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sábado, 3 de outubro de 2020

Do livro REALISMO CAPITALISTA

 

Para desvendar a cilada do Realismo Capitalista

Sai no Brasil primeiro livro de Mark Fisher, filósofo maldito que tentou explicar os mecanismos que tornam “mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do sistema”. Leia um capítulo central da obra

A “City”, coração financeiro de Londres e um dos hubs principais do capitalismo do século XXI

Por Mark Fisher

MAIS:
O texto a seguir é o capítulo “O Capitalismo e o Real”, de
Realismo Capitalista,
de Mark Fischer, publicado pela
Autonomia Literária, parceira editorial de Outras Palavras

Realismo Capitalista, disponível no site da Editora Autonomia Literária

A expressão “realismo capitalista” não é original. Já foi usada, na década de 1960, por um grupo de pop art alemã1 e por Michael Schudson em seu livro de 1984 Advertising: the uneasy persuasion [Propaganda: a persuasão inquieta] – ambos fazendo referência paródica ao realismo socialista. O que é novo no uso que faço do termo é o significado mais expansivo – e até exorbitante – que atribuo a ele. O realismo capitalista, como o entendo, não pode ser confinado à arte ou à maneira quase propagandística pela qual a publicidade funciona. Trata-se mais de uma atmosfera penetrante, que condiciona não apenas a produção da cultura, mas também a regulação do trabalho e da educação – agindo como uma espécie de barreira invisível, limitando o pensamento e a ação.

Se o realismo capitalista é tão fluido, e se as formas atuais de resistência são tão desesperançosas e impotentes, de onde poderia vir um desafio efetivo? Uma crítica moral ao capitalismo, enfatizando as maneiras pelas quais ele gera miséria e dor, apenas reforça o realismo capitalista. Pobreza, fome e guerra podem ser apresentadas como aspectos incontornáveis da realidade, ao passo que a esperança de um dia eliminar tais formas de sofrimento pode ser facilmente representada como mero utopismo ingênuo. O realismo capitalista só pode ser ameaçado se for de alguma forma exposto como inconsistente ou insustentável, ou seja, mostrando que o ostensivo “realismo” do “capitalismo” na verdade não tem nada de realista.


Não é preciso dizer que o que conta como “realista”, o que parece possível em qualquer ponto do campo social, é definido por uma série de determinações políticas. Uma posição ideológica nunca é realmente bem-sucedida até ser naturalizada, e não pode ser naturalizada enquanto ainda for pensada como valor, e não como um fato. Não por acaso, o neoliberalismo tem procurado acabar com a própria categoria de valor em um sentido ético. Ao longo dos últimos trinta anos, o realismo capitalista implantou com sucesso uma “ontologia empresarial”, na qual é simplesmente óbvio que tudo na sociedade, incluindo saúde e educação, deve ser administrado como uma empresa.

Como um grande número de teóricos radicais – de Brecht a Foucault e Badiou – já sustentou, a política emancipatória precisa sempre destruir a aparência de uma “ordem natural”: deve revelar que o que nos é apresentado como necessário e inevitável é, na verdade, mero acaso, e deve fazer com que o que antes parecia impossível seja agora visto como alcançável. Vale a pena recordar que o que é atualmente chamado de realista já foi um dia “impossível”: a onda de privatizações dos anos 1980 seria impensável apenas uma década antes, e o atual panorama político (com sindicatos dormentes, ferrovias desnacionalizadas e serviços públicos terceirizados) mal podia ser imaginado em 1975. Por outro lado, o que um dia já esteve iminentemente próximo, agora é considerando irrealista. “Modernização”, observa amargamente Badiou, “é o nome dado a uma definição estrita e servil do possível. Essas ‘reformas’ invariavelmente visam tornar impossível o que costumava ser praticável (para a maioria), e convertendo em fonte de lucro (para a oligarquia dominante) o que não costumava ser”.2

Neste ponto, talvez valha a pena introduzir uma distinção teórica elementar da psicanálise lacaniana, à qual Žižek se esforçou para conferir um valor atual: a diferença entre real e realidade. Como Alenka Zupančič explica, o postulado psicanalítico de um princípio de realidade nos convida a desconfiar de qualquer realidade que se apresente como natural. “O princípio de realidade”, escreve Zupančič,

não é um tipo de estado natural associado ao modo de ser das coisas… O princípio de realidade é ele mesmo ideologicamente mediado; pode-se até mesmo afirmar que constitui o grau mais elevado de ideologia, a ideologia que se apresenta como fato empírico (ou biológico, econômico), necessidade (e que tendemos a perceber como não ideológica). É precisamente aqui que devemos ficar mais atentos ao funcionamento da ideologia.3

Para Lacan, o Real é o que qualquer “realidade” deve suprimir; aliás, a própria realidade só se constitui por meio dessa repressão. O Real é um x irrepresentável, um vazio traumático que só pode ser vislumbrado nas fraturas e inconsistências no campo da realidade aparente. Portanto, uma estratégia contra o realismo capitalista envolve invocar o Real subjacente à realidade que o capitalismo nos apresenta.

A catástrofe ambiental se enquadra neste conceito. De certa perspectiva, com certeza, pode parecer que os temas ambientais estão longe de ser “vazios irrepresentáveis” para a cultura capitalista, pois a mudança climática e a ameaça de esgotamento dos recursos estão sendo incorporadas à publicidade e à propaganda ao invés de serem reprimidas. Mas o que esse tratamento da catástrofe ambiental ilustra é a estrutura de fantasia da qual o realismo capitalista depende: o pressuposto de que os recursos são infinitos, que o próprio planeta Terra não passa de uma espécie de casco, do qual o capital pode a qualquer momento se livrar, como se abandonando uma carapaça usada, e de que qualquer problema pode ser resolvido pelo mercado. No final de Wall-E é apresentada uma versão dessa fantasia – a ideia de que a expansão infinita do capital é possível, de que o capital pode se reproduzir sem o trabalho (na nave espacial Axiom todo trabalho é realizado por robôs), de que o esgotamento dos recursos terrenos é apenas um probleminha técnico temporário e que depois de um período adequado de recuperação o capital poderá terraformar a própria Terra e recolonizá-la. No entanto, a catástrofe ambiental ainda figura no capitalismo tardio apenas como um tipo de simulacro e suas reais implicações são traumáticas demais para serem assimiladas pelo sistema. A importância da crítica verde é que ela sugere que, longe de ser o único sistema político-econômico viável, o capitalismo está na verdade destinado a destruir as condições ecológicas das quais depende o ser humano. A relação entre capitalismo e o desastre ecológico não é acidental, e nem uma mera coincidência: “a necessidade constante de um mercado em expansão” por parte do capital, seu “fetiche pelo crescimento”, mostra que o capitalismo, por sua própria natureza, se opõe a qualquer noção de sustentabilidade.   (Continua)

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