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terça-feira, 20 de outubro de 2020

 

O hemisfério da direita

 

Por António Guerreiro

Público 16-10-2020

 

Ainda não há muito tempo — mas parece que passou mais de um século — ser absolutamente contemporâneo, em termos políticos, consistia em dizer que estava ultrapassada a visão geográfico-axial da política que designa dois territórios opostos, a direita e a esquerda; que, por conseguinte, essa díade tinha deixado de ser funcional quanto à articulação das diferentes opções políticas porque induzia a decisões drásticas, como quem usa o esquema schmittiano amigo-inimigo, mas rejeitando evidentemente qualquer afinidade com o conceito do político de Carl Schmitt.

Para a convicção de que estas duas categorias se tinham tornado inadequadas contribuiu em parte a ideia de que se tinha dado um colapso intelectual, ideológico e moral da esquerda e que se teria dado até uma inversão ou uma alternância de valores, de tal modo que deixou de ser evidente quem estava do lado do movimento e quem estava do lado da conservação.

Hoje, a crise mais profunda está do lado da direita e os sinais de mal-estar vindos desse campo — ou, pelo menos, das suas elites — começam a tornar-se públicos e a ganhar contornos que antecipam as bases para um debate que há-de vir, se as vozes críticas de uma pequena elite não tiverem à sua frente apenas o vazio. Esse vazio não é de agora, nem sequer é recente, mas o andamento do mundo, que no plano pragamático correspondeu a uma “direitização” que continua em curso, permitiu criar a a ilusão de que desse lado quase não era preciso mexer nem articular uma palavra para que tudo corresse sobre rodas. Era a política da “força das coisas”. Já em 1979 o grande mitólogo e germanista italiano Furio Jesi, que tinha acabado de publicar um livro chamado Cultura di destra (onde estuda sobretudo o “espítito” de uma direita que se afirma na cultura de Weimar), questionado por um jornalista do semanário Espresso sobre o que significava, hoje (ou seja, no final dos anos 70 do século passado), a cultura de direita, respondeu: “é uma cultura caracterizada pelo vazio”.

É esse vazio cultural à direita que se tornou entretanto quase uma caricatura. Basta entrar numa boa livraria em qualquer cidade para verificarmos que da enorme torrente de livros de ensaios e estudos de ciências humanas e sociais que enchem as bancadas e se renovam em cada estação do ano, muito pouco há vindo do campo da direita. O individualismo liberal tornou-se a doutrina privilegiada e oficial da direita. Foi um necessário aggiornamento, já não havia lugar para uma exaltação dos valores e entidades escritos com maiúscula: Nação, Autoridade, Ordem, Cultura/Civilização, Espírto, Tradição, etc. Mas a adesão foi de tal ordem que a direita se inclinou completamente à tal política das coisas e a um liberalismo incapaz de pensar. O pensamento de direita tornou-se assim um realismo. Não há nada de mais obtuso do que este discurso centrado no económico que já não traz consigo nenhuma ilusão. Esse realismo só é interrompido em questões relacionadas com a moral. Nesse domínio, a direita não é nada realista e, por cálculo ou convicção, aproveita as oportunidades (não todas) para reclamar uma ordem moral (quase sempre equivalente a ordem sexual) que nenhum realismo consegue hoje restaurar. E é assim que cai facilmente e com frequência na caricatura e em formas de pensamento reaccionário, num tradicionalismo de superfície completamente postiço.

Mas a fatal inclinação para a caricatura é ainda muito mais nefasta para a direita (e é aqui que se levantam os principais motivos para as vozes críticas) quando hipoteca toda a tradição do conservadorismo e se dissolve no reacionarismo da extrema-direita que atrofia todo o pensamento; e quando da modernidade parece ter absorvido apenas os aspectos mais agressivos. Aquilo que se esperaria da direita, um discurso coerente de restauração, conservador ou de reforma, não se vislumbra em nenhum lado. E até a ajuda que dá a quem não faz outra coisa do que vilipendiar as elites (em especial, as elites culturais) faria a direita clássica, que sempre exaltou o papel das elites, corar de vergonha. Uma direita assim é destituída de toda a dimensão intelectual que lhe permitiria ter um discurso alternativo.

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