só os “mitos” possuem força suficiente para mobilizar as massas. Por conseguinte, as ideias apenas como mitos é que podem materializar-se com ímpeto revolucionário. A sociedade capitalista estava condenada, assistia-se ao seu declínio, porém ela somente seria derrubada por ações violentas, nomeadamente a “greve geral”. Desencantou-se, contudo, com o “sindicalismo revolucionário”, porque deste não brotou revolução alguma e… passou-se para a Direita. Tendo toda a vida enfatizado a “ação” voluntarista, acabou a admirar Mussolini! Sorel nunca foi realmente marxista; nem foi, é necessário dizê-lo, um fascista. Sendo certo que marcou profundamente o “sindicalismo revolucionário” e sendo certo também que o fascismo beneficiou muito com os seus livros.

Indiscutivelmente uma personalidade profundamente contraditória, dotada de enorme talento, com inegável influência num determinado período tumultuoso da história da Europa. O messianismo, os mitos e as utopias proliferavam em todos os quadrantes, na esquerda e na direita.

Nessa época o positivismo que fora predominante no pensamento burguês-liberal sofria já ataques e rejeições da intelectualidade. O “darwinismo social”, entrosado com filosofias dos “vitalismos”, impregnava as correntes ideológicas. Verificou-se isso em Portugal inclusivamente. Tanto na direita reacionária como em sectores da esquerda republicana. Conjugado com os nacionalismos fornecia um caldo favorável aos racismos. Desacreditado o racionalismo positivista, sem outro racionalismo burguês alternativo, abriu-se caminho a todo o tipo de irracionalismos. A “Destruição da Razão” (título de um livro célebre de G. Lukács) estava em marcha. As críticas à “Razão instrumental”, “manipuladora”, “burocrática”, advenientes de Max Weber, entre outros, encontram interpretações ideológico-políticas muito diferentes na Direita (Heidegger, Jünger, Klages) e na Esquerda (A Escola de Frankfurt- Horkheimer, Adorno), sendo que a receção e assimilação pelos públicos é confusa, isto é, parecendo que a Direita defende o mesmo que a Esquerda. A valorização dos mitos não é uma originalidade de Sorel, embora este houvesse sido o mais escritor mais influente à época, é um legado do Romantismo. Horkheimer e Adorno, muito depois de Sorel, demonstrariam a responsabilidade do Iluminismo e do liberalismo na produção dos novos mitos da Modernidade e, consequentemente, o fascismo não estava disso desligado. No nazismo expressa-se, por exemplo, nas expressões “sangue”, “terra”, “heroísmo”. Esses apelos constituem ingredientes fundamentais dos movimentos de massas na Alemanha nazi em políticas de “vida saudável” desportiva ou campesina, nos imponentes cenários que pareciam fascinar a juventude. E na guerra e na violência. Ao mesmo tempo que confluíam para as cidades contingentes de camponeses pobres, a intelectualidade dedicava-se a demolir o modo de vida “burguês”, acomodado e “normalizado”. Símbolo deste “burguês” era o Judeu…Os mitos confundem-se com os preconceitos.

 Sorel defendeu que a revolução teria de ser provocada por uma vanguarda com recurso à violência; porém, tal tática voluntarista já fora defendida muito antes por Louis-August Blanqui (1805-1881, o blanquismo foi muito influente na Comuna de Paris de 1871) e por Mikhail Bakunine (1814-1876, doutrinário anarquista adversário do marxismo). Marx, como é sabido, combateu com dureza as teses anarquistas de Bakunine. E não foi seguramente em Sorel que Lenine e os bolchevistas se inspiraram, mas nas condições concretas da Rússia no período entre Fevereiro e Novembro (Outubro) do ano transcendente de 1917.

Em suma: Georges Sorel foi um efeito da mentalidade da época e da crise da ideologia burguesa liberal, como foi, ele próprio, um catalisador dessa crise. Os seus escritos que, em rigor, em nada se sustentavam na Teoria Crítica de Marx, foram inegavelmente muito influentes no sindicalismo revolucionário anarquista que disputava a hegemonia com a doutrina marxista-leninista no espaço ideológico e político dos movimentos operários europeus nos anos anteriores à Segunda Guerra Mundial.

Otto Bauer – 1881-1938

 Foi, numa primeira fase da sua vida, um notável filósofo austríaco. Colaborou com o teórico reformista Karl Kautsky (1854-1938) na revista que este dirigia, Die Neue Zeit. Em 1907 publicou um estudo pioneiro no marxismo sobre a questão das nacionalidades e do nacionalismo, a pedido de Viktor Adler. Fundou com Karl Renner (importante estudioso do Direito burguês-liberal) a revista teórica do partido social-democrata Der Kampf. Em 1936 publicou um famoso estudo do fascismo. O chamado “austro marxismo”, o qual mais tarde influenciou a “Nova Esquerda” e o “eurocomunismo”, deveu-se a Bauer, Adler, Renner e Rudolph Hilferding e Friedrich Adler, todos eles destacados dirigentes do partido social-democrata (revisionista) da Áustria. Otto Bauer censuraria asperamente a Revolução dirigida pelo partido bolchevique, opondo-lhe uma “terceira via” não violenta, não dirigista e não burocrática, no seu entender; na prática, colaborou ativamente na repressão violenta das ações revolucionárias da classe operária. Bauer foi de facto um revisionista que municiou com argumentos os inimigos das revoluções socialistas dos trabalhadores.

Ainda assim, não é correto desprezar obras suas importantes na época, como, por exemplo, A Questão das Nacionalidades e a Social-Democracia. O problema das autonomias e independências nacionais era, de facto, um problema real e candente nas condições concretas daquela época antes da Primeira Guerra e durante o período entre as Guerras Mundiais. O nazi-fascismo interpretou-o a seu modo: chauvinismo militarista, expansionista e imperialista, racista e colonialista. A Áustria, pátria de Bauer, havia sido a cabeça de um império que ruiu com a Primeira Guerra, desencadeando-se, por consequência, tremendos problemas com as nacionalidades. Os respetivos partidos social-democratas dividiram-se por causa das “suas” nacionalidades, impregnando de nacionalismos a doutrina socialista (tal como se haviam oposto, uns, a favor, outros, da intervenção dos seus países na Primeira Grande Guerra). A atitude das social-democracias de oposição ativa às revoluções operárias, porque as achavam sempre de inspiração bolchevique (e russa), era usual, a sua marca distintiva digamos assim, mas nem por isso merecem de modo algum ser colocados numa frente unida com os nazi-fascismos. Otto Bauer defendeu que a “Nação” e o nacionalismo eram termos e temas que serviam melhor a mobilização das massas que a luta de classes, pensando evidentemente no seu próprio país. Em que é que esta tese é marxista, se não na mais espúria revisão? Por outro lado, no seu texto «O Fascismo», de 1936, um escrito notável e pioneiro sobre os movimentos de massas fascistas, Bauer sustentava então que a principal tarefa do nazi-fascismo era destruir o movimento operário, nomeadamente o reformismo.

 

Os «revisionistas históricos»

No fim dos anos oitenta alguns historiadores provocaram uma acesa polémica nos círculos académicos franceses e alemães. O assunto prendia-se com as comemorações do bicentenário da Grande Revolução Francesa (1989), porém, depressa alastrou para o real objetivo: atacar o socialismo e o projeto comunista e dar assim uma mão à destruição da URSS. Foi, de facto, uma manobra habilmente concertada. Surpreendeu e indignou historiadores probos o desrespeito pela prova documental e a revisão descaradamente ideológica de factos comprovados. No caso da Alemanha os “revisionistas históricos” serviram conscientemente os objetivos da campanha orquestrada pela coligação democrata-cristã que visava ganhar as eleições, tendo como pretexto a visita do presidente Reagan ao cemitério alemão em Bitburg, em 8 de Maio de 1985. 

A corrente do “revisionismo histórico”, iniciada nos anos 80, acusa as revoluções de todos os males, a começar pela própria Revolução Francesa, salvaguardando cuidadosamente a Revolução Americana que, aliás, lhe é anterior (pois esta não afetara os interesses dos latifundiários esclavagistas). Coloca na França, portanto, as origens das revoluções da época moderna, ou seja, socialistas, pois, segundo eles, foi a Revolução jacobina que transmitiu o vírus do “Terror” às revoluções comunistas.

O revisionismo histórico na sua vertente mais reacionária inculpa os comunistas de todos os males do mundo, não somente o chamado “estalinismo”, mas o próprio marxismo.

Deste modo encontram-se todos à mesma mesa: os críticos antiliberais reacionários do século dezanove que odiaram a Revolução Francesa e os “revisionistas históricos” neoliberais nossos contemporâneos. Sem contradições.

Ernst NOLTE

O caso de Ernst Nolte (1923-2016) é elucidativo. Esta figura principal do «revisionismo histórico» germânico foi aluno e, depois, amigo de M. Heidegger e de Eugen Fink, filósofos nazis como se sabe. Construiu a ficção de que o nazismo foi um movimento reativo ao bolchevismo e, daí, que os campos de extermínio tivessem sido uma repetição consequente à “política de extermínio” de Estaline na Ucrânia. O “genocídio de uma raça” correspondia ao “genocídio de uma classe” (os kulaques ou camponeses ricos). Gozando de prestígio intelectual provocou uma intensa querela afirmando que a Alemanha, o seu povo, necessitava de ser reabilitada da má imagem que o regime nazi lhe colara até à data (anos 80), e que merecia um novo nacionalismo. Afinal, a Alemanha (leia-se: o regime Nacional-Socialista) respondera com a guerra à ameaça da invasão dos “vermelhos”, uma espécie de política legítima e patriótica…Historiadores e filósofos reputados (Habermas, Benjamin Weber, Eberhard Jäckel) manifestaram publicamente a sua indignação, argumentando que estas teses mirabolantes serviam um propósito (voluntário ou involuntário): justificar os horrores perpetrados pelos nazis. Pelos vistos tais teses não desapareceram do arsenal anticomunista dos pequenos Rodrigues dos Santos deste pequeno mundo.

Robert CONQUEST

  Uma das figuras de proa dos «revisionistas históricos», o historiador britânico Robert Conquest (1917-2015), publicou alguns livros de grande sucesso nos círculos neoliberais, nomeadamente «O Grande Terror» (1968) e Harvest of Sorrow (1986), ambos largamente aproveitados em documentários para televisão e abundantemente citados pelos seus confrades. Deu um importante contributo para a reeleição de Reagan e para a corrida aos armamentos com o livro Que fazer quando os russos chegarem: um manual de sobrevivência, uma autêntica peça de terrorismo psicológico. Escreveu discursos para Margarete Thatcher e deu-se muito bem com a belicista Condoleeza Rice. Tudo bons amigos. Foi, evidentemente, galardoado com a “Medalha Presidencial da Liberdade” em 2015, por Georges W. Bush. Aderira ao Partido Comunista britânico em 1937, do qual, obviamente se afastou em 1945. Na realidade fora espião na Segunda Guerra Mundial. Manteve-se a trabalhar num departamento de contrainformação (IRD) dos serviços secretos ingleses. Quais foram as fontes principais dos seus livros sobre a coletivização e a fome na Ucrânia? Foi buscar informação e testemunhos aos antigos efetivos da divisão Waffen-SS Galitchina  e do “Exército Insurrecional Ucraniano” que a perpetraram a “limpeza étnica”!

Capítulo II- Elementos para uma história do Terror

A propaganda anticomunista procura instalar a convicção de que a violência está associada ao comunismo. Na realidade, a violência dos pobres e oprimidos foi sempre provocada pela opressão cruel e violenta que cria os pobres e os subjuga. A revolta dos escravos e da plebe na Antiga Roma, dos camponeses no feudalismo, do povo de Paris em 1789 e em 1871…Os jacobinos foram inegavelmente violentos. E o Antigo Regime? A Reacção restauracionista (após a derrota de Napoleão) não foi menos brutal que o governo pequeno burguês dos jacobinos. A guerra que o império inglês conduzira contra as colónias norte-americanas, antes da Revolução Francesa, não foi menos brutal. A reacção da Vendeia, durante a Revolução Francesa, fomentada pelos aristocratas foragidos conluiados com os britânicos, fez muitas mais mortes que todos os aristocratas guilhotinados pelos jacobinos.

A Primeira Guerra Mundial foi muitíssimo mais violenta (vinte milhões de mortos) que a insurreição bolchevique na Rússia de 1917 (com escassas vítimas). O regime dos czares foi uma longa história de opressão e brutalidade sem limites (a manifestação pacífica de 1905 foi esmagada a tiro e com cavalaria).

Os anarquistas começaram por aplicar a “ação direta” (recorrendo a táticas de violência) para mais tarde, depois da repressão dura dos seus efetivos, optarem pelo “sindicalismo revolucionário”, que acreditava preparar pela propaganda as massas para a greve geral que arruinaria o capitalismo. Alguns atos cometidos por grupos anarquistas radicais ou isolados das massas provocaram graves consequências. No entanto, o anarquismo em geral era e é pacifista (o anarquismo libertário proudhoniano, por exemplo). Como é sabido, não teve origem alguma na Teoria comunista de Karl Marx.

Nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial, todos os países de regimes liberais reprimiram violentamente as associações populares e as greves operárias. A Grã-Bretanha, dita democracia exemplar, muito embora houvesse recorrido menos que outras nações à repressão violenta direta dos movimentos operários, usou-a desde o século dezanove. Lembre-se nomeadamente a extrema violência exercida sobre o povo colonizado da Irlanda.

Se a violência cometida pelos bolcheviques no fogo das guerras civis (guerra conduzida pelos contrarrevolucionários) está inscrita na matriz ideológica (a tal “ideia comunista”), segue-se logicamente que os crimes cometidos pelos liberais estão inscritos na “ideia liberal”; pelos sociais-democratas na “ideia social-democrata”; pelos cristãos das cruzadas, inquisição e conquistas ultramarinas, na “ideia cristã”; e assim por diante. O raciocínio perde todas as escalas de valores.

Distorcer o marxismo reduzindo-o a uma “Ideia” maligna é pura manobra ideológica. Explicar os conflitos sociais sob o esquema de “conflitos de ideias” é ela mesma uma explicação ideológica com a qual se disfarça e oculta as lutas de classes, a oposição irredutível dos interesses materiais das forças sociais em presença num determinado momento do processo histórico. Convertendo a contraditoriedade objetiva em puros discursos facilita-se qualquer interpretação arbitrária. O socialismo comunista de Marx-Engels não é uma “ideia” especulativa que se deve aferir exclusivamente por um julgamento moral. É a expressão dos interesses do proletariado moderno que luta por libertar-se das relações capitalistas objetivas que oprimem todas demais classes e camadas subordinadas. De certo modo, nem sequer é uma “ideia pura” o socialismo utópico de Étienne Cabet e outros sonhadores generosos.

É oportuno lembrar que os ideais de liberdade e de igualdade promovidos pelos intelectuais burgueses nunca foi do interesse prático da burguesia. O recurso à violência para se impedir a sua extensão e efetivação foi constante. A repressão sobre os “communards” de Paris de 1871 demonstra-o: mais de vinte mil foram fuzilados e milhares foram deportados para colónias infectas.

Basta lembrar o extermínio dos índios, a escravatura dos negros e a sua discriminação violenta até ao presente na dita pátria do liberalismo; o crudelíssimo colonialismo belga; a invasão da Coreia o apartheid pela minoria branca na África do Sul em moldes nazis; a invasão da Coreia e do Vietnam; a chacina de um milhão de comunistas na Indonésia apadrinhada pelos EU; os  mortos sem conta no Afeganistão desde o derrube do governo socialista até aos nossos dias; no Iraque; na Síria. O capitalismo é uma longa história de barbaridades. A finalidade do anticomunismo tem sido desviar a atenção dos crédulos.

Mais uma questão em que convém ver claro: a necessidade de substituir o Estado burguês por um Estado do proletariado (e seus aliados) implica a sua destruição e toda a destruição é violenta, como decorre da definição.  Mas não significa de modo algum violência física, eliminação física das pessoas que nele se ocupam. Por mais violenta que tenha sido a resposta à reacção violenta da classe dominante, nenhuma revolução conhecida exterminou fisicamente os funcionários públicos…

A tática do terror

  Semear o terror através da violência e da disseminação de boatos foi a tática aplicada pelos nazis. Não foi indiscriminada, desprovida de finalidades (lembremos o incêndio do Reichstag). Em 1918 surgiram com a máxima brutalidade os Frei Korps, embrião do futuro partido nazi, unidades paramilitares de direita. É verdade que em determinado período verificaram-se alguns ataques violentos à propriedade por parte de grupúsculos anarquistas, censurada pelos dirigentes da esquerda marxista. A propaganda dos conservadores empolou esses atentados estendendo-os a toda a esquerda. O SPD (Partido Social-democrata) não se livrou da acusação: foi ilegalizado a seguir à tentativa de assassinato do imperador Guilherme I. Algumas organizações radicais de anarquistas eram constituídas por estudantes e pequenos homens de negócios frustrados, e aventureiros do lumpemproletariado, que ofereciam à polícia a justificação que esta desejava para reprimir a esquerda. É preciso que se diga que a grande maioria de anarquistas rejeitava o homicídio como modo de atuação política. Em Portugal os «carbonários» que assassinaram o rei, eram maçons e não anarquistas. Desde o século anterior que a propaganda conservadora aristocrática-burguesa apelidava de “terroristas” todo e qualquer anarquista, independentemente de serem realmente grupúsculos voluntaristas e isolados, ou de serem voluntariosos adeptos do cooperativismo pacífico e reformista. É certo que, como o dissemos, o “sindicalismo-revolucionário”, típico das primeiras décadas do século XX, muito forte na Itália e Espanha, propugnava derrubar a burguesia por meio da “greve geral” prolongada, e isso não sucederia sem alguma violência. Mas sem terror. A ala esquerda do SPD alemão, de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, fundadores da Liga Spartacus (1916), não advogaram nunca o recurso à violência que não fosse na insurreição revolucionária das massas operárias. Jamais ao terror.

Por conseguinte, a tática do terror não esteve, nem está, inscrita na matriz ideológica marxista, e nem mesmo anarquista. Foram os nazis que a utilizaram sobre o povo alemão, os judeus, os comunistas e outros democratas. Sob um clima de medo viveram os portugueses na ditadura mais longa da Europa.

No século vinte o povo de esquerda do Chile conheceu o terror da ditadura de Pinochet, o povo do Vietnam, do Laos e do Camboja, viveu e morreu sob o terror da invasão genocida dos EUA. Os britânicos massacraram o povo grego pró-comunista no pós-guerra, quem mais se lembra deste morticínio? E o que foi a “Guerra Fria” senão intermitentemente períodos de terror?

Em suma: a Teoria Crítica de Marx (nomeadamente expressa em termos de táticas em O Manifesto Comunista e A Guerra de Classes na França) não advoga o terrorismo. Quem o utilizou foi o nazi-fascismo. Quem a elas recorre frequentemente é a CIA e os Altos Comandos político-militares da administração norte-americana, armando e treinando os recentes terroristas neonazis do chamado ISIS.

A propaganda imperialista intoxica o povo americano há décadas continuamente com o espectro do chamado “Grande Terror”. A repressão política que se verificou no período que precedeu a agressão nazi não foi fruto de uma estratégia política deliberada, inscrita no projeto de construção do socialismo, mas precisamente devido às ameaças externas e às conspirações internas, ao medo e à suspeição. Não se negando de modo nenhum tais factos, brutais e excessivos, é necessário dizer que não foram fruto de uma ideologia. Esse foi o caso do regime nazi: desde o início toda a ideologia e todo o programa do partido de Hitler foi instaurar o terror interna e externamente para alcançar o poder absoluto e inocular nas massas ódio e desprezo por inimigos inventados. Tal se verificou também na sangrenta repressão do povo republicano-socialista; nas valas comuns cujo paradeiro ainda se desconhece ficou assinalado o ódio homicida dos fascistas espanhóis. Se o povo viveu sob o terror nos países do socialismo, porque não se assistiu à irrupção de um ódio coletivo e de uma vontade de justiça espontânea e violenta contra os dirigentes e os membros das polícias aquando da “queda do muro”? Quando se esperava uma guerra civil na Polónia (alguns a desejaram) - o povo “oprimido pelo comunismo” linchando nas ruas os tiranos- nada disto aconteceu. Nem na RDA.

Fala-se no terror revolucionário; porque não se fala no terror contrarrevolucionário?

 

Capítulo III- A doutrina fascista

A doutrina fascista nada tem que ver com o marxismo e as revoluções populares socialistas. Teve como antecedentes não Marx, mas Charles Maurras (1868-1925), não o comunismo, mas o “nacionalismo integralista”. Não os partidos operários socialistas, mas a Action Française. Não os filósofos socialistas do século XIX (Saint-Simon, Owen, Cabet, Marx, etc.), mas De Maistre e Bonald. Combateram as repúblicas liberais não em nome de mais democracia- democracia popular-, mas contra a democracia. A doutrina fascista vem, sim, dos “feixes” (fasce) de Milão (“feixe democrata cristão”). No início da Primeira Guerra Mundial surgiram os “feixes de combate” chauvinistas, a favor da intervenção italiana. Em 1917, denominam-se “feixe de defesa nacional”. Mussolini vem do feixe milanês criado em 1919, que se funde com o partido nacionalista. Dispõem de uma doutrina: unificar as multidões sob a unidade do Estado. Ter-se-á constituído já em 1914 ideologicamente por essa altura. Para a formação dessa atmosfera ideológica contribuíram decisivamente os intelectuais D´Annunzio, Barrès, Sorel, Ezra Pound. Exaltam a nação e a violência das massas (guiadas pelas hordas de provocadores), recusam o marxismo que odeiam, cultivam o irracionalismo, manipulam os medos burgueses pela agitação social, exigem a restauração da ordem. «Tudo no Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado», Mussolini. Uma amálgama doutrinária sem teoria.

Os lucros do patronato

A crise de sobreprodução de 1929 que provocou a forte diminuição dos lucros do patronato ofereceu a oportunidade que o nazismo procurava. O grande patronato estava desejoso de fazer acabar de uma vez por todas com as concessões a que se vira obrigado após a I Guerra Mundial para impedir a revolução, cedendo à pressão da social-democracia. A Confederação Geral Sindical alemã, ligada ao SPD (Partido social-democrata) ao mesmo tempo que anunciava as suas conquistas, assinava com o patronato um protocolo secreto que dava a esta largo espaço de manobra. Antes e durante a crise de 29 os reformistas colaboraram, a seu modo caraterístico, com o grande patronato dito “liberal”. Somente perante a ameaça da ascensão nazi tentaram uma aproximação com os comunistas, anteriormente sempre recusada. O grande patronato sempre havia detestado a República liberal de Weimar (1919-1933). O SPD aliara-se de facto, embora secretamente, ao Estado-maior das Forças Armadas para, em conjunto, desarticular a agitação operária O movimento operário sempre se mostrara a favor de fazer avançar as potencialidades progressistas da República. Não em abatê-la.

Entretanto, a Alemanha tornou-se a maior devedora internacional dos EUA e o capital estrangeiro impôs condições draconianas, tal como faz hoje em dia aos países do sul. Todos os meios serviam para atacar os salários perante o colapso dos mercados e a baixa da taxa média dos lucros. Da parte dos credores internacionais (EUA) não se manifestava relutância alguma pela ação “direta” do Partido Nazi, bem pelo contrário. E o SPD? Desempenhava muito bem o papel de “médico de esquerda à cabeceira do capitalismo”…que o enjaulou juntamente com os comunistas. Em suma: o lucro é a razão de existir do capital. Para o elevar todos os meios valem.

 

O “totalitarismo”

Em Itália o fascismo mostrou-se desde logo como alternativa ao Estado liberal porque este não se mostrava capaz de impor autoridade nos sindicatos livres operários. O Estado liberal baseia-se teórica e juridicamente na “livre iniciativa do indivíduo”, o Estado fascista diz-se “orgânico” na “colaboração e integração das classes”. A “unidade do Povo” exprime-se na Nação (“A Nação não se discute”, declarava Salazar, parafraseando Mussolini). Artigo I da Carta do Trabalho (1927): «a Nação é um organismo dotado de existência, objetivos e meios de ação superiores em poder e duração aos dos indivíduos isolados ou em grupos que a compõem…Unidade ética, política e económica, realiza-se integralmente no Estado fascista».

A expressão «Estado totalitário» é lançada pela primeira vez pelo discurso de Mussolini em 28 de Outubro de 1926. A expressão e a doutrina do “totalitarismo” têm, portanto, origem fascista. Correspondem integralmente, e por vezes literalmente, às narrativas que fizeram de si mesmos regimes fascistas em países diversos (Alemanha, Hungria, Roménia, Croácia). O caudilho Francisco Franco em um dos primeiros discursos após o triunfo declarou o novo Estado como «totalitário» e explicou porquê.

O Estado fascista, o “Corporativismo”, dirige não só o tempo de trabalho dos produtores como o tempo depois do trabalho. Organiza, controla e vigia a vida toda do trabalhador. Submissão absoluta e coerciva do operário. Destruição da sua cultura e consciência de classe.

  Admite que existem necessariamente classes sociais diferentes, mas passam a ficar integradas em “corporações” sob a chefia do estado. Abolida a independência e separação de poderes, quem manda é o chefe do Executivo, o parlamento ou é abolido ou esvaziado de qualquer poder, anulam-se as liberdades políticas; as polícias e os juízes vigiam, prendem e torturam os suspeitos de delitos de opinião. A noção liberal e os direitos correlativos, da esfera privada da vida dos indivíduos, é eliminada. Proíbe-se o sindicalismo autónomo, considerado principal fator de desordem, os sindicatos são integrados no Estado ou abolidos simplesmente. Não se admite o conflito de qualquer género, mesmo para os patrões organizados fora do Estado. Centralização administrativa absoluta. Não se elege, nomeia-se. O Duce (ou o Führer, ou Presidente do Conselho) é que sabe, pensa, manda. Para o nazismo racista Volk (Povo) é sinónimo de Nação, enquanto comunidade da mesma raça. “Tu não és nada, o teu povo é tudo» (A. Hitler). Se o racismo não guiou a ação de alguns regimes fascistas, como no nazismo, ele, todavia, esteve manifesto naqueles países que detinham colónias, como se verificou com o colonialismo italiano (os massacres na Etiópia) e português (o racismo dos portugueses na ferocidade das conquistas, no tráfico de escravos, nas guerras coloniais).

A Nação e os seus mitos

O desenvolvimento contraditório da Modernidade produziu novos mitos e utopias, como bem esclareceram Horkheimer e Adorno na obra conjunta «Dialética da Ilustração». O mito do Progresso contínuo que viria trazer a felicidade coletiva pela mão do Capital foi desacreditando-se pela prática e entrou em colapso com a hecatombe da Primeira Guerra Mundial. É então que o mito da “Nação” vem competir com a utopia messiânica – que também se propagou- de uma Revolução mundial que realizaria de uma vez por todas as aspirações à paz e à igualdade universais. Os nacionalismos encontram um solo fértil no fim dos impérios austro-húngaro e otomano e oportunistas de todos os matizes aproveitam a fragmentação para provocar divisões em comunidades que antes conviviam com os seus diferentes credos religiosos, tradições e culturas, acicatam ódios entre vizinhos, fomentam vendettas. É nos países, alguns de recente formação, onde as burguesias necessitam de um mercado interno unificado, que a aspiração à independência é alimentada por doses maciças de propaganda a favor de nacionalismos “redentores”. É nessa atmosfera, sob esses interesses regionais conflituantes, que o nacionalismo italiano se denomina «fascismo».

Nos anos precedentes à Primeira Guerra Mundial encontram-se traços de nacionalismos, associados para efeitos de justificação ao racismo, em países que aparentemente não se esperaria: na Grã-Bretanha de Churchill, nos EU de Theodore Roosevelt. A Primeira Guerra revigora esses racismos que visam «naturalizar» ou «biologizar» as diferenças e excluir o inimigo da verdadeira espécie humana: os teutónicos a ocidente, os “genuínos” japoneses a oriente contra os «brancos» e os «amarelos». Deste modo ficavam justificados os morticínios de massas, bombardeamentos de civis, espoliação de territórios, escravaturas. A I Primeira Guerra Mundial foi uma carnificina alimentada pelos nacionalismos. Não foram os fascismos que inventaram os nacionalismos.

O antissemitismo é geral, desde a Europa aos EUA, mas o racismo nazi antijudaico é adaptado: podem ser outras raças e outros povos. O que importa é estabelecer uma diferenciação entre autóctones e estrangeiros, puros e impuros, superiores e inferiores, senhores e escravos. Nos EUA são os negros.

O nacionalismo transporta um sentido negativo pelo cortejo de violências a que conduziu em múltiplos exemplos na Europa que culminaram na Primeira Guerra Mundial. Não se jogue fora, porém, o direito à autodeterminação dos povos que se sentiam oprimidos por nações estrangeiras ou no interior de impérios serôdios. O programa dos bolcheviques relevava claramente esse direito universal e não o subsumia sob a palavra-de-ordem do internacionalismo proletário. Os textos de Lenine não deixam dúvidas. Contudo, Lenine endereçou duras críticas às conceções nacionalistas do partido social-democrata austríaco, nomeadamente, mas também às teses de Rosa Luxemburgo a propósito do caso polaco. Tais conceções dividiam a classe operária dentro de cada território do império austro-húngaro, opunham os operários uns contra os outros, em vez de, sob a bandeira do internacionalismo, defenderem a autodeterminação da Áustria, Hungria, Checoslováquia, etc. contra a burguesia. A então famosa definição de Otto Bauer segundo a qual «A nação é o conjunto dos homens vinculados por uma comunidade de destino em uma comunidade de carácter» não colheu aceitação alguma por Lenine. De facto, a conceção de Bauer retirava ao capitalismo toda a sua natureza exploradora e às nações a discórdia interna. Apesar do seu erro fundamental o livro de Bauer foi uma primeira tentativa de avaliar o processo de integração que deu origem à nação moderna, utilizando categorias marxianas. Aí desenvolvia a tese de que as particularidades nacionais, as identidades, não desaparecerão, antes reforçar-se-ão com o desenvolvimento do capitalismo. Os acontecimentos nas primeiras décadas do século na Europa e Médio Oriente (a ascensão da nova Turquia e a guerra brutal com a Grécia) pareceram demonstrar a tese; as lutas de libertação nacional no “Terceiro Mundo” outro tanto. O problema é que as ideias de Bauer, Renner e Adler, apontavam para a possibilidade dos nacionalismos diminuírem, senão mesmo eliminarem, as lutas de classes e a necessidade de revoluções nacionais no espírito do internacionalismo proletário que devia unir a classe operária europeia e mundial, espírito esse expresso na III Internacional, contra o liquidacionismo da II. Contudo, o revisionista Kautsky criticou acerbamente as conceções de Bauer e Renner considerando-as prejudiciais à união dos sociais-democratas. As teses de Bauer colidiam com a orientação que dominava a II Internacional, a qual considerava, pelo contrário, que as nações se aproximariam entre si conforme se desenvolviam os processos económicos.

Como se sabe, Marx e Engels não puderam desenvolver a questão das nacionalidades, muito embora encontremos elementos de um seu enfrentamento a propósito da questão irlandesa (carta de Engels a Kautsky de 7 de Fevereiro de 1882). Nos inícios do século vinte urgia esclarecê-la. Foi o que quis fazer Otto Bauer com a obra que referimos (1907) e, mais tarde, Estaline em 1913 por incumbência de Lenine («O marxismo e a questão nacional»). Bauer enfatizou para a formação de uma nação a identidade e a autonomia cultural; Estaline, o território comum e a coesão económica (a formação de um mercado nacional). O texto de Estaline, com o aval de Lenine, fez escola na III Internacional. O chauvinismo nazi não pretendeu “realizar” o programa de Bauer: o nacionalismo militarista e expansionista que está no cerne do imperialismo foi a consumação exacerbada das rivalidades inter-imperialistas da Primeira Guerra Mundial.

As potências do EIXO

O Japão com uma moderna industrialização, vencedor da guerra com a Rússia czarista, necessitava de recursos, matérias – primas e mercados. A Manchúria e a China eram os alvos prioritários, seguir-se iam, depois, a Coreia, a Ásia toda. As forças liberais e pró-ocidentais perderam o apoio popular perante a impetuosa corrente chauvinista, militarista e imperialista, que o divino imperador abençoou na década de trinta.

A economia mundial desmoronou-se em 1929. Vastas ondas de desemprego assolaram todos os países em todos os continentes. Multidões de trabalhadores desesperados deambulavam pelas avenidas de Berlim e de Tóquio. A crise global do capitalismo provocou o início das revoltas anti coloniais e os impérios começaram a abrir brechas irreversíveis. O liberalismo mostrava-se incapaz de solucionar a crise, parecendo mesmo agravá-la, incapaz de calar o descontentamento. A leste, todavia, a União Soviética vencera invasões e guerras civis e mostrava-se quase imune ao colapso iminente da economia mundial, com o sucesso dos seus planos quinquenais. A Suécia salvava-se também da hecatombe com governo sociais-democratas e um pioneiro Estado Social. O capitalismo do seculo XIX chegava ao fim. Realmente entrava na fase dos monopólios e, por isso, exigia novas formas de dominação e regulação. O fascismo tornara-se uma solução, com alguns sucessos sobre o desemprego na Itália.

As instituições liberais sobreviveram bem até ao início da Primeira Guerra Mundial. À época quase todos os países europeus tinham regimes baseados em eleições e instituições parlamentares. Entre o fim da Guerra e a Depressão decorreu um breve período de alguma estabilidade social, com satisfação de reivindicações operárias e fortalecimento dos sindicatos.

 No início dos anos trinta tudo isso terminou ou foi profundamente abalado. Com a Grande Depressão vai conhecer-se a ascensão do nazismo e do fascismo.

Uma onda reacionária parece varrer os valores que até há poucos anos prevaleciam nas burguesias em geral e nos trabalhadores: sistemas eleitorais, parlamentos com amplos poderes, direitos e liberdades públicas e individuais, incluindo a greve, movimentos trabalhistas, importantes partidos sociais-democratas, partidos comunistas eleitoralmente minoritários mas poderosos. Tanto partidos burgueses como partidos com base operária defendiam os valores herdados do iluminismo e do liberalismo, exceto a Igreja católica, último bastião do Antigo Regime, assim como alguns filósofos e artistas que vociferavam contra a Modernidade e a rebelião das massas.

Mas tudo isto recua no início dos anos trinta. A ascensão do partido nazi difunde a Nova Ordem por toda a Europa. Não foi um mero slogan, foi uma realidade sob o punho de ferro da ocupação militar e através de uma manifesta adesão das ditaduras desde o centro à periferia atlântica. 

O nazi-fascismo não foi uma reacção de “defesa” contra a União Soviética, que realmente não constituiu uma ameaça, porém serviu-se dessa inventada justificação. Foi um ataque em toda a linha e com antecedentes. Não foi exclusivamente o comunismo, a Revolução Russa, que provocou a adesão e viragem de algumas burguesias liberais para a solução nazi-fascista. Haviam falhado as revoluções na Europa central, os partidos comunistas eram minoritários e nalguns países francamente irrisórios, a social-democracia pelo menos até à década de trinta era o principal esteio dos regimes liberais por toda a Europa do norte e centro, com destaque para a Inglaterra e França. Portanto, donde vinha o perigo? Na Direita nem todos eram, evidentemente, fascistas, alguns vieram até a ser reprimidos pelo nazi-fascismo, mas eram quase todos antiliberais, advogando governos fortes, autoritários, ao colo de militares “glorificados” na I Guerra Mundial. Não eram pois as revoluções comunistas o perigo para as instituições e valores liberais. Não foram elas que derrubaram os governos liberais. A subversão veio de dentro da burguesia, dos setores hostis ao poder reivindicativo dos movimentos trabalhistas, às conquistas operárias, à luta de classes. Os conflitos sociais fortaleceram as polícias e os militares, converteram-nas em bastião defensivo da ordem pública. Na Europa, no Japão, na América Latina. O anti-sindicalismo espalhara-se, expressão do desconforto pela diminuição da taxa de lucro, pelos salários demasiado elevados na ótica dos capitalistas, pela diminuição das horas de trabalho (8 horas). Estes conservadores não eram de início fascistas mas foram se inclinando conforme os sucessos da Alemanha nazi. Muito embora alguns tivessem raízes mais antigas, nalguns casos sob forte inspiração dos valores tradicionalistas e reacionários da Igreja católica, todos tinham em comum com o nazi-fascismo o anti-socialismo na economia e a vontade de domesticar a classe operária. A igreja católica não apadrinhou o nazismo, que se mostrava “pagão”, preferiu apoiar regimes corporativos fascistas, isto é, ao modo lusitano e croata, espanhol mais tarde. O que ela odiava era o “comunismo ateu”.

Salazar dirá em 1940 que ele e Hitler estavam «ligados pela mesma ideologia».

Os nazi-fascistas não possuíam uma doutrina política coesa e consistente. Nem eram em toda a parte puramente “tradicionalistas”, exceto naquilo que lhes convinha (os grandes proprietários rurais) e não se confundiam com os partidos conservadores, ainda que boa parte destes os apoiassem. Apresentavam-se como “revolucionários”. O nome “nacional” agradava aos conservadores desejosos de protecionismo dos seus mercados, o nome “socialista” confundia um pouco, porém os mais astutos percebiam que era apenas uma “treta”.

Os comunistas caracterizavam certeiramente a nova fase, superior ou suprema, do capitalismo, como imperialismo e formação e dominação dos monopólios, decorrendo daí a necessidade e urgência das revoluções socialistas. Esse estádio gerou, porém, não as revoluções socialistas, mas as “revoluções” nazi-fascistas, essas sim adequadas ao novo estádio.

As origens de Benito Mussolini

Ideologicamente o fascismo italiano foi a reacção chauvinista contra o enfraquecimento do Estado considerado socializante e, obviamente, contra o comunismo “internacional”.

O termo vem do século XIX: fasce, em Milão “feixe democrata cristão”. No início da Primeira Guerra Mundial surgiram os “feixes de combate” adeptos da intervenção italiana. Em 1917, foi criado o “feixe de defesa nacional”. Mussolini vem do feixe milanês criado em 1919. Esta organização funde-se com o partido nacionalista. Os nacionalistas de direita gozam do apoio de importantes intelectuais. Aglutinaram ingredientes que já circulavam e forjaram uma doutrina: unificar as massas sob a unidade do Estado. Ter-se-á constituído já em 1914 ideologicamente por essa altura, ou culturalmente, sob influência de D´Annunzio, Barrès, Sorel, Ezra Pound e outros intelectuais célebres. Proclamavam a exaltação da nação e a violência das massas, a recusa do marxismo, ou extraem deste fórmulas que possam agradar a operários. A restauração da ordem do todo (Nação, Estado) sobre o indivíduo, nada tem de marxista. «Tudo no Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado», proclamava Mussolini. Onde é que tal coisa se encontra nos textos de Marx, Engels e Lenine?

Mussolini na juventude recebeu a influência do seu pai o qual fora socialista e do “sindicalismo revolucionário” de Georges Sorel, e em 1905 dirige um jornal de esquerda. Contudo, todo o seu comportamento, desde jovem, tinha sido de um tipo arruaceiro, arrivista. Uma personalidade atraída pela “ação direta”, pela tática da greve geral insurrecional e pelas técnicas de agitação e oratória populista e demagógica. Extremamente vaidoso como era gabava-se de ter conhecido V.I. Lenine na Suíça e Afirmou que conhecera Lenine na Suíça por volta de 1902 mas nada prova que este o tivesse elogiado. Trabalhou no jornal L´Avvenire del Lavoratore e foi secretário da União dos Trabalhadores italianos em Lausanne. Em 1908 foi secretário do partido trabalhista de Trento. Em Milão, em 1910, editou o jornal semanal Lotta di classe. Chefiou o jornal socialista (social-democrata) Avanti! Tendo apoiado a intervenção na Guerra foi expulso. O jornal era financiado pelo governo britânico e infiltrado por agentes deste, para assim defender o intervencionismo ao lado da Inglaterra. Em 1910 organiza os Fasci di Combatimento, embrião do Partido fascista, com bandos de rufiões. Serviu-se do socialismo para arregimentar socialistas. Mussolini foi um traidor, prestou serviços à polícia britânica e italiana e provocou a desordem social para assim impor a ordem fascista contra a classe operária. A Itália estava dividida, uma reunificação dificultada pelos numerosos dialetos, tradições e autonomias regionais, diferentes ritmos de desenvolvimento que ainda hoje persistem, lenta introdução das relações sociais de produção capitalistas nos campos. Sob uma intensa propaganda nacionalista o regime fascista de Mussolini respondia à necessidade do capital de um mercado interno e, por outro, à conservação de estruturas agrárias latifundiárias e arcaicas. Serviu essa aliança, apoiando-se nos medos da pequena lavoura pelos efeitos da modernização e, sobretudo, pela “coletivização” esgrimida pelos socialistas e anarquistas.

É verdade que não podemos desligar o acontecer histórico do comando de determinadas personalidades. Mussolini soube organizar e dirigir um movimento de massas que o alcandorou à chefia absoluta de uma ditadura com inegável apoio social. Possuía o tal carisma que Weber previra para as novas lideranças do século capitalista. Fora contra a guerra e logo mudara de opinião. Alcançara prestígio nos combates. No termo da guerra o antigo socialista passou a fura greves e agressor de pobres operários que pediam pão. Com isso ganha a simpatia dos grandes proprietários que lhe enchem os bolsos de dinheiro. Torna-se um homem riquíssimo, tal como sucederá com Hitler. Com financiamentos, nacionais e estrangeiros, arregimenta antigos oficiais e soldados desmobilizados, veste-os com “camisas negras” e dedica-se a assassinar sindicalistas, comunistas e antigos camaradas socialistas. Em 1922 a Federazione industriale, dos patrões, financia a “Marcha sobre Roma”. Foi, portanto, o homem escolhido pelo capital para manter a taxa de lucro, baixando os salários e aumentando o tempo e os ritmos de trabalho. O Estado fascista assume essa missão: diminuição dos impostos e benefícios fiscais para o grande patronato. O movimento operário havia sido forte, mas não tão forte que propusesse tomar o poder. Ainda assim era preciso “quebrar a espinha” aos sindicatos. Não foi outra a finalidade do Estado fascista, na Itália e em toda a parte: tornar mais ricos os que eram já ricos. Que viria a acontecer na Alemanha? No fundo, a mesma coisa. Era necessário elevar a taxa de lucro e eliminar consequentemente os direitos conseguidos na República de Weimar. Surgem os terroristas das SA. Em 1930 os ricos financiam o partido nazi e tornam Hitler um homem rico e poderoso. Com grandes meios e o terror nas ruas, os nazis obtêm 37% dos votos, vindos na sua maioria dos conservadores, da pequena burguesia e dos desempregados. Não da classe operária que se mantem leal aos comunistas e social-democratas. Quando nas eleições seguintes os nazis descem significativamente na votação, o partido comunista alemão propõe aos dirigentes social-democratas uma coligação contra os nazis. A resposta é “não”. Lembremos que em 1924 o ministério do interior entregue aos social-democratas na República de Weimar recorre ao exército, e fecha os olhos convenientemente à intervenção das hordas paramilitares nazis, para reprimir movimentos grevistas e manifestações de rua, aprisiona 700 operários e proíbe os jornais do PC. O que fazem os nazis logo que Hitler é nomeado chanceler? O mesmo que Mussolini e o mesmo que Salazar mandará fazer em Portugal. As leis sobre o salário mínimo, as horas extraordinárias, as regulamentações sobre a segurança no trabalho, foram revogadas imediatamente (os salários baixaram 25% a 40% (50% na Itália). Privatizaram-se empresas rentáveis. Distraiu-se a populaça com os Jogos Olímpicos e espetáculos cinematográficos. Para fugir à recessão provocou-se a guerra, construíram-se estradas modernas para os tanques. A IGFaber, a KRUPP e outras empresas monopolistas esfregaram as mãos de contentamento. A escravatura que chegava do Leste era um manancial…

Diferentes as ditaduras na Itália, Alemanha, Portugal, Hungria, Roménia, etc.? Sim, mas realmente idênticas nas finalidades e nos meios. Como é que o nazismo, que não possuía de facto uma doutrina mais do que chauvinismo e racismo, evoluíra da filosofia de Marx? Pura calúnia.

Os socialistas do século XIX defenderam ideias que iam para além do puro liberalismo, e não a Economia Política do capitalismo. Todos queriam nos seus programas o socialismo, o fim do capitalismo explorador e a igualdade social. O que os dividiu foram condições diferenciadas: na Alemanha de Bismark o partido socialista operário, acreditando que do sufrágio livre e universal chegava-se ao socialismo, enveredou pelo revisionismo e pela social-democracia. Logo nos inícios do século condições particulares conduziram à separação dos partidos operários em social-democratas e comunistas. Mais nacionalistas uns do que os outros, nenhum deles, na realidade, originou a ideologia nazifascista. O socialismo era um projeto comum, fossem quais fossem os meios.

Outra confusão que necessita ser esclarecida: o que distinguia os socialistas do século dezanove dos restauracionistas antiliberais era que os primeiros queriam o progresso, os segundos o regresso ao Antigo Regime. A Primeira Guerra Mundial foi muitíssimo mais brutal que a insurreição bolchevique na Rússia em 1917 (praticamente sem vítimas) e foi uma guerra não de comunistas mas entre capitalistas que usaram os povos como carne para canhão. A guerra na Rússia revolucionaria conduzida pelos “Brancos” e pelas potências estrangeiras ceifou quase todo o proletariado.

O que distinguia os partidos socialistas de todos os outros era a rejeição da propriedade privada capitalista. Tal coisa nunca foi o programa dos nazi-fascistas.

As lutas do proletariado no século XIX exprimiram-se de várias e diferentes formas, com protagonistas diferentes. O marxismo impôs-se em alguns países contra outras correntes de pensamento: os anarquismos, o Proudhonismo, o “sindicalismo revolucionário”. Com a formação de partidos socialistas inspirados no marxismo, o ódio da classe capitalista dirige-se preponderantemente contra o marxismo.

A Associação Internacional de Trabalhadores (IWMA) proporcionou serviços bem reais aos trabalhadores, “empenhada numa mundividência assente na classe e não em princípios raciais ou étnicos. Numa altura em que muita gente, se não mesmo a maioria, aceitava as diferenças raciais como demonstradas “cientificamente”, o contra-exemplo da Associação destaca-se como clara exceção.” 

O Partido Social Democrata da Alemanha (SPD), 1878, foi dirigido pelos marxistas August Bebel e Wilhelm Liebknecht, assassinados pelos nazis. Como se atrevem a afirmar que o nazismo teve origem no marxismo?

Os anarquistas começaram por aplicar a “ação direta” (recorrendo a táticas de violência) para mais tarde, depois de repressões sobre os seus efetivos, optarem pelo “sindicalismo revolucionário”, que acreditava preparar pela propaganda as massas para a greve geral que arruinaria o capitalismo. A Confédération Générale du Travail (CGT) foi fundada por um anarquista.

Nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial, todos os países de regimes liberais reprimiram violentamente as associações e greves operárias. A Grã-Bretanha usou menos da repressão direta, porém reforçou substancialmente as polícias e os espiões.

Os dois governantes efetivos da Alemanha desde 1916, Generais Hindenburg e Ludendorff, foram importantes apoiantes do nazismo. Que tiveram de comum com o marxismo?

Se os crimes cometidos por revolucionários no fogo das guerras civis estão inscritos na matriz ideológica (a tal “ideia comunista”), segue-se logicamente que os crimes cometidos pelos liberais estão inscritos na “ideia liberal”; pelos sociais-democratas na “ideia social-democrata”, pelos cristãos das cruzadas, inquisição e conquistas ultramarinas, na “ideia cristã”, e assim por diante. O raciocínio perde todas as referências e acaba-se no mais completo pessimismo para o qual todas as ideias são nefastas. Na realidade as ideias resultam de condicionalismos históricos nos quais as classes e os seus conflitos assumem um papel fundador. O cristianismo e o liberalismo desempenharam um papel progressista nas suas épocas. Revelar as suas origens subversivas no contexto das épocas é a atitude científica básica e ter em consideração aquilo que neles ainda permanece de favorável para as lutas de emancipação dos trabalhadores e de toda a humanidade. Perigosas são aquelas doutrinas que em nada beneficiam, pelo contrário pretendem justificar a liquidação física de povos e de etnias, e proíbem os direitos e liberdades mais elementares.

Capítulo IV- As Revoluções que abalaram o mundo

A Revolução Soviética

No século XIX a classe operária e a pequena burguesia encetaram revoltas e revoluções contra a dominação da aristocracia e da grande burguesia. A história das revoluções liberais e populares em Portugal constitui um repositório de ensinamentos sobre as divisões conflituantes da burguesia, as traições dos burgueses ricos (os “novos barões”). Também nós tivemos uma tentativa, em Setembro de 1936, de uma revolução plebeia e pequeno-burguesa reprimida ferozmente. Também em Portugal os ideais liberais foram atraiçoados com manha e vileza.

A Revolução russa de 1917 veio confirmar a tese política fundamental de Marx e Engels: cabia à classe operária o papel revolucionário que já coubera à burguesia. A burguesia havia muito tempo que deixara de ser revolucionária. Esta direção atribuída à classe operária de qualquer país distingue o marxismo de qualquer “revolução” nazifascista. No quadro das novas lutas de classes-entre o proletariado e a burguesia- o fascismo nunca poderia ter surgido do marxismo fosse em qualquer versão revisionista deste. A palavra “socialismo” no partido de Hitler era um embuste.

Os Sovietes de Deputados dos Operários e Camponeses, na Rússia, em nada se equiparavam no programa e nos métodos com as organizações nazifascistas de assalto ao poder. As Teses de Abril, de V. I. Lenine, apontavam vias e objetivos revolucionários que em nada foram imitados pelo nazismo na década seguinte à Revolução de Outubro de 1917. Em que é que a ditadura do proletariado, objetivo central da Teoria marxiana, se assemelhava ao programa nazifascista?

A definição das etapas e das reivindicações prioritárias (a Paz, a terra a quem a trabalha, todo o poder aos sovietes) democráticas e socialistas da revolução, não se assemelhavam em nada com os programas fascista italiano e, mais tarde, nazista.

  Sob a liderança de Lenine e, depois, de Estaline, acelerou-se a formação rápida de cooperativas e quintas estatais dando terra a quem a trabalhava, distribuiu-se a maquinaria agrícola que novas fábricas, geridas pelos trabalhadores, produziam, o que permitiu aumentar extraordinariamente a produtividade nos campos, colonizar vastas terras agrícolas, regular a distribuição e regular os preços. Foi resolvido o problema gravíssimo da fome e criou-se o pleno emprego. Se tal não fosse realizado, se a industrialização conforme os planos quinquenais não se tivesse realizado, a União Soviética não estaria preparada para a guerra e seria derrotada pelos nazis. Imagine-se então as consequências. Todos os governantes do Ocidente o compreenderam e não foram poucos os que manifestaram a sua surpresa e os seus elogios. Surpresa maior tiveram-na os nazis…Parece-me que esta questão é crucial quando se analisa e se debate o papel de Estaline. Foi o líder de uma revolução profunda das forças e relações de produção e o maior cabo-de-guerra da época considerando que foi o Exército Vermelho que derrotou a Alemanha. Foi na batalha de Estalinegrado que o futuro da humanidade se decidiu. Foi aí que começou, imparável, a derrota da barbárie. É isto que se esconde aos telespetadores metodicamente. Se não tivesse acontecido esse feito absolutamente histórico provavelmente a Segunda Frente, a dos Aliados ocidentais, não se teria aberto (os EU ocupavam-se da sua guerra no Pacífico). Abriu-se até bastante tarde, à espera da derrocada da União Soviética. O papel de Estaline foi, bastaria isto para o ser, enormíssimo. 

A Revolução Chinesa

  Em 1931 o Japão invade a Manchúria. A aliança dos comunistas com o general Chiang Kai-shek começa a claudicar: o general nacionalista combate mais os comunistas que os japoneses invasores. Em 1937 os exércitos japoneses chegam ao coração da China. Face ao poderia militar fascista os comunistas organizam-se em guerrilhas. O Exército Vermelho conquista a Manchúria e, daí, virá um golpe letal sobre os exércitos inimigos. O Japão fascista rende-se, como se sabe, em 1945. Em Julho de 1946 Chiang Kai-shek lança contra os comunista uma ofensiva geral, com armamento norte-americano. A União Soviética comete um erro clamoroso ao reconhecer o governo, que parecia definitivamente vitorioso, do generalíssimo, o qual não perde tempo para tirar o devido proveito. É derrotado, porém, pela brilhante estratégia do cerco das cidades pelos camponeses, cujo mérito cabe a Mao Zedong. Por conseguinte, as forças comunistas recebem apoio decisivo (sem o qual não teriam triunfado) das populações dos campos. Para a luta de guerrilhas Mao inspirou-se nas lendárias rebeliões dos chamados «bandidos sociais», classificação que não deve ser descontextualizada das experiências e tradições populares chinesas que conservavam na memória coletiva as insurreições camponesas contra os latifundiários e «senhores da guerra». O romance de Rodrigues dos Santos é uma falsificação grosseira da história chinesa, tal como o é relativamente à época da coletivização da agricultura na União Soviética. Mao Tsé-Tung, tal como a esquerda e o povo paupérrimo chinês, tinha apreço e soube compreender o papel desempenhado pelos “bandidos sociais” que atentavam no passado contra a propriedade, ou meros vagabundos que deambulavam pelos campos, desesperados pela fome, marginais excluídos da sociedade, e acreditou que poderiam ascender à consciência politica e ideológica, através da prática, essa dimensão que ele tanto enfatizava. Foi isto que sucedeu e não o que o escritor português anda a injetar na mente dos seus leitores crédulos.

Capítulo V – As Patranhas

Goulags

A burguesia imperialista sempre tentou apagar ou denegrir o feito histórico da vitória do povo soviético e do seu Exército Vermelho sobre as hordas nazifascistas; digo fascistas também, porque nos exércitos invasores colaboraram ativamente centenas de milhar de fascistas voluntários, de vários países europeus: espanhóis, romenos, ucranianos, franceses, italianos, portugueses; portanto, a guerra, as atrocidades sobre os povos locais e os comunistas, não foram apenas dos nazis alemães, mas também dos fascistas do resto da Europa. Sob sacrifícios inenarráveis, os comunistas e os povos da URSS desempenharam o papel decisivo para a derrota final dos exércitos nazifascistas.

Como se atrevem a comparar os campos de concentração na União Soviética (que não se negam, nem se minimizam) com os 27 campos principais e mais de 1100 campos adjacentes dos nazis, alguns dos quais foi o Exército Vermelho o primeiro a libertar? Quem foram aqueles que os nazis começaram por prender nesses campos e para os quais começaram primeiramente a construir em 1933? Para os comunistas e outros democratas. Nesses anos foram aprisionados, torturados e na sua maioria eliminados, 200 mil alemães! Os judeus apenas em 1938 começaram a constituir a maioria dos contingentes. Campos de escravatura, de trabalho forçado (cerca de 6 mil combatentes e refugiados da guerra civil de Espanha). Para quem trabalhavam? Para os grandes monopólios alemães: IGFarben – Bayer, AGFA, BASF e outras empresas, o grande consórcio de armamento Rheinmetall, que incluía a AEG, ou a Blaupunkt; a Bata; Krupp, Heinkel, BMW, Volkswagen, etc. A quem beneficiou, portanto, o regime nazi? Ainda há dúvidas sobre a sua finalidade?

No Outono de 1944 o número de trabalhadores forçados estrangeiros atingia quase 8 milhões.

Seguiram-se as câmaras de gás e os fornos crematórios. Com o gazeamento pela chamada “Solução Final” de quase 6 milhões de judeus.

 Com a abertura dos arquivos da polícia após o colapso da URSS vimos um quadro muito diferente daquele que os “documentários” propagam aos telespetadores. Comparem-se as deportações em massa, os campos de concentração, os julgamentos políticos, que os governos demoliberais praticaram desde os alvores do século XIX pelo século XX adiante e com os monstruosos crimes praticados pelos regimes fascistas e não apenas durante a Segunda Guerra Mundial, mas no decurso do século passado (Chile, Argentina, Brasil Guatemala, S. Salvador, República Dominicana, etc.). A comparação não serve para justificar os meios empregues sob o mando de Estaline, porém dá-nos uma relação esclarecedora. Estaline “sanguinário” foi uma construção com fins políticos após o seu desaparecimento. Enquanto vivo foi objeto de elogios de F. Delano Roosevelt e de Churchill tanto pelas seus resultados de política económica (a espantosa industrialização rápida num imenso país atrasado, destruído por invasões militares estrangeiras e por uma permanente guerra civil, e pela devastadora ocupação alemã) como pela vitória militar sobre os nazis. Escritores reputados, jornalistas sérios, visitavam continuadamente a União Soviética e se nem todos elogiavam o que viam, não a descreveram como agora descrevem os fascistas do presente. Com a abertura dos arquivos da polícia soviética, pôde-se estimar em 2.022.976 a população total encerrada em campos de trabalho em Janeiro de 1939, o ano crucial. Comparativamente nos Estados Unidos em 1995, 1,6 milhão de presos nas cadeias e 3 milhões em liberdade vigiada ou condicionada, sendo dois terços de afroamericanos. Não se verificou de modo nenhum exterminação sistemática, como fizeram as tropas nazifascistas (foram centenas de milhar os fuzilados pelas tropas de Franco após o triunfo destas); a maioria sobreviveu e regressou (entre os anos 39 e 40, 20 a 40%). Perto de um milhão de prisioneiros foram libertados nos inícios da invasão nazi e lutou de armas na mão. Mais de metade de todos os mortos dos goulags para o período de 1934-53 contam-se nos anos da guerra (1941-1945), em que morreram 22 milhões de cidadãos soviéticos. Nos goulags em 1953 a taxa de mortalidade baixou para 3 por 1000. Os prisioneiros por «atividades contra revolucionárias» constituíam 12 a 33% conforme os anos; a maioria restante eram presos delinquentes do direito comum. O número total de execuções de 1921 a 1953 foi de 799.455 (delinquentes criminosos, elementos comprovadamente traidores e espiões nas guerras civis e sob a ocupação alemã, soldados nazis criminosos).

 

Genocídio de classe?

  “Guerra contra os camponeses”? É certo que uma parte não despicienda de camponeses da Ucrânia insurgiu-se contra as requisições e, em várias alturas, deitou mão à luta de guerrilhas, a sabotagens de vias férreas (um comboio repleto de funcionários soviéticos foi aniquilado), linchamentos, à expulsão brutal de governantes e funcionários soviéticos. Revoltas separatistas na Ucrânia e noutras regiões foram, assim, acompanhadas por meios de banditismo puro. A repressão foi severa. Tratava-se de salvaguardar a própria vida, a principal fonte de recursos alimentares, a sobrevivência da revolução. Nada do que sucedeu, apesar da violência extrema, foi genocídio, não decorria da “ideia comunista”, nem fora movido pela vontade de etnocídio que caracterizou o nazismo. A guerra de classes que efetivamente deflagrou não tem qualquer equivalência com o holocausto dos judeus.

O «holocausto ucraniano»

Uma das peças-chave da propaganda anticomunista tem sido o que chamam o «holocausto ucraniano», ou «A Grande Fome» de 1932. O propósito de demonstrar que existiu uma política deliberada de genocídio, extermínio a sangue frio, do povo ucraniano. A extrema-direita, ao mesmo tempo que nega o holocausto dos judeus, inventa o holocausto ucraniano! O chamado Holodomor é um mito inventado pelos ucranianos nacionalistas e pelos alemães nazis, serve-lhes de “mito fundacional” para fazer crer que lutaram “pela liberdade” contra os russos soviéticos; na realidade, colaboraram com os exércitos e as SS nazis no genocídio dos judeus ucranianos e assassinaram pelas suas próprias mãos milhares de soldados do Exército Vermelho. Douglas Tottle comprovou isso no seu livro Fraud, Famine and Fascism (1988) e até o próprio Robert Conquest deixou de defender a sua antiga versão.

Esta grossa mentira constituiu parte da estratégia dos nazis de preparação planeada de invasão e destruição da União Soviética, confundindo, dividindo, promovendo sentimentos nacionalistas e de simpatia pelos alemães «libertadores». É nas fontes nazis que os «revisionistas históricos» se baseiam e em testemunhos de agentes norte-americanos que mentirosamente afirmaram ter verificado in loco a situação. Pese embora a colaboração ativa dos grupos nazis ucranianos chefiados por Stepan Bandera (o herói dos atuais nazis), o povo ucraniano resistiu com bravura à ocupação nazi. As causas reconhecidas da fome que assolou os territórios ucranianos foram o período de seca muito grave de 1932, a desorganização da agricultura ocasionada pela coletivização com pouca ordem e demasiada pressa (a formação de cooperativas pelos camponeses pobres que detestavam os kulaques, revelou-se muito mais difícil que se julgava) e a resistência feroz dos kulaques. A colheita de 1933 e uma melhor organização vieram pôr fim à fome e à anarquia. Esta peça – a chamada “Grande Fome”- da propaganda fascista atual é- preste-se atenção!- talvez a mais eficaz. É necessário divulgar pelas “redes sociais” a documentação disponível.

O Relatório

Em 25 de Fevereiro de 1956 Nikita Kruschov lê ao Congresso do partido comunista da União Soviética, em uma reunião à porta fechada, um relatório (conhecido por Informe secreto) intitulado «Sobre o culto da personalidade e suas consequências» no qual acusa Estaline de uma longa lista de crimes e erros; entre outros: responsável pelo assassínio de Kirov (dirigente de Leninegrado), repressão ilegal de membros do partido, deportações de populações inteiras por motivos políticos, impreparação do Exército Vermelho face à invasão nazi, ignorância das leis da economia, etc., etc. Estaline, cujo funeral havia sido uma grandiosa e comovente manifestação de pesar do povo soviético, aparecia subitamente como o vilão de todas as malfeitorias. Os enormes sucessos dos planos quinquenais, a espantosa arrancada das infraestruturas industriais que surpreenderam o mundo, a épica vitória sobre os mais poderosos exércitos do planeta, os elogios que Churchill e Delano Roosevelt lhe haviam prestado, o auxílio internacionalista oferecido pela URSS aos republicanos de Espanha, a Constituição da URSS, a mais avançada de todos os tempos, os direitos conferidos às diversas nacionalidades que compunham a União Soviética, tudo isto e muito mais era subitamente ignorado. 

Pois bem: se as acusações eram em grande parte falsas e ignominiosas, como a documentação posteriormente conhecida veio demonstrar, que pretendia Kruschov?

No contexto da Guerra Fria, dos nacionalismos emergentes na Jugoslávia, China, Albânia, da sublevação popular em Berlim oriental, nas lutas internas do PCUS entre grupos que porfiavam pela liderança, o Informe teve como finalidade a conquista do poder eliminando literalmente a fação dos “estalinianos” e, assim, impor um desvio direitista evidenciado pela célebre fórmula da «via pacífica».

Os inimigos das revoluções socialistas (pois a União Soviética era, para todos os efeitos, a «Pátria do Socialismo») esfregaram as mãos de contentamento: os seus argumentos pareciam encontrar ali a mais insuspeita sustentação. Ali vinha, gratuitamente e de bandeja, o retrato que lhes convinha.

O assassínio de Serguei Kirov foi perpetrado por um subalterno tresloucado, sem motivos políticos; os julgamentos de 1936-38 («Os Processos de Moscovo») foram conduzidos na legalidade, conforme a Constituição e as regras do Direito, escrutinados por numerosos observadores estrangeiros e amplamente divulgados e foram abundantemente provados os atos conspiratórios de sabotagem e tentativa de assassinato de Estaline e colaboradores mais próximos; Estaline nunca foi “todo-poderoso” como se verificou pelas lutas internas frequentes (a corrente direitista nunca se conformou com a derrota em 1920) e pelas suas comprovadas tentativas de abolir o culto da personalidade. Podemos duvidar da eficácia destas com sobejas razões; podemos considerar que as prisões e os julgamentos referidos provocaram um clima de suspeições, delações e medo (no contexto da eminente invasão nazi, da espionagem, das ofertas de Hitler de gratificações a todos aqueles que se sublevassem contra o Estado dirigido por Estaline). Podemos considerar que «Os Processos de Moscovo» resultaram em fuzilamentos (altos dirigentes do partido e do Estado) que não se justificavam, mesmo tendo em conta o contexto e a extrema gravidade das acusações (no entanto, a pena de morte não era usual na época em quase todos os países liberais?). Podemos considerar que foi, ainda é, degradante o espetáculo das confissões dos réus. Ficam interrogações: se os réus condenados haviam dirigido a chamada “Oposição de esquerda” desde 1920 porque somente em 36-38 foram julgados? Não havia, afinal, democracia suficiente que lhes permitiu agir nos órgãos centrais do partido e do Estado? Atendamos a alguns factos, aqui muito resumidos: Estaline lutou nos finais dos anos trinta para que a Constituição da URSS (1936) viesse a conter o máximo de aspetos democráticos, contra uma opinião relutante do CC, que só via perigos nas eleições abertas sem restrições; Em entrevista a Howard (Março de 1936) defende o voto secreto para os Sovietes, «o sufrágio será universal, igual, direto e secreto», devem participar diferentes forças políticas (não existindo partidos, seriam as associações); já no relatório ao XVII Congresso do Partido (Janeiro de 1934) apontava os vícios nocivos do burocratismo; Molotov, que nem sempre o apoio; nessa década crucial foram várias as tentativas de Estaline para separar o Estado, do Partido; defende o voto secreto para combater o burocratismo( VII Congresso dos Sovietes, 6 de Fevereiro de 1935); na mesma entrevista Estaline afirma que os ministros devem possuir os mais elevados conhecimentos técnicos e, portanto, escolhidos por isso e não pelas carreiras políticas no Partido; o artigo 3º da Constituição de 1937 que viria a ser aprovada exprime claramente a orientação de que o Partido dirigia «organizações», mas não os órgãos legislativo e executivo do Estado; o , para os Sovietes que adquiriram plenos direitos de eleger e serem eleitos. O Politburo do CC opôs-se a propostas firmes de Estaline e Andrei Vyshinski (Fiscal Chefe da URSS, que criticou os procedimentos do NKVD (Comissariado Popular para Assuntos Internos), na deportação “errada” de quase 12000 pessoas de Leninegrado a seguir ao assassinato de Kirov em 1934, e ele mesmo, com apoio de Estaline, libertou centenas de milhar de antigos kulaques e outros ativos opositores da coletivização;  da leitura dos documentos consultados até ao seu novo encerramento em 1996, conclui-se que as principais forças de oposição a Estaline foram dos Primeiros Secretários, os comités centrais dos partidos comunistas das Republicas e os comités regionais das cidades; na decisiva reunião do Comité Central de Fevereiro-Março de 1937 que foi ignorada até 1992, Zhdanov e Molotov (apoiantes de Estaline, sempre em minoria), exprimiram a necessidade de melhorar profundamente a democracia interna; aí, os discursos de ambos e o próprio discurso de Estaline ia nesse sentido, foram ignorados pelos Secretários que apenas se preocupavam com os «inimigos internos» e a preservação dos seus lugares nos aparelhos estatais; por fim, a descoberta em Abril, Maio e Junho de 1937 de uma vasta e real conspiração nos altos comanos das forças armadas e no NKVD, mudou tudo. Os esforços de Estaline e seus colaboradores mais próximos foram baldados; Molotov acaba também a votar o cancelamento de eleições abertas; os Primeiros Secretários, agora com mãos livres, continuaram a sabotar o processo de democratização e a prender sem provas  (conforme documentos do plenário do CC de Outubro de 1937. A conspiração assumia formas de uma gravidade extrema (incluía acordos secretos com a Alemanha de Hitler) e Estaline teve de colocar de lado outras prioridades. 

Estaline foi, assim, tão omnipotente desde sempre ou apenas a partir da chamada “Grande Purga” de 36-38, na véspera da preparação para uma guerra com a Alemanha que ele tentou evitar a todo o custo? Sendo a substância das acusações a organização de ações clandestinas com vista a atentados violentos e ligações a grupos no estrangeiro (Trotsky) e do estrangeiro (alemães?), qual seria o Estado ocidental que as permitiria no seu território sem que as punisse com idêntica severidade? Factos foram suprimidos, decisões completamente descontextualizadas, naquele Relatório construído, segundo os autores que cito, com mentiras e meias-verdades. Kruschov havia sido um alto dirigente na Ucrânia, exigira autorização para executar 30000 opositores. Após a morte de Estaline, Khruschev foi o primeiro responsável pelo fuzilamento de Lavrentii Beria, apresentado à posteridade como um criminoso. A verdade parece ser outra: Beria substituira em Setembro de 1938 Nicolai Yezhov, esse, sim, o principal responsável pelas purgas. Que fez Beria? Lançou uma operação ofensiva contra chefias do NKVD e Primeiros Secretários (muitos destes acabaram executados) e libertou muitos deportados. Estaline não foi o tal «monstro sanguinário», porém não pode ficar inocentado. As chamadas “purgas” e os julgamentos a que fizemos referência, constituíram terríveis acontecimentos pelos quais se tem pago um tremendo preço. Contudo, é necessário que os historiadores marxistas e comunistas investiguem tudo e tudo publiquem. Só a verdade é revolucionária.

  Estáline foi um ditador que nenhuma contextualização justifica. Ditaduras dos dirigentes de um partido autodesignado comunista, seja sob a forma aparentemente paternalista ou populista, seja sob a forma brutal "stalinista", são absolutamente incompatíveis com o pensamento de Marx e o projeto socialista-comunista. Nada justifica.

Somos levados a pensar que Kruschov forjou, com o célebre Informe Secreto, aquela narrativa para ascender ao poder com o apoio dos tais Primeiros Secretários… Seja como for, nada foi mais útil para a contraofensiva do imperialismo. Todavia, é necessário que se afirme que, independentemente (ou apesar de) da tal “viragem direitista” protagonizada pelo grupo golpista de Kruschov, a URRS continuou a ser o bastião em que se apoiaram as revoluções do Vietnam, Cuba e muitas mais. A sua derrota nos anos noventa do século passado foi uma tremenda tragédia.

 

 

Capítulo VI- A “loucura” do grande capital

Muitos justificam as barbaridades cometidas pelos nazistas com a «loucura» de um único homem. Adolfo Hitler, e fica por aí a coisa, ou, no máximo, acrescentam-lhes os colaboradores mais próximos (Himmler), ao mesmo tempo que procuram separar o nazismo alemão dos restantes regimes fascistas, apelidados de «conservadores» ou «autoritários» (como alguns designam o fascismo português ou espanhol). Estas explicações não resistem a qualquer análise séria. O programa comum desses regimes, da Europa à Ásia, foi a guerra, o racismo homicida, o expansionismo e o colonialismo, o antidemocratismo e o anticomunismo.

Durante as décadas de 1920 e 1930 os marxistas e comunistas enfrentaram-se com uma tarefa urgente face à implantação de regimes fascistas em diversos países europeus: o que tornou possível tal desgraça?

Deve-se a Trotsky (o mesmo que tão boa ajuda havia de dar às campanhas contra a União Soviética) uma das primeiras e mais acertadas caracterizações do fascismo: o fascismo é a expressão de uma crise estrutural profunda do capitalismo moderno, isto é, resulta da tendência do capitalismo monopolista, conforme as análises de Hilferding e Lenine, a «organizar» o conjunto da vida social de uma maneira totalitária. Em 1936 Otto Bauer, muito antes da sua viragem à direita, considerou-o como «o produto de três processos interligados»: o decurso e as consequências da Primeira Guerra Mundial criando massas de desempregados ou “desclassificados” (formando as milícias fascistas); as crises económicas do pós-guerra, que empobreceram empregados (no pequeno comércio, na função pública) e camponeses; os partidos burgueses tradicionais que ficaram desacreditados; as crises económicas que reduziram os lucros da classe capitalista, e que, para restaura-los, a burguesia precisou de romper a resistência da classe trabalhadora, o que parecia difícil ou impossível sob um regime demoliberal.

Franz Neumann, no seu livro de 1942, Behemoth: the structure and Pratice of Nacional Socialism, escreveu que «em um sistema monopolista, os lucros não podem ser produzidos e apropriados sem o poder político totalitário (…) é essa a característica marcante do nacional-socialismo»; na Alemanha o processo de formação de monopólios por via da concentração e centralização estava mais avançado que em outros países. As classificações continuam controversas, contudo conserva-se usual a ênfase na importância decisiva do Estado (advogada pelos próprios fascistas). Adorno e Horkheimer realizaram a partir de 1945 estudos sobre os preconceitos, a “personalidade autoritária” e o antissemitismo. Os regimes fascistas e os seus movimentos de massas (grande parte do povo alemão colaborou na guerra de agressão) foram estudados sob vários prismas de análise: económica, política, sociológica, psicossocial. Nenhum desses estudos clássicos “demonstra” a identidade do nazismo com o “estalinismo”, embora reconheçam algumas semelhanças na forma, mas a forma não é a substância. Nenhum conclui que o nazi-fascismo derivou do marxismo.

Outros salientam a «singularidade» do nazismo, em comparação com outros regimes fascistas, tendo em conta as especificidades nacionais e históricas da Alemanha. Pecam por excesso (ou por intenção) levando-nos a uma separação errada entre nazismo e fascismo. Ditaduras foram impostas nos quatro cantos do planeta por imitação do nazismo germânico ou o fascismo italiano colhendo de ambos a mesma substância.

 Adler e Otto Bauer chamaram a atenção para as consequências do desemprego: a SA nazista (tropa de choque) recrutou, durante os anos de 1930-1932, um exército privado de 300 mil homens nas fileiras dos desempregados. Este aspeto é deveras importante para aquela época e para outras, porém não explica ditaduras fascistas (ou fortes movimentos fascistas que não vingaram) onde um desemprego maciço não existiu.

Uma crise económica aguda pode provocar maior radicalismo da classe operária e outros estratos de assalariados, como também o fortalecimento de movimentos fascistas. As crises constituem o fulcro da reacção violenta extremada do capital. Contudo, convém definir de que crises falamos. No Chile a crise social foi provocada pelas táticas desestabilizadoras da reacção ao governo de Allende que, por si mesmo, não surgira de uma crise profunda. A reacção fascista destina-se a provocar instabilidade e golpes de Estado sempre que os governos encetem políticas que prejudiquem profundamente os interesses instalados.

A Entente Internacional contra a Terceira Internacional comunista, sob a sigla EIA, que funcionou de 1924 a 1945, ou Anti-Komintern, agência de propaganda contra o bolchevismo chefiada por Goebbels em 1933, os Fasci di Combattimento constituídos em 1924 na Itália, construíram a maior parte das calúnias que ainda hoje se utilizam contra os comunistas. Na Guerra Civil de Espanha, o carniceiro Franco e seus acólitos clericais apoiaram-se nessa Entente para espalhar calúnias de que os bolcheviques predicavam o “amor livre mais desavergonhado”, a “dissolução da família”, a irradicação violenta da religião e da Santa Madre Igreja, e por aí adiante. Propaganda atraente para a burguesia conservadora.

 

Não há dúvida que, muito embora evitando a absolutização de “leis”, o colapso das economias liberais no final da década de 1920 com o seu cortejo tremendo de consequências sociais contribuiu decisivamente para o fortalecimento do nazi-fascismo. Não se esqueça, porém, que na Itália e Portugal, regimes fascistas eclodiram anteriormente a esse colapso; nestes e noutros países (o nazismo já emerge na República de Veimar) as sequelas da Primeira Guerra Mundial foram causas importantes, conjugadas, evidentemente, com as especificidades de cada país. Ou seja, pretendo enfatizar o seguinte: os regimes capitalistas ditatoriais, terroristas, constituem soluções a que o grande capital, associado em muitos casos aos grandes proprietários rurais, recorre sempre que pode quando é necessário desenvolver rapidamente, e proteger, a acumulação na via da centralização e concentração monopolista, reprimindo-se, para o efeito, a classe operária, os seus partidos políticos e sindicatos, os direitos e liberdades conquistadas. Em alguns casos é o capital estrangeiro que, servindo-se de homens-de-mão e de mercenários, golpeiam governos burgueses legitimados por eleições livres que desejam implementar a independência nacional, ou seja, anti-imperialista.

Esta opinião parece-me mais congruente com o marxismo e com a realidade factual histórica, aplicável a todos os casos particulares do mundo a partir da formação do capital monopolista agressivo. Corresponde à tese central que Lenine expôs no seu livro fundamental “O Imperialismo, Estádio Superior do capitalismo» (1916) e que nos alertou não só para a situação daquele período em que ele o redigiu, mas também para a posteridade. Devemos somar o seguinte (de resto, encontra-se explícito nas teses avançadas por Lenine nos seus textos): nas ofensivas do capital monopolista (corporações, grande trusts e transnacionais) inclui-se o colonialismo e o neocolonialismo; esta tese é leninista e dá corpo à classificação completa do imperialismo. Não se pode compreender o século vinte e este primeiro terço do século vinte e um, sem recorrermos a essas categorias: Monopólios, imperialismo agressivo, colonialismo. A exploração dos trabalhadores por todas as formas possíveis é a finalidade do Capital. As ditaduras políticas não são uma “solução de exceção”, como se o regime demoliberal fosse da natureza e da essência do capitalismo, como se este fosse o “normal”. Não podemos analisar as ditaduras tendo como única referência a “normalidade” democrática da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos. De resto, nos EU a repressão contra os sindicatos operários foi violentíssima. Não recorreram à “exceção” (até ver!) porque possuem instituições estabilizadoras e soluções de escape para o exterior. O liberalismo transportou sempre soluções brutalmente repressivas desde a contrarrevolução na França de 1796. E os progressos dos governos demoliberais deveram-se, tanto no século vinte como no século dezanove, a importantes lutas dos movimentos democráticos populares.

As soluções nazi-fascistas surgiram no século vinte por via de uma malha de causalidades gerais e específicas, no quadro mundial do imperialismo contemporâneo; puderam surgir em períodos posteriores e contextos diferentes, e podem ressurgir em contextos novos do capitalismo contemporâneo. Não se pode desligar o capitalismo liberal oitocentista das barbaridades cometidas nos impérios coloniais. O chamado “período d´oiro” do capitalismo no pós-guerra, não se julgue que foi devido às virtudes natas das democracias burguesas. Para isso, aplicaram-se em todos os quatro cantos do planeta barbaridades para esmagar ou tentar esmagar os movimentos independentistas e os partidos comunistas. A Grécia pelos liberais britânicos no pós-guerra, a Argélia pelos liberais franceses, o Congo ex-belga, o Vietnam pelos liberais norte-americanos.

As democracias burguesas (sobretudo a partir do século vinte) não são a mesma coisa das ditaduras nazi-fascistas (tirando a base comum: todas são ditadura da burguesia), certamente, e é necessário distinguir para compreender os fenómenos (os nazi-fascistas reprimiram também sectores políticos e económicos burgueses liberais) e daí estabelecer alianças. Por vezes, ou quase sempre, burgueses liberais apoiaram os golpes militares e fascistas, quer se tivessem depois afastado deles, quer não. Dizer que não são a mesma coisa, não é escamotear, como sempre fazem os liberais burgueses, as “soluções” militaristas e antidemocráticas a que deitam mão. A democracia “exemplar” dos EUA é responsável pelas guerras deste período perigoso que atravessamos. Um operário branco do Alabama ou um corretor de Wall Street dirão com orgulho que vivem numa plena democracia política; um operário do Iraque, do Afeganistão, Síria, não diz o mesmo das democracias ocidentais. Os fascistas não vêm do inferno, vêm dos conservadores. Não são regimes de poder da pequena burguesia, mas do grande capital.

 

Capítulo VII- As “classes médias”

 Emprega-se o termo quando se fala no Antigo Regime, e correspondia à classe burguesa. No livro Teorias da mais-valia Marx emprega já a expressão no sentido de “pequena burguesia”, entre a classe burguesa e o proletariado. Convém distinguir as “velhas classes médias” (pequenos produtores, artesãos, agricultores e camponeses) da “nova classe média”, de que Marx já anunciara o seu crescimento: funcionários do Estado, trabalhadores de escritórios e dos serviços, chefes em empresas, técnicos, professores, outros intelectuais. O caudal dos partidos reformistas e social-democratas foi sendo constituído por essas massas urbanas principalmente, que se inclinam normalmente mais para a social-democracia (o chamado “centrão”) do que para a revolução socialista. Nem sempre se deixam simplesmente manipular (por exemplo por um partido dito “socialista” que “meteu o socialismo na gaveta”), acreditam realmente que os seus interesses imediatos se acham melhor defendidos com a social-democracia enquanto esta os beneficiar. Dividida em camadas diferenciadas que se contrariam, politicamente pendem facilmente algumas delas para a Direita. Os pequenos lojistas não se comportam do mesmo modo que a camada social dos técnicos e intelectuais, os camponeses pobres não se identificam com camponeses ricos, distinguindo-se todos eles se empregam ou não trabalhadores, se se dedicam ao comércio ou à indústria, pelo nível de salários e rendimentos, de fornecerem ou não serviços para as grandes empresas. Em suma: consoante o papel que desempenham na produção e na realização do capital, a sua quota-parte de absorção da mais-valia distribuída. A distinção entre trabalhador produtivo e improdutivo é correta, mas insuficiente. A proletarização ameaça-os permanentemente; este facto inelutável explica em boa parte as suas atitudes ideológicas e políticas. Verifica-se uma permanente aspiração a um status social de “classe média”. Em alguns casos o status é real, mercê de um nível de consumo que os distingue do operariado mais pobre, e de algum grau de poder na divisão social do trabalho. Sendo tão diferentes e flutuantes, não são presas de um único destino, por isso os diversos partidos esforçam-se por conquistar a adesão dessas camadas. Os movimentos fascistas, como vimos, constituíram-se sobretudo por desempregados e militares desmobilizados e camponeses ao serviço dos grandes agrários, assim como é inegável a simpatia manifestada por pequenos lojistas nomeadamente na Itália e Alemanha.

Reafirme-se no entanto que a pequena burguesia liderou revoluções no século da implantação dos regimes burgueses liberais. Representaram as aspirações à República e Democracia, como tão bem o expressou o nosso Henriques Nogueira. Foi assim na Europa na primeira metade do século XIX e foi assim na América latina nas suas batalhas pela independência. O longo processo de implantação do liberalismo da grande burguesia processou-se contra a vontade da pequena burguesia. Foram as derrotas desta e as debilidades do seu programa que fizeram emergir o projeto e o protagonismo da classe operária. A teoria de Marx-Engels surgiu do ocaso da liderança da pequena burguesia. É esta transição e substituição de atores no papel de protagonistas que explica em boa parte os grandes movimentos da história contemporânea e as origens de novas ideologias políticas. O radicalismo republicano e democrático foi a ideologia da pequena e alguma média burguesia, opositora do absolutismo do grande capital. O marxismo foi a expressão da vontade do proletariado industrial, foi nele que conquistou a sua base social de apoio. Os partidos reformistas e os teóricos revisionistas concluíram que a classe operária vinha aburguesando-se, juntando-se à crescente “classe média”; por conseguinte, não havia mais espaço para revoluções.

Na realidade nada é absoluto e definitivo. Camadas intermédias podem opor-se à prática neoliberal dos partidos social-democratas, cujo descrédito, hoje, é, aliás, manifesto. Classificar a pequena e média burguesia de “social-fascista”, como o fizeram anarquistas e não poucos marxistas do século passado, foi um erro desastroso, porque dificultou-se a formação de alianças sociais antifascistas e provocou-se o isolamento dos partidos operários. Camadas sociais diferentes reagem de modos diferentes. Na oposição ao grande capital, neoliberal ou fascista, todos os democratas contam. Os regimes antidemocráticos que lhes negam qualquer participação política e benefícios sociais não são obviamente do seu interesse.

 

Capítulo VIII- Portugal

O anarco-sindicalismo foi a ideologia dominante no operariado português no decurso da Primeira República. O Partido Socialista teve escassa influência no movimento sindical. A Confederação Geral do Trabalho (CGT), fundada em 1919, com o seu jornal «A Batalha”, agrupava os sindicatos. Entretanto, os sucessos da Revolução de Outubro começaram a difundir-se. Em cisão com o anarquismo inconsequente, funda-se a Federação Maximalista Portuguesa (FMP), com o seu jornal «Bandeira Vermelha», da qual saíram os primeiros comunistas que fundaram o PCP em 1921. No «Bandeira Vermelha» era cada vez mais notório, pela pena dos seus colaboradores, o apoio entusiástico à Revolução soviética, nomeadamente aos sovietes, e expressava-se com clareza a necessidade de um «partido novo». Em 1920 o anarquismo já não correspondia às necessidades do movimento operário, sobretudo após a greve geral frustrada (e reprimida) de 1918.

No período entre as duas guerras mundiais Portugal sofreu uma crise económico financeira, sobretudo em consequência da participação na Primeira Guerra, que viria a ser fatal para a República. Desde o seu início em 1910 até à sua queda a República democrática não foi deixada em paz pelos reacionários monárquicos. O «Integralismo lusitano» nutriu publicas simpatias pela Action Française (monárquica) próxima do fascismo. A «Alma Portuguesa», de Rolão Preto, advogava o fascismo sem disfarce. Tradicionalistas, conservadores, católicos militantes reacionários, fascistas, todos se irmanavam na vontade de instalar um «Estado Novo», isto é, uma ditadura. O nacionalismo com tintas de algum racismo instalava-se na ordem do dia das discussões e das conspirações. Franjas das chamadas «classes médias» manifestam desagrado com a movimentação operária e a perda do seu status social. A ditadura populista de Sidónio Pais fora bem recebida e o assassinato do líder transformou-o em mártir. O ambiente mostrava-se profundamente reacionário. A «Cruzada Nun´Álvares» galvanizava os chauvinistas. O grupo da «Seara Nova» parecia impotente a pregar aos peixes. A nível das ideias filosóficas e políticas a corrente positivista, que havia guiado os mentores e fundadores da República nos ideais de progresso, cedia o passo à marcha inexorável do irracionalismo, abertamente naqueles muitos que pregavam o regresso à «terra mãe» e outras pieguices, e noutros que o tingiam de «espiritualismo», «vitalismo», «intuicionismo», de que Henri Bergson fora o papa. O racionalismo de António Sérgio, porventura a figura mais notável da primeira metade do século, não encontrou eco senão num pequeno círculo. O país não fora penetrado pelo Iluminismo na altura devida e a modernidade ficara sempre circunscrita a círculos pequenos e breves de intelectuais que acabaram por desistir. A vertente “cienticista” das filosofias positivistas não encontrara húmus num país de camponeses e latifundiários, tolhido por uma grande burguesia acomodada ao monopólio. A literatura política ou filosófica daqueles anos estava pejada de críticas ao “materialismo”, tanto no sentido filosófico (materialismo versus idealismo) como com o significado de “burguês usurário”, do “senhor Milhões”, fraseologias que agradavam sobremaneira à ideologia fascista e clerical. As críticas ao pensamento tecnocientífico, usuais nos filósofos europeus, reflexo do nosso atraso secular, viriam a ter um dramático desfecho nas políticas do “Estado Novo”. A hegemonia do catolicismo no povo e nos intelectuais era tão pesada que o potencial crítico de brilhantes poetas, pintores e uns tantos filósofos não conseguiram produzir um pensamento verdadeiramente alternativo e emancipador. O «deísmo» dos maçónicos (cujas lojas com os seus “carbonários” foram decisivas na implantação da república, mas também na formação de clientelas políticas) não fabricara “iluminismos” de relevo algum. A consciência social deixava-se navegar no mar sem tormentas de um saudosismo vago e ligeiro, «saudades do futuro», com um Dom Sebastião a romper da neblina, ou um messias a levitar radioso sobre a terra de Nun´Álvares. “Um Novo Império! Um Chefe!”, declamavam os espíritos graves. O pró-fascista Fernando Pessoa, pese embora o seu génio, resume bem a crise da consciência pequeno-burguesa, sufocada num país onde o suicídio e a cirrose parecia ser o destino dos seus filhos maiores. Para enlevo escapista da populaça o messianismo começava por ganhar forma no “milagre de Fátima”, operação estratégica que viria a converter-se num fenómeno opiáceo avassalador. A Igreja, que nunca sofreu as violentas perseguições de que se disse pobre vítima da República, bem pelo contrário, aninhou no seu maternal seio tudo que era antiliberal. Vingar-se-ia pela derrocada do seu Antigo Regime bem-amado. A não ser possível ressuscitar um Rei, que emergisse, então, um Duce à portuguesa, promessa de bem-aventuranças em um corporativismo disfarçado de Doutrina Social. Laboratório de conspirações antidemocráticas, a Igreja parturejava ideólogos no Centro Católico, encarando com desagrado os “messias” desejados pelos poetas. Pôde, enfim, oferecer um, aparamentado de “mago das finanças”, sóbrio, sombrio e sinistro. Era o que o país ansiava há muito: duas oliveiras, uma no calcário de Fátima, outra entronizada ad aeternum no governo. 

 Minada pelo manobrismo politiqueiro, pelas hordas de conservadores que, embora conflituantes, desejavam o mesmo: uma ditadura, a República baqueou sem estrondo e sem mágoa sob a espada de uma casta militar profundamente inculta que se encantou com os esquemas financeiros habilidosos de um obscuro catedrático de Coimbra. Fernando Pessoa, que se manifestou muito cedo, desde o movimento «futurista», vulnerável a possíveis aventuras de «salvadores» com carisma, chamou-lhe «contabilista» com desprezo. Na verdade, de maneira geral, intelectuais talentosos que se haviam esforçado por arrancar o país ao mais grosseiro provincianismo, colaboraram na «atmosfera» que preparou uma ditadura que começou por ser «financeira» e provisória, para vir, porém, a perdurar cinquenta miseráveis anos. Não foi apenas o simbolismo dos «camisas verdes» e das bandeiras que forneceram os traços fascistas do novo regime. Foi a polícia política, a abolição do sindicalismo livre, a eliminação coerciva de todos os partidos políticos, o encarceramento e tortura de milhares de operários, a expulsão de mestres e funcionários públicos por mero delito de opinião. A ditadura militar não se instalou porque existisse uma ameaça comunista, nem sequer uma manifesta «desordem» nas ruas e centros fabris que a «justificasse» (embora se tivesse criado esse mito conveniente). Com a ditadura dos Cabrais no século dezanove, que impôs a estabilidade burguesa, até ao 25 de Abril de 1974, Portugal somente conheceu um curto intervalo na dominação absoluta da grande burguesia monopolista, a Primeira República. Nesse breve período assistiu-se uma intensa luta de classes e de setores da classe dominante sem que a classe operária interviesse autonomamente com relevo. A ditadura militar não venceu os liberais pela força, venceu-os pelo cansaço. A intelectualidade republicana não ergueu barricadas nas ruas como o fizera nas revoluções do século anterior na Europa e em 1910 em Portugal. Estava tolhida pelo spleen. Somente em 1937 é que as coisas aqueceram. Mas então já não eram os liberais que ergueram a bandeira das lutas pela democracia (ou foram poucos). Foram os operários e marinheiros. Camaradas daquelas centenas de milhar que iriam dar a vida pela república espanhola. Foram derrotados. Contudo, o marxismo, o projeto comunista que demorara a chegar, forneceu às classes trabalhadoras, finalmente, a consciência do seu poder. A ditadura veio para ficar com o apoio do grande capital e dos proprietários rurais, tudo com a bênção da Igreja católica revanchista e monárquica. Foi sobretudo esta que passou a controlar as Humanidades nos estabelecimentos de ensino, mormente nas áreas da Filosofia, História e Direito, sem esquecermos que era já na escola primária que se procedia à meticulosa «lavagem do cérebro». No dia libertador de 25 de Abril de 1974 a Faculdade de Letras do Porto continuava dirigida por uma clique de fascistas, os restantes punham-se a jeito. Assim era a Norte, com a Faculdade de Filosofia de Braga (jesuítica) a «filtrar» convenientemente  toda a grande filosofia francesa que progredia na Europa civilizada… Nenhum pensamento original e inovador brotou daquelas mentes serôdias, fossem elas neoescolásticas ou meros ruminantes de uma putativa “Filosofia Portuguesa”.

     

 

 

Considerações conclusivas

1. A democracia real (política, económica e social) é antitética do capitalismo. O capitalismo oitocentista não se instalou por processos democráticos universais. O alargamento do sufrágio, lento e sempre dificultado, é prova disso. A exclusão dos operários, dos pobres, das mulheres. Dos negros na América. A sua inexistência nos impérios coloniais. Os chamados “regimes de exceção”, nazi-fascistas, não foram realmente outra coisa que a exacerbação desta “normalidade” composta de contrarrevoluções, de golpes e contra golpes, de governos autoritários, de alianças entre aristocracias monarquistas e burguesias “liberais”. O capitalismo é mutante. E tão camaleónico quanto convém.

De facto, as ditaduras fascistas correspondem à fase monopolista-imperialista do grande capital. Os regimes fascistas não alteraram as relações de produção capitalistas, pelo contrário alargaram-nas e reforçaram-nas.

A relação jurídica fundamental no capitalismo é a que legaliza e legitima a apropriação privada dos meios de produção, da produção e dos lucros. É o conteúdo da fórmula da «livre iniciativa». O capitalista não é proprietário do trabalhador, como no Antigo Regime, compra a força de trabalho. O tipo de contrato, a amplitude dos direitos do trabalhador, depende do regime político burguês, depende da corelação de forças entre as classes dominantes e as dominadas. Sob uma ditadura fascista os direitos do trabalhador são nulos. Foi essa a sua finalidade. E será sempre.

 

2. O conceito de Estado – “O Problema do Poder”- é um dos conceitos mais fundamentais da Teoria marxista. Marx tratou o conceito em diversas obras: Desde logo, em 1843, na Crítica da filosofia do direito de Hegel; em 1850, As lutas de classe na França de 1848 a 1850; em 1852, O Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte; em 1871, A guerra civil na França. Engels, pelo seu lado, no Anti-Dühring (1878) e na Origem da família, da propriedade privada e do Estado (1884). Lenine desenvolverá o conceito em O Estado e a Revolução. Não devemos extrair desses célebres escritos a definição do Estado como algo secundário, derivado, meramente “superestrutural”, desprovido de uma papel relativamente autónomo e interventivo sobre as outras esferas da vida social. O “Estado de Direito” foi um progresso na época (em boa parte resultante de revoluções e outras lutas), contudo é uma construção, no fundamental, conforme os interesses da classe dominante. Ele não garante jamais emancipação alguma dos trabalhadores; bem pelo contrário, garante a reprodução do capital. Os indivíduos (ou um só político carismático), as competições entre eles (ou os seus partidos), as pressões (os lobbies), a corrupção e o suborno, as divergências ideológicas, a força militar, o peso da burocracia, tudo isso desempenha mais ou menos papéis relevantes. Para administrar os interesses divergentes da(s) burguesia(s), embora, no essencial, comuns, é necessário que o Estado (as múltiplas instituições de poder que ele enforma) seja relativamente independente. A forma do Poder com o qual a classe dominante regula os seus interesses comuns, fundamentalmente a defesa da apropriação privada, não deixa de ser, por isso, do interesse imediato da classe operária; não é de modo nenhum despiciendo que seja democracia burguesa ou ditadura fascista. É importante considerar que no primeiro caso é possível à burguesia conquistar um consentimento alargado que lhe permite diminuir o exercício da coerção declarada (e os custos). Este consentimento e o caráter legitimador de eleições livres (relativamente) conferem ao Estado dos capitalistas a durabilidade que se lhes reconhece. A importância decisiva das crises do modo de produção capitalistas reside nos modos políticos a que os capitalistas recorrem para tentar resolvê-la. As ditaduras e as guerras constituem as respostas conhecidas e sempre repetíveis. O imperialismo é a destruição, a espoliação mundial, o parasitismo e a guerra. Insisto: não são exclusivamente as crises cíclicas do capitalismo que produzem guerras; o capitalismo foi, e é, a guerra permanentemente desde a formação “primitiva” do capital (contra os camponeses dos seus países), a espoliação (não existe esbulho sem violência), o saque (pelas conquistas desde os começos da Modernidade, ou “civilização burguesa”), o racismo (a escravatura).

 

3. Distingo Estado, de Regime. O Estado capitalista é sempre a dominação pelo Capital; o Regime pode variar. O Regime de ditadura política é uma das formas – exacerbada e terrorista- dessa dominação. Neste regime impera o populismo do Chefe que a todos subordina, o poder absoluto do seu partido ou movimento político-social que o apoia, a intervenção coerciva dos militares e das polícias na vida púbica e privada, a abrasiva propaganda sem contraditório. Repõe, pela força brutal, a “estabilidade social” nas situações de crise. Os fatores que desencadeiam esta solução já os apontámos: fundamentalmente a lei tendencial da queda da taxa média de lucro; a força contestatária dos trabalhadores contra as soluções “austeritárias” para a aumentar; a defesa dos interesses ameaçados do capital imperialista como sucedeu claramente no Chile de Pinochet; a competição entre potências e a vontade de expansão territorial. Não existiu nenhum caso conhecido em que os militares (subordinados a um chefe civil em alguns casos) não constituíssem o “aparelho” decisivo. Quando este não está desde logo garantido (verificou-se no decurso da ascensão do partido nazi na Alemanha), provoca-se a instabilidade, provoca-se o governo legítimo, arregimentam-se classes e camadas descontentes que pressionam ou “justificam” a intervenção militar.

Para tentar ultrapassar uma crise económico-financeira grave o grande capital pode recorrer a métodos diversos. Nos EU, nos anos trinta, o New Deal inspirado no intervencionismo estatal de Mussolini, segundo alguns afirmam, ou nos planos quinquenais da União Soviética, segundo outros. O fascismo corporativo na Itália, em Portugal e, em menor medida, na Espanha franquista. Quando um governo de esquerda nacionaliza empresas estrangeiras recorre-se ao golpe militar, como no Irão, no Chile, etc.

Subestimar as diferenças entre uma forma demoliberal de intervenção económico-política (conservando-se as liberdades fundamentais e obtendo-se consentimento) e uma forma nazi-fascista é um radicalismo míope que não beneficia ninguém. Pretender que existe uma diferença de substância entre a primeira forma (ou Regime) e a segunda, equivale a julgar que os rios de água doce e os oceanos de água salgada não são compostos da mesma coisa.  

Os povos e trabalhadores do mundo inteiro não desprezam as liberdades, ainda que a miude sejam mais formais que reais sob a dominação burguesa. Há uma enorme diferença entre lutar contra o capitalismo na clandestinidade mais sofrida e rigorosa e lutar na liberdade possível. Entretanto, a revolução tanto pode romper dos escombros de uma ditadura fascista, como da decomposição da democracia burguesa. É comum dizer-se que o fascismo é o poder absoluto do aparelho executivo, a subordinação dos parlamentos ou o seu desaparecimento. Com base nesta asserção, que não deixa de ser verdadeira, conclui-se que a democracia (parlamentar) é o melhor dos regimes, o estádio final a que chegaram as experiências políticas da História. Ora, desde Jean-Rousseau que localizamos na democracia representativa um alvo da crítica socialista. As doutrinas políticas que há séculos almejam e propõem modelos de democracia direta (outras formas de participação efetiva das massas populares) significam ditaduras fascistas? De modo nenhum. Conciliar os dois modelos – representativo e participativo- é o mais estimulante desafio dos socialismos de todos os tempos. Um parlamento (Congresso, Câmaras, etc.) pode mostrar-se tão ditatorial, ou mais, que um só presidente. Depende das maiorias absolutas e de como foram eleitas.

O Estado possui uma genealogia que se liga aos modos de produção societais. Não os transcende por maior que seja a sua autonomia relativa. É mutante, porque mutantes foram os modos de produção. A sua função primordial é protegê-lo(s) dos inimigos internos e externos adentro de um determinado (alterável) espaço territorial, regulando os processos de produção-reprodução através de meios políticos destinados a coagir seja por coerção, seja pelo consentimento, aos quais se juntam instituições paralelas (as religiões e outros modelos culturais). O Estado não se reduz ao conjunto das três tradicionais instituições (legislativa, executiva, judicial); nos diversos modos de produção é também militar (monopólio da força) e cultural-ideológica. No Estado contemporâneo, conduzido pelo neoliberalismo, ocupa mesmo aquele “espaço privado” de que o liberalismo se orgulhava de preservar. Expressão impositiva e reguladora do Mercado, o Estado protege a captura por meio da mercantilização a totalidade do espaço público e do tempo privado dos cidadãos. Praticamente nada sobra que seja ainda “privado” ou independente. Utilizando embora uma expressão discutível, o Estado neoliberal que representa os interesses da finança e das multinacionais que dominam o Mercado, é hoje “totalitário”. Já não está encerrado nas fronteiras fechadas de um país ou “império”, liga-se à rede de coligações inter-imperialistas, às malhas mundiais da produção e circulação da mercadoria e do capital. É neste quadro de mercantilização total com consentimento que o neofascismo se apresenta. O neofascismo prospera e só é invisível para quem o consente. Contudo, repita-se, este neofascismo utiliza outros métodos para impor o seu mercado mundial: as intervenções militares e, nas regiões cujos recursos naturais interessam às grandes potências, “senhores da guerra” que a fazem por elas. A caraterização leninista do imperialismo aponta, em minha opinião, para a pulsão fascizante do capitalismo contemporâneo. O imperialismo é a época das revoluções socialistas e das contrarrevoluções fascistas ou neo-fascistas.

 

 

4. O capital, pela sua necessidade imanente ao processo de realização e acumulação, produz a criação pela destruição do capital investido e materializado (bens de equipamento e meios de produção, edifícios, etc.). Realiza essa atividade autodestrutiva seja no seu próprio país, seja em outros. Esta natureza destrutiva (de mercadorias, de recursos, do Ambiente, de cidades inteiras) constitui um dos polos da realização do capital.

 

5. A eliminação das relações de produção capitalistas (começando pela eliminação da predominância da apropriação privada nas fábricas e nos campos) na medida em que foi finalidade fundamental da construção do socialismo na Rússia soviética, estava inscrita no projeto de Marx-Engels e do continuador V. I. Lenine. É esse o alvo principal que os detratores do marxismo atacam, nomeadamente os “revisionistas históricos”. Ao contrário em absoluto do que estes afirmam, os fascismos não nasceram neste berço. A crítica liberal aos métodos empregues na reforma agrária na Rússia soviética (a dita “brutalidade da coletivização”) e em todos os países onde ela se realizou, não é realmente contra os métodos, mas contra os fins. Qualquer forma de “coletivização” é inaceitável para os liberais. Quando necessário e possível recorrem ao fascismo para impedi-la. Pesem embora os métodos o que salvou o socialismo e a própria independência da Rússia foi precisamente a reforma agrária.

 

6. A esquerda comunista não deve contornar o problema da democracia restringida nos países que já foram Estados socialistas, ou que se revindicam do socialismo com partidos comunistas no governo. É verdade que as liberdades políticas básicas (direito à livre informação e expressão do pensamento, à reunião e organização política) são cerceadas (“justificadas” pelo cerco a que as potências capitalistas exercem continuamente) e tal é inaceitável, até pelas consequências negativas sobre a participação dos trabalhadores, a produtividade, etc. Convém dizer, no entanto, que as liberdades políticas não compõem todo o conteúdo concreto da liberdade: ter um trabalho seguro e não ficar no desemprego, de beneficiar de serviços públicos gratuitos de saúde, escolaridade e cultura, sem qualquer descriminação, equidade na mobilidade social conforme o valor do seu trabalho, igualdade plena da mulher, velhice protegida. Nada disto é garantido na esmagadora maioria dos países capitalistas, estando inclusivamente em perigo nos países europeus mais civilizados. Convém também lembrar que esta liberdade que para o cidadão comum é do seu interesse principal, alcançou-se em países que, antes, se encontravam arruinados pela guerra civil e mundial ou sofriam ditaduras cruéis. Falamos da URSS, China e Coreia, Vietnam e Cuba. A verdade é que os Estados socialistas têm de saber conciliar as mais extensas liberdades com a máxima resistência aos inimigos internos e externos. Esse é o desafio. Contudo, a mentira tem de ser sempre combatida. Transigir com ela é permitir que o mundo seja pior ainda do que já o é. Os inimigos da democracia e do socialismo fabricaram uma visão diabólica da União Soviética e de Estaline. Como foi possível a uma classe operária, devastada pelas guerras civis, querer e conseguir alcançar tamanhos níveis de produtividade muito antes e durante a Guerra de agressão, se ela vivia, como se diz, sob um clima permanente de terror, de coerção policial? Existe, acaso, algum tratado de economia ou de psicologia social capaz de demonstrar que é assim que se aumenta a produtividade durante um longo período de tempo? Foi com terror que se eliminou o analfabetismo, se aumentou exponencialmente o número dos técnicos superiores, se disponibilizaram serviços públicos de saúde e de educação gratuitos, se reergueu um imenso país das ruínas da guerra? Como é possível acreditar-se em patranhas de todo o tamanho? É necessário que haja não só uma profunda ignorância, mas vontade de acreditar. Se o indivíduo tiver vontade de acreditar em milagres ou na existência do demónio, ele vê-los-á. Com a ajuda dos impostores.

 

 

 

 

 

 

7. Considero que existe uma correspondência entre a propagação de filosofias e ideologias irracionalistas e “estados de alma” propensos a aceitar regimes fascistas. No período entre as duas Guerras Mundiais verificou-se essa correspondência. Os irracionalismos apelam a sentimentos, mitos e tradições, fórmulas construídas sobre ficções. Hipervaloriza-se as emoções, despreza-se a razão. Executa-se uma operação de erosão sobre a teoria e os teóricos, a racionalidade científica e as éticas racionais. Despromove-se o Esclarecimento e a Modernidade. Apela-se a forças irracionais e faz-se crer que é sobre elas que se movem os eixos da História. É a Natureza que passa a conduzir a História, o destino de um Povo. Filósofos dedicaram-se a descobrir nas “forças vitais” inscritas num passado mítico a superior Verdade revelada pela intuição. Desenhado o quadro negro da decadência (da inoperância do liberalismo e da democracia) era urgente a “regeneração”: um Povo, um Chefe, uma Nação. Aqueles liberais que colaboraram ativamente nas críticas (irracionalistas) da Razão, viram-se sem querer envolvidos pela vaga fascista. Intelectuais de prestígio viram-se arrastados pelas hordas fascistas que não percebiam nada de filosofia. 

 

8. A «Vida», noção mística formulada em vários tons: biologistas ou, ao invés, espiritualistas. Fonte da “Verdade” e da “existência autêntica”. Estas e outras elucubrações apaixonaram professores e estudantes, desejosos uns de uma carreira mais proveitosa e, outros, de heroísmos juvenis. Uma intelectualidade que declamava Sorel e Maurras (não tardaria muito a declamar Heidegger) inconsequente e errática. O potencial crítico dos modernistas, futuristas e outros vanguardistas, esvaiu-se, com raras e magníficas exceções, no pantanal de horrendas ditaduras, ora porque as quiseram, ora porque desertaram das barricadas. Crise da consciência burguesa. A burguesia, então “classe média”, que produziu o Iluminismo, o materialismo, o empirismo, as grandes utopias do século XVIII, abrindo caminho para as revoluções e para a crença no Progresso, cedendo o mando à alta burguesia industrial e financeira triunfante, um século mais tarde passou à reação contra as filosofias materialista e socialista, à erosão dos valores que outrora sustentaram a sua ascensão social. Em Portugal, diferentemente de boa parte da Europa, no período histórico ocupado pela Primeira República, não se manifestam praticamente nenhuns sinais na intelectualidade de defesa intransigente do materialismo filosófico. Correntes irracionalistas tendem a hegemonizar o campo das disputas ideológicas e o racionalismo defensivo não ultrapassa os parâmetros do idealismo.

 

9. A generalidade dos dirigentes e intelectuais da social-democracia andaram alvoraçados na esperança de disfrutar dos benefícios da integração no sistema (vimos isso na República de Weimar e sob a Frente Popular em França). Sem que desprezemos as melhorias que introduziram e a recusa, por vezes corajosa, do nazi-fascismo, não souberam, ou não quiseram, criar pontes à esquerda. É verdade que na Esquerda o radicalismo sectário também não ajudou muito, contudo convenhamos que a repressão da contestação operária movida pelos políticos social-democratas e a vergonhosa atitude relativamente à República espanhola não facilitou as coisas.

 

10. Os regimes nazi-fascistas não se repetirão na Europa contemporânea, com as mesmas formas (com formas idênticas o que se repete é já uma farsa). É o seu conteúdo, as suas finalidades, os elementos da sua ideologia, que poderão repetir-se. Porque em grande parte estão cá! Estão na ditadura das grandes potências, na ditadura desta União Europeia. Estão na poderosa e insidiosa propaganda que “justifica” as intervenções militares do imperialismo, com a qual se distorcem, conforme as conveniências de quem manda, os princípios e a prática democrática e se fabrica o consentimento. Não está exclusivamente nos partidos da extrema-direita que agitam e manipulam sentimentos de insegurança contra refugiados e imigrantes; está no capitalismo neoliberal imperialista e neocolonialista que provoca guerras horrendas e a maior vaga de refugiados de que há memória. Está no desemprego e subemprego, na exclusão e no trabalho precário, está na periferia degradada e pobre das metrópoles. Está na profunda desigualdade entre as classes. Está na ditadura financeira das potências europeias sobre os países do sul, na chantagem, nas políticas neoliberais de “austeridade”. Está nos valores de uma cultura industrial e comercial, consumista, vendida pela indústria do espetáculo e da publicidade, que desarma e desune os cidadãos, destrói as tradições regionais e a produção autónoma de cultura. Está nos intelectuais e nas academias (incluindo polos financiados pela CIA) que difundem os irracionalismos conservadores, desfigurando o legado iluminista do valor intrínseco dos métodos racionais de conceber e agir, substituindo projetos emancipatórios de um futuro melhor por distopias ou utopias “libertárias” que o Sistema captura e integra com toda a facilidade em seu proveito. Os políticos do Sistema servem-se do espantalho do fascismo para assustar o eleitorado. Eles criam as condições para os fascismos e, até ver, tiram proveito do susto. A Europa dominada pela “democracia” norte-americana, não necessita, por ora, de Hitler ou Mussolini; basta-lhe a chantagem do empréstimo e da dívida, e das armas de que dispõe (mas não é de excluir figurões à moda de Trump). Basta-lhe conservar uma aparente democracia nos seus próprios países (máquinas de produção de consentimentos) e praticar uma política nazista nas zonas do planeta onde os seus interesses económicos estiverem ameaçados. Os avós dos atuais israelitas foram dizimados em câmaras de gás; os seus netos alvejam a tiro crianças nos guetos da Palestina…

 

11. “ O fascismo é a ditadura terrorista dos círculos mais reacionários e agressivos do capital financeiro. Hitler foi um instrumento dos monopólios alemães que alimentaram, apoiaram e lucraram com a criminosa política nazi, incluindo com a mão-de-obra escrava dos prisioneiros dos campos de concentração. Nada disto pode ser esquecido. As tentativas para apagar as responsabilidades do grande capital na hecatombe da Segunda Guerra Mundial e esconder a natureza de classe do nazi-fascismo devem ser fortemente combatidas. (…) Devem ser firmemente rejeitadas operações de falsificação da História que visem apagar, diminuir ou deformar a heroica contribuição do movimento operário, dos comunistas e da União Soviética para a derrota do nazi-fascismo e absolver os EUA, a Grã-Bretanha e a França da política de “apaziguamento” simbolizada pela traição de Munique que, procurando encaminhar a Alemanha nazi contra a URSS, conduziu ao desencadeamento da guerra.» (nota do Secretariado do CC do PCP (Abril de 2015) a propósito do 70º Aniversário da Vitória sobre o nazi-fascismo)

 

NOZES PIRES

Torres Vedras, Fevereiro-Abril 2017

 

Bibliografia escolhida:

HOBSBAWM, Eric, A Era dos Extremos, História breve do século XX, 1914-1991, Editorial Presença, Lisboa, 1996.

PELZ, William, A., História do Povo da Europa, Moderna, Editora Objectiva, Lisboa, 2016

LOFF, Manuel, «O Nosso Século é Fascista!», Editora Campo das Letras, Porto, 2008

CUNHAL, Álvaro, Obras Escolhidas, Edições Avante! Lisboa

DROZ, Jacques, direção, História Geral do Socialismo, Volumes 4 e 5, Editora Horizonte Universitário, Lisboa, 1979

SASSOON, Donald, Cem anos de Socialismo, Editora Contexto, Lisboa, 2001.

LOSURDO, Domenico, Stalin, Histpria y crítica de una leyenda negra, El Viejo Topo, Espanha, 2011; Le révisionnisme en histoire, Problèmes et mithes, Bibliothèque Albin Michel Histoire, Paris, 2006

DICIONÁRIO DO PENSAMENTO MARXISTA, editado Por Tom BOTTOMORE, Gorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1988.

HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO PORTUGUÊS, Direção de Pedro Calafate, O Século XX, Tomos 1 e 2, Editorial Caminho, SA, Lisboa, 2000.

HISTÓRIA DE PORTUGAL, Direção de José Matoso, Sexto e Sétimo volumes, Lisboa, 1994.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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