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terça-feira, 13 de outubro de 2020

Para explicar conceitos de Marx só mesmo Daniel Bensaïd

 

Bensaïd: Forças do comunismo

"Da experiência fundadora de 1848 à da Comuna, o “movimento real” tendendo à abolição da ordem estabelecida tomou forma e força, dissipando as “obsessões sectárias” e ridicularizando “o tom de oráculo da infalibilidade científica“. Dito de outro modo, o comunismo, que foi primeiro um estado de espírito ou um “comunismo filosófico“, encontrou a sua forma política. Num quarto de século, cumpriu a sua transformação: dos seus modos de aparição filosóficos e utópicos, à forma política enfim encontrada da emancipação."

Por Daniel Bensaïd.

Por ocasião da efeméride de 8 anos de morte de Daniel Bensaïd, publicamos aqui o último artigo escrito por ele para a revista Contretemps, da qual foi um dos fundadores. Traduzido por Eduardo Velhinho, “Forças do comunismo” integra o livro Centelhas: marxismo e revolução no século XXIde Daniel Bensaïd e Michael Löwy, organizado por José Correia Leite. Só até o final do dia, o livro está com 30% de desconto no site da Boitempo, junto com todos os outros livros do autor! 

Boa leitura!

* * *

Num artigo de 1843 sobre “os progressos da reforma social sobre o continente“, o jovem Engels (que acabara de fazer vinte anos) via o comunismo como “uma conclusão necessária que somos obrigados a tirar a partir das condições gerais da civilização moderna“.

Um comunismo lógico em suma, produto da revolução de 1830, onde os operários “regressam às fontes e amparam-se vivamente do comunismo de Babeuf”.

Para o jovem Marx, em contrapartida, esse comunismo não era ainda senão uma “abstracção dogmática“, uma “manifestação original do princípio do humanismo“. O proletariado nascente tinha-se “deitado nos braços dos doutrinários da sua emancipação“, das “seitas socialistas“, e dos espíritos confusos que “divagam em humanistas” sobre “o milénio da fraternidade universal” como “abolição imaginária das relações de classe“. Antes de 1848, o comunismo espectral, sem programa preciso, assombrava portanto a época sob as formas “mal delineadas” das seitas igualitárias ou dos devaneios icarianos.

Já o adiantamento do ateísmo abstracto implicava um novo materialismo social que não era mais que o comunismo: “Tal como o ateísmo, como negação de Deus, é o desenvolvimento do humanismo teórico, tal como o comunismo, como negação da propriedade privada, é a reivindicação da verdadeira vida humana.” Longe de qualquer anticlericalismo vulgar, esse comunismo era “o desenvolvimento de um humanismo prático“, pelo qual não se tratava somente de combater a alienação religiosa, mas a alienação e a miséria social reais donde nasce a necessidade da religião.

Da experiência fundadora de 1848 à da Comuna, o “movimento real” tendendo à abolição da ordem estabelecida tomou forma e força, dissipando as “obsessões sectárias” e ridicularizando “o tom de oráculo da infalibilidade científica“. Dito de outro modo, o comunismo, que foi primeiro um estado de espírito ou um “comunismo filosófico“, encontrou a sua forma política. Num quarto de século, cumpriu a sua transformação: dos seus modos de aparição filosóficos e utópicos, à forma política enfim encontrada da emancipação.

1. As palavras da emancipação não saíram indemnes dos tormentos do século passado. Pode-se dizer, como os animais da fábula, que eles não morreram todos, mas que todos foram gravemente atingidos. Socialismo, revolução, mesmo a anarquia, não tiveram melhor sorte que o comunismo. O socialismo foi cúmplice do assassinato de Karl Liebknecht e Rosa Luxemburg, nas guerras coloniais e nas colaborações governamentais ao ponto de perder todo o conteúdo à medida que ganhava em extensão. Uma campanha ideológica metódica chegou a identificar aos olhos de muitos a revolução com a violência e o terror. Mas de todas as palavras ontem carregadas de grandes promessas e de sonhos progressistas, a do comunismo foi a que mais sofreu prejuízos pelo facto da sua captura pela razão burocrática de Estado e da sua submissão à empresa totalitária. A questão continua, todavia, em saber se, de todas essas palavras magoadas, se há algumas que vale a pena serem reparadas e postas em movimento.

2. É necessário para isso pensar o que se tornou o comunismo no século XX. A palavra e a coisa não poderiam continuar fora do tempo e das experiências históricas às quais foram submetidas. O uso massivo do título comunista para nomear o Estado liberal autoritário chinês será mais penoso durante bastante tempo, aos olhos do maior número, que as frágeis inovações teóricas e experimentais de uma hipótese comunista. A tentação de se furtar ao inventário histórico crítico equivaleria a reduzir a ideia comunista a “inventários” atemporais, a fazer disso um sinónimo das ideias indeterminadas de justiça ou de emancipação, e não a forma específica da emancipação na época da dominação capitalista. A palavra perde então em precisão política o que ela ganha em extensão ética ou filosófica. Uma das questões fundamentais é saber se o despotismo burocrático é a continuidade legítima da revolução de Outubro ou o fruto de uma contra-revolução burocrática, comprovada não somente pelos processos, as purgas, as deportações massivas, mas pelos transtornos dos anos trinta na sociedade e no aparelho de Estado soviético.

3. Não se inventa um novo léxico por decreto. O vocabulário forma-se durante, através dos usos e experiências. Ceder à identificação do comunismo com a ditadura totalitária estalinista, seria capitular diante dos vencedores provisórios, confundir a revolução e a contra-revolução burocrática, e excluir assim o capítulo das bifurcações, o único aberto à esperança. O que seria cometer uma injustiça irreparável para com os vencidos, todos eles e elas, anónimos ou não, que viveram apaixonadamente a ideia comunista e que a fizeram viver contra as suas caricaturas e falsificações. Desonra aos que deixaram de ser comunistas ao deixarem de ser estalinistas e que só foram comunistas enquanto foram estalinistas [1]!

4. De todas as maneiras de nomear “o outro”, necessário e possível, do imundo capitalismo, a palavra comunismo é aquele que conserva o maior sentido histórico e de carga programática explosiva. É aquela que evoca melhor o comum da partilha e da igualdade, a partilha do poder, a solidariedade oposta ao cálculo egoísta e à concorrência generalizada, a defesa dos bens comuns da humanidade, naturais e culturais, a extensão de um domínio de gratuitidade (desmercantilização) dos serviços aos bens de primeira necessidade, contra a predação generalizada e a privatização do mundo.

5. É também o nome de uma medida da riqueza social diferente da lei do valor e da evolução mercantil. A concorrência “livre e sem falsidade” assenta sobre “o roubo do tempo de trabalho do outro“. Ela pretende quantificar o inqualificável e reduzir à sua miserável comum medida pelo tempo de trabalho abstracto a incomensurável relação da espécie humana às condições naturais da sua reprodução. O comunismo é o nome de um outro critério de riqueza, de um desenvolvimento ecológico qualitativamente diferente da corrida quantitativa ao crescimento. A lógica da acumulação do capital exige não somente a produção para o lucro, e não para as necessidades sociais, mas também “a produção de novo consumo“, o alargamento constante do círculo do consumo “pela criação de novas necessidades e pela criação de novos valores de uso“: “Donde a explosão da natureza inteira” e “a explosão da terra em todos os sentidos“. Esta desmedida devastadora do capital baseia a actualidade dum eco-comunismo radical.

6. A questão do comunismo, é primeiro, no Manifesto comunista, a da propriedade: “Os comunistas podem resumir a sua teoria nesta formula única: supressão da propriedade privada” dos meios de produção e de troca, a não confundir com a propriedade individual dos bens de uso. Em “todos os movimentos“, eles “avançam a questão da propriedade, qualquer que seja o grau de evolução que ela possa ter chegado, como a questão fundamental do movimento“. Sobre os dez pontos que concluem o primeiro capítulo, sete dizem respeito às formas de propriedade: a expropriação da propriedade fundiária a afectação da renda fundiária às despesas do Estado; a instauração de uma fiscalidade fortemente progressiva; a supressão da herança dos meios de produção e de troca; a confiscação dos bens dos emigrados rebeldes; a centralização do crédito num banco público a socialização dos meios de transporte e a instauração de uma educação pública e gratuita para todos; a criação de fábricas nacionais e o desbravamento de terras incultas. Essas medidas tendem todas em estabelecer o controlo da democracia política sobre a economia, a primazia do bem comum sobre o interesse egoísta, do espaço público sobre o espaço privado. Não se trata de abolir todas as formas propriedade, mas da “propriedade privada de hoje, a propriedade burguesa“, “o modo de apropriação” fundado sobre a exploração de uns pelos outros.

Entre dois direitos, o dos proprietários em se apropriarem dos bens comuns e o dos despossuidos à existência, “é a força que resolve“, disse Marx. Toda a história moderna da luta de classes, da guerra dos camponeses na Alemanha às revoluções sociais do último século, passando pelas revoluções inglesa e francesa, é a história desse conflito. Resolve-se pela emergência de uma legitimidade oposta à legalidade dos dominantes. Como “forma política enfim encontrada da emancipação“, como “abolição” do poder de Estado, como realização da República social, a Comuna ilustra a emergência desta legitimidade nova. A sua experiência inspirou as formas de auto-emancipação e autogestão populares surgidas nas crises revolucionárias: conselhos operários, sovietes, comités de milícias, cordões industriais, associações de vizinhos, comunas agrárias, que tendem a desprofissionalizar a política, em modificar a divisão social do trabalho, a criar as condições do desaparecimento do Estado como corpo burocrático separado.

8. Sob o domínio do capital, qualquer progresso aparente tem a sua contrapartida de regressão e de destruição. Ele consiste “em mudar a forma de servidão“. O comunismo exige outra ideia e outros critérios diferentes do rendimento e da rentabilidade monetária. A começar pela redução drástica do tempo de trabalho obrigatório e a mudança da própria noção de trabalho: não poderia haver desenvolvimento individual no lazer ou no “tempo livre” enquanto que o trabalhador continuar alienado e mutilado no trabalho. A perspectiva comunista exige também uma mudança radical da relação entre o homem e a mulher: a experiência da relação entre os géneros é a primeira experiência da alteridade e também enquanto subsistir essa relação de opressão, todo o ser diferente, pela sua cultura, sua cor de pele, ou sua orientação sexual, será vítima de formas de discriminação. O progresso autêntico resido enfim no desenvolvimento e na diferenciação das necessidades cuja combinação original faça a escolha de cada um e cada uma um ser único, cuja singularidade contribua ao enriquecimento da especie.

9. O Manifesto concebe o comunismo como “uma associação onde o livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos“. Ele aparece assim como a máxima de um livre desenvolvimento individual que não se pode confundir, nem com as miragens de um individualismo sem individualidade submetido ao conformismo publicitário, nem com o igualitarismo grosseiro de um socialismo de quartel. O desenvolvimento das necessidade e das capacidades singulares de cada um e cada uma contribui ao desenvolvimento universal da especie humana. Reciprocamente, o livre desenvolvimento de cada um e cada uma implica o livre desenvolvimento de todos, porque a emancipação não é um prazer solitário.

10. O comunismo não é uma ideia pura, nem um modelo doutrinário de sociedade. Ele não é o nome de um regime estatal, nem tampouco de um novo modo de produção. É o do movimento que, em permanência, ultrapassa/suprime a ordem estabelecida. Mas ele é também o objectivo que surge desse movimento, orienta e permite, contra políticas sem princípio, acções sem seguimento, improvisações no dia a dia, de determinar o que aproxima do objectivo e o que o afasta. A esse respeito, é, não um conhecimento científico do objectivo e do caminho, mas uma hipótese estratégica reguladora. Ele nomeia indissociavelmente o sonho irredutível de outro mundo de justiça, de igualdade e de solidariedade; o movimento permite que vise o derrube da ordem existente na época do capitalismo; e a hipótese que orienta esse movimento para uma mudança radical das relações de propriedade e de poder, longe das acomodações com um mal menor que seria o mais curto caminho para o pior.

11. A crise, social, económica, ecológica e moral de um capitalismo que não vai mais longe que os seus próprios limites senão à custa de uma desmedida e de um desatino crescentes, ameaçando ao mesmo tempo a espécie e o planeta, coloca na ordem do dia “a actualidade de um comunismo radical” que invoca [Walter] Benjamin diante dos perigos de entre as duas guerras.


* Ver Dionys Mascolo, A recherche d´un communisme de pensée, Éditions Fourbis, 2000, p. 11


***

Daniel Bensaïd nasceu em Toulouse, na França, em 1946. Foi filósofo e dirigente da Liga Comunista Revolucionária, e um dos militantes mais destacados dos movimentos de Maio de 1968. Professor de Filosofia da Universidade de Paris VIII, faleceu no dia 12 de janeiro de 2010, aos 64 anos. Pela Boitempo, lançou Os irredutíveis: teoremas de resistênica para o tempo presente (2008), Marx, manual de instruções (2013), seu último livro escrito em vida, e, junto com Michael Löwy, o mais recente Centelhas: marxismo e revolução no século XXI, organizado por José Correia Leite.

in Blog da Boitempo

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