A ética da mercadoria, segundo Karl Marx
Por Ricardo Musse.
Para Max Weber, o paradoxo de uma ciência que nos permite, por meio da previsão, dominar tecnicamente a natureza, mas se mostra incapaz de determinar seu sentido ou mesmo de nos orientar para a ação social, decorre, no fundo, da tese da existência no mundo moderno de uma pluralidade de valores:
A impossibilidade de alguém se fazer campeão de convicções práticas em nome da ciência – exceto no caso único que se refere à discussão dos meios necessários para atingir um fim previamente estabelecido – prende-se a razões muito mais profundas. Tal atitude é, em princípio, absurda, porque as diversas ordens de valores se defrontam no mundo, em luta incessante (Max Weber, A ciência como vocação, p. 41).
Recorrendo a um conceito de Stuart Mill, Weber denomina esse conflito, próprio do mundo moderno, de “politeísmo de valores”. Com essa expressão, procura definir as experiências contraditórias segundo as quais existem “coisas que podem ser santas não apenas sem ser belas, mas porque e na medida em que não são belas”, “coisas que podem ser belas não apenas sem ser boas, mas precisamente por aquilo que não as faz boas”, “coisas que podem ser verdadeiras, conquanto não sejam belas nem santas nem boas” (p. 41).
Por fim, Weber reconhece que
“as opiniões que, neste momento, lhes exponho têm por base, na verdade, a condição fundamental seguinte: a vida, enquanto encerra em si mesma um sentido e enquanto se compreende por si mesma, só conhece o combate que os deuses travam entre si ou –evitando a metáfora– só conhece a incompatibilidade das atitudes últimas possíveis, a impossibilidade de dirimir seus conflitos e, consequentemente, a necessidade de se decidir em prol de um ou de outro.” (WEBER, Max. A ciência como vocação, p. 47)
Enquanto Max Weber compreende as motivações das ações sociais no mundo moderno como um conflito incessante entre valores incompatíveis entre si, Karl Marx destaca o fetichismo da mercadoria, isto é, um processo em que a relação social constitutiva da produção de mercadorias torna-se oculta por uma relação fantasmagórica entre coisas.
O misterioso da forma mercadoria consiste simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios produtos do trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre objetos (Karl Marx, O capital, p. 71).
Essa ocultação da relação social, proveniente da transformação dos produtos do trabalho em “mercadorias, coisas físicas metafísicas ou sociais”, seria estrutural no capitalismo, isto é, algo que independe do conhecimento de seu mecanismo:
Os homens relacionam entre si seus produtos de trabalho como valores não porque consideram essas coisas como meros envoltórios materiais de trabalho humano da mesma espécie. Ao contrário. Ao equiparar seus produtos de diferentes espécies na troca, como valores, equiparam seus diferentes trabalhos como trabalho humano. Não o sabem, mas o fazem. Por isso, o valor não traz escrito na testa o que ele é. O valor transforma muito mais cada produto de trabalho em um hieróglifo social. Mais tarde, os homens procuram decifrar o sentido do hieróglifo, descobrir o segredo de seu próprio produto social, pois a determinação dos objetos de uso como valores, assim como a linguagem, é seu produto social. A tardia descoberta científica, de que os produtos do trabalho, enquanto valores, são apenas expressões materiais do trabalho humano despendido em sua produção, faz época na história da humanidade, mas não dissipa, de modo algum, a aparência objetiva das características sociais do trabalho (Karl Marx, O capital, p. 72).
A ética ou a moral burguesa, enquanto motivação da ação social, assenta-se em uma “aparência objetiva”, estruturalmente constitutiva. Mesmo assim pode-se dizer que o projeto marxista de uma “crítica da economia política” contém, ainda que implícita, uma crítica dos fundamentos burgueses da ação (em larga medida, incorporados pelos teóricos da economia a partir de Adam Smith). O capital procura estabelecer os parâmetros de uma crítica da ética econômica supostamente imanente ao mercado capitalista.
Essa suposta ética econômica – no registro terminológico estabelecido em A ideologia alemã – constitui o fundamento da ideologia burguesa. Entretanto, o que Marx contrapõe à ideologia não é propriamente a ciência positiva, mas antes a crítica. Enquanto forma de conhecimento objetivo, a crítica, tal como concebida por Marx, constitui uma instância reflexiva, um momento de um processo de transformação social mediado pela prática política.
Marx descreve as motivações da ação no mundo moderno à luz de uma dicotomia; por um lado, a ética imanente ao mercado, teorizada e difundida pela economia política (e, em certa medida, pela própria sociologia que se propõe apenas a complementá-la, exigindo uma compensação social), expressão objetiva do fetichismo da mercadoria; por outro lado, a motivação do agente revolucionário, assentada não apenas na privação e na vivência da desigualdade social (logo, em um ideal abstrato de justiça), mas sobretudo na experiência e no exercício reiterado da crítica.
Desse modo, Marx substitui as categorias filosóficas da moral e da ética, fonte e motivação da ação desde Sócrates,[1] pela contraposição entre a ação fundada na ideologia ou na crítica. Essa transposição não decorre apenas da visível indisposição de Marx ante os filósofos profissionais e suas categorias, mas do fato de que havia um impasse sobre essa questão, no âmago da filosofia do idealismo alemão.
A crítica de Marx à filosofia, cristalizada nas Teses sobre Feuerbach, constitui-se por meio de uma operação que, grosso modo, adota como ponto de partida a detecção de uma contradição insolúvel, para a qual é sugerida uma solução que explode o recorte estritamente filosófico – procedimento depois reiterado por Ferdinand Tönnies, Émile Durkheim e a tradição sociológica que eles fundam.
A moral kantiana e a ética hegeliana apresentam-se como um exemplo típico desse quadro. Segundo Kant, o “dever ser” (a moral) estabeleceria os padrões de orientação da conduta racional. Com isso, apesar de sua exigência universalista, Kant constitui o indivíduo singular, isolado, como substrato da ação racional. Assim, a moral kantiana acaba por desvincular moral e política.[2] Já Hegel, ao criticar a noção kantiana de “dever ser”, substitui a moral individual por uma ética coletiva. Anuncia-se se assim a experiência segundo a qual a conduta do indivíduo (por mais que se queira fruto de uma vontade pura), em vez de moldar a realidade, seria moldada pela sociedade, instância que determina e limita a ação individual.
O dilema que Marx se propõe a solucionar diz respeito a “como encontrar outro fundamento para a ação”, distinto dessa dicotomia, em que ora a conduta aparece (na moral kantiana) como inteiramente desvinculada da ação política, ora a ética coletiva e social desconsidera o indivíduo (em Hegel) e, com isso, as possibilidades de resistência e rebelião aos ditames da sociedade.
A solução que Marx propõe assenta-se na contraposição entre a ideologia, fonte de motivação da ação pré-determinada pela ordem social, e a crítica, considerada como experiência motivadora da ação política, logo da práxis transformadora. É nesse sentido que devemos entender a célebre décima primeira tese sobre Feuerbach; “Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert; es kommt aber darauf an, sie zu verändern”.
O termo “ética” reaparece na obra de Max Weber em um sentido próximo àquele atribuído por Marx ao termo ideologia. Trata-se de um fundamento da motivação da ação, mas também de uma espécie de seiva responsável pela concatenação da vida social. É nesse sentido, por exemplo, que descreve o ethos econômico do protestantismo ascético como o próprio “espírito do capitalismo”.
Apesar de sua proximidade com o pensamento de Kant (patente, por exemplo, em sua defesa do individualismo metodológico), Weber retoma a inflexão da determinação social da ação individual. Mas, nesse ponto, ele destaca-se seja de Hegel, seja da tradição sociológica que desdobrou essa inflexão, ao estabelecer uma tipologia da ética social em que a “ética econômica das religiões universais” (o efeito prático das doutrinas religiosas) convive, nas sociedades modernas, seja com uma “ética da convicção” (uma ética da intenção à maneira da moral kantiana) e uma “ética da responsabilidade” (própria da ação política, na qual seria possível, pela via do cálculo e da previsão, estimar o efeito e as consequências da ação).
O próprio conceito weberiano de racionalidade parece contraditório. É definido, por um lado, como uma decorrência do “desencantamento do mundo”, o que gera uma multiplicidade de esferas separadas e concomitantes, pautadas por desdobramentos independentes, por outro lado, como uma forma de adequação entre meios e fins, como a expressão mais completa do processo de racionalização social.[3]
O problema não consiste propriamente em que Weber abdique da determinação dos fins. O projeto de uma “ética material” desenvolvido por Max Scheler demonstra por si só, os equívocos dessa opção. A questão é que ele reduz o conceito de razão a um mero meio, separado e indiferente em relação aos fins e à consciência crítica destes. Apesar de desdobrado em diferentes esferas, a racionalização, tal como concebida por Weber, na medida em que subtrai o espaço da reflexão crítica e transformadora, não vai além de uma generalização para todos os âmbitos da vida da razão abstrata ou razão instrumental, descrita por Tönnies como restrita à órbita da ordem econômica.
Deixada a si mesma a sociedade coloca como fim sua autoconservação. Na sociedade capitalista, a reprodução se processa por meio de uma dinâmica ilimitada, marcada pela acumulação do capital, em que as regras de conduta do mundo das mercadorias se expande tanto para regiões em que predominam modalidades de ação pré-capitalistas, quanto para esferas que em princípio estariam imunes a essa lógica, como é o caso do mundo da política e do direito ou o território da arte.
Desse modo, ao recusar qualquer tentativa de determinação dos fins, ou melhor, de um exame crítico destes pela reflexão, Weber opõe-se veementemente ao diagnóstico de Marx acerca da origem, natureza e futuro do capitalismo. Em lugar de uma sociedade marcada pela reificação, inerente ao fetichismo da mercadoria, Weber concebe o mundo moderno como uma sociedade pautada pelo processo de racionalização social em diversas esferas com desdobramentos independentes. Essa descrição aproxima-se muito do figurino próprio do liberalismo que descreve o mundo moderno como uma sociedade pluralista.
[1] Cf. WOLFF, Francis. Sócrates.
[2] Observe-se que a maioria dos exemplos de Kant – tanto na Fundamentação da metafísica dos costumes quanto na Crítica da razão prática – advém da esfera privada e do mundo dos negócios.
[3] Cf. HABERMAS, Jürgen. Teoria do Agir Comunicativo, p. 197.
in Boitempo
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