Uma terrível normalidade: os massacres e as aberrações da História
Nós precisamos nos esforçar de toda forma possível pelo desenrolar revolucionário, uma revolução de democracia
Ao longo de boa parte da história, o anormal tem sido a norma, Este é o
paradoxo que vamos examinar. Aberrações, tão abundantes que formam uma
terrível normalidade própria, caem sobre nós com uma consistência
medonha.
A quantidade de massacres na história, por exemplo, é quase maior do
que nós podemos nos lembrar. Houve o holocausto do Novo Mundo, que
consistiu no extermínio de povos indígenas americanos nativos por todo o
hemisfério ocidental, estendendo-se por quatro ou mais séculos e
continuando até tempos recentes na região amazônica.
Foram séculos de escravidão cruel nas Américas e em outros lugares,
seguidas por um século inteiro de linchamentos a da segregação de Jim
Crow nos Estados Unidos, e pelos numerosos assassinatos e prisões da
juventude negra pela polícia atualmente.
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Linchamento público de Henry Smith, negro norte-americano morto por espancamento em 1893 em Paris, Texas
Não nos esqueçamos do extermínio de 200 mil filipinos pelo exército dos
Estados Unidos no começo do século 20, o massacre genocida de 1.5
milhão de armênios pelos turcos em 1915, e a matança em massa dos
africanos pelos colonialistas ocidentais, incluindo as 63 mil vítimas do
genocídio de hererós e namaquas, no sudoeste africano alemão, em 1904, e
a brutalização e escravização de milhões de belgas do Congo desde o
final dos anos 1880 até a sua emancipação em 1960 – seguida pelos anos
de exploração do livre-comércio neocolonial e pela repressão no que era o
Zaire de Mobutu.
Os colonizadores franceses mataram 150 mil argelinos. Mais tarde,
muitos milhões faleceram em Angola e Moçambique ao lado de outros 5
milhões na impiedosa região hoje conhecida como a República Democrática
do Congo.
O século vinte nos deu – além de outros horrores – mais de 16 milhões
de vidas perdidas e de 20 milhões de feridos ou mutilados na Primeira
Guerra Mundial, seguidos pelos estimados 62 a 78 milhões de mortos na
Segunda Guerra Mundial, incluindo 24 milhões de militares e civis
soviéticos, 5.8 milhões de judeus europeus, e somados como um todo,
muitos milhões de sérvios, poloneses, ciganos, homossexuais e uma porção
de outras nacionalidades.
Nas décadas depois da Segunda Guerra Mundial, muitos, se não a maioria,
dos massacres e guerras foram abertamente ou secretamente patrocinados
pelo estado de segurança nacional dos Estados Unidos. Isso inclui os
mais ou menos dois milhões deixados mortos ou desaparecidos no Vietnã,
ao lado dos 250 mil cambojanos, 100 mil laosianos e 58 mil americanos.
Em boa parte da África, Ásia Central, e no Oriente Médio, hoje, existem
guerras “menores”, cheias de atrocidades de todos os tipos. A América
Central, a Colômbia, a Ruanda e outros lugares numerosos demais para
listar sofreram massacres e extermínios em massa de centenas de
milhares, uma constância de horrores violentos. No México, uma “guerra
contra as drogas”, tirou a vida de 70 mil pessoas e deixou 8 mil
desaparecidas.
Houve a chacina de mais de meio milhão de indonésios socialistas ou
nacionalistas democráticos pelo exército indonésio patrocinado pelos
Estados Unidos em 1965, que terminou seguida pelo extermínio de 100 mil
timorenses do leste pelo mesmo exército apoiado pelos Estados Unidos.
Considere os 78 dias de destruição aérea da Iugoslávia pela OTAN,
completada com [armas de] urânio empobrecido, e o bombardeio e invasão
do Panamá, Granada, Somália, Líbia, Iêmen, Paquistão Ocidental,
Afeganistão, e agora a guerra devastadora do atrito intermediado contra a
Síria. Enquanto eu escrevo (no começo de 2013) sanções patrocinadas
pelos Estados Unidos contra o Irã estão plantando severas dificuldades
para a população civil daquele país.
Tudo o que foi citado acima faz parte de uma muito incompleta lista da
injustiça feia e violenta no mundo. Um inventário completo encheria
volumes. Como nós registramos os outros incontáveis abusos que marcam
vidas, os muitos milhões que sobreviveram a guerras e massacres, mas
seguem para sempre com corpos e espíritos quebrados, condenamos a uma
vida de sofrimento e privações sem dó, refugiados que não têm comida ou
remédios ou água e serviços sanitários em países como Síria, Haiti, o
sul do Sudão, Etiópia, Somália e Mali?
Pense nas milhões de mulheres e crianças ao redor do mundo e ao longo
dos séculos que foram traficadas de maneiras impronunciáveis, e os
milhões em cima de milhões presos em uma armadilha de exploração, sejam
eles escravos, servos, ou trabalhadores mal pagos. O número de
empobrecidos está agora crescendo em uma taxa que supera a população
mundial. Some a isso os incontáveis atos de repressão, encarceramento,
tortura e outros abusos criminosos que se abateram sobre o espírito
humano em todo o mundo e todos os dias.
Não deixemos passar batidas a onipresente corrupção corporativa e as
massivas fraudes financeiras, a pilhagem dos recursos naturais e o
envenenamento industrial de regiões inteiras, o deslocamento forçado de
populações inteiras, as catástrofes intermináveis de Chernobyl e
Fukushima e outros desastres iminentes esperando o envelhecimento de
muitos reatores nucleares.
As mais horrorosas aberrações do mundo são tão comuns e implacáveis que
elas deixam de ser extremas e nós nos tornamos acostumados ao horror de
tudo. “Quem hoje se lembra dos armênios?”, é uma pergunta que Hitler
teria feito enquanto planejava sua “solução final” para os judeus. Quem
hoje se lembra dos iraquianos e da morte e destruição que eles sofreram
em larga escala pela invasão norte-americana de suas terras? William
Blum nos faz lembrar que mais da metade da população do Iraque está ou
morta, ou ferida, traumatizada, presa, deslocada ou exilada, enquanto
seu meio-ambiente é saturado com urânio empobrecido (do armamento
estadunidense) provocando horrorosos defeitos de nascimento nos bebês.
Padrões
O que será feito disso tudo? Primeiro, nós não podemos atribuir essas
aberrações ao acaso, a confusões inocentes e a consequências não
intencionais. Nem deveríamos acreditar nas justificativas comuns sobre
espalhar a democracia, lutar contra o terrorismo, promover resgates
humanitários, proteger os interesses nacionais dos Estados Unidos e
outras palavras de ordem gritadas pelas elites dominantes e seus
porta-vozes.
Os padrões repetitivos de atrocidade e violência são tão persistentes
que nos convidam a suspeitar que eles geralmente sirvam a interesses
reais; eles são estruturais e não incidentais. Toda essa destruição e
chacina deu altíssimos lucros aos plutocratas que buscam a expansão
econômica, a aquisição de recursos, o domínio de territórios e a
acumulação financeira.
Os interesses dominantes estão bem servidos por sua superioridade em
armas de fogo e força de ataque. A violência é do que nós estamos
falando aqui, não apenas a do tipo selvagem e arbitrária, mas a
persistente e bem organizada. Como um recurso político, a violência é o
instrumento da autoridade suprema. A violência permite a conquista de
terras inteiras e das riquezas que elas contêm, enquanto se aproveita de
trabalhadores deslocados e outros escravos.
Os governantes da plutocracia acham necessário maltratar ou exterminar
multidões inquietas para fazer com que elas morram de fome enquanto os
frutos de suas terras e o suor de seu trabalho enriquecem os círculos
sociais privilegiados.
Assim, nós tivemos uma lei imperial regida pelo lucro que ajudou a
causar a grande fome no norte da China, entre 1876-1879, resultando na
morte de por volta de 13 milhões de pessoas. Mais ou menos ao mesmo
tempo, a fome de Madras, na Índia, levou as vidas de nada menos que 12
milhões enquanto as forças coloniais enriqueceram ainda mais. E noventa
anos antes, a Grande Fome na Irlanda levou a um milhão de mortes, com
outro desesperado milhão emigrando de sua terra natal. Nada acidental
aí: enquanto os irlandeses morriam de fome, seus patronos ingleses
exportavam carregamentos de grãos e gado para a Inglaterra e outros
países, ganhando para si lucros consideráveis.
Essas ocorrências devem ser vistas como algo mais que apenas anomalias
históricas flutuando sem rumo no tempo e no espaço, causadas apenas por
impulsos arrogantes ou casualidades. Não é suficiente condenar os
eventos monstruosos e os tempos ruins, nós precisamos tentar
entendê-los. Eles devem ser contextualizados no quadro mais amplo das
relações sociais históricas.
Crises econômicas
O sistema socioeconômico dominante atual é o capitalismo de
livre-comércio (em todas as suas variações). Junto com seu terrorismo
imperialista implacável, o capitalismo de livre-comércio proporciona
“anomalias normais” dentro de sua própria dinâmica, criando escassez e
um excesso mal distribuído, cheio de duplicações, desperdício,
superprodução, destruição ambiental assustadora, e variedades de crises
financeiras, trazendo inchadas recompensas para um grupo seleto e
dificuldades contínuas para multidões.
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As crises econômicas não são excepcionais; elas são o modus-operandi do sistema capitalista. Outra vez, o irracional é a norma.
[Grafitti em Milão, na Itália, manda aviso ao ex-premiê Silvio Berlusconi: "Pague você a crise!]
Considere a história do livre-comércio: depois da Guerra da
Independência dos Estados Unidos, houve as rebeliões de débito do final
dos anos 1780, o pânico de 1791, a recessão de 1809 (que durou muitos
anos), os pânicos de 1819 e 1837, as recessões e quebras ao longo de boa
parte do restante daquele século. A séria recessão de 1893 continuou
por mais de uma década.
Depois do desemprego industrial de 1900 a 1915 veio a depressão agrária
dos anos 1920 – escondida atrás do que ficou conhecido entre nós como a
“Era do Jazz”, seguida de uma horrenda quebra da bolsa e da Grande
Depressão de 1929-1942. Ao longo de todo o século 20 nós tivemos
guerras, recessões, inflação, lutas laborais, alto desemprego –
raramente um ano que pudesse ser considerado “normal” em qualquer
sentido agradável. Um período normal estendido seria ele mesmo uma
anormalidade. O livre-comércio é desenhado para ser inerentemente
instável em todos os aspectos fora o acúmulo de riquezas para os poucos
selecionados.
O que nós estamos testemunhando não é um acaso irracional em uma
sociedade basicamente racional, mas o contrário: o “racional” (a ser
esperado) é o acaso de uma sociedade fundamentalmente irracional. Isso
significa não podemos escapar aos horrores? Não, eles não feitos por
forças sobrenaturais. Eles são produzidos pela ganância plutocrática e
pela decepção.
Então, se o anômalo é a norma e o horror é crônico, na nossa revanche
nós temos que dar menos atenção ao idiossincrático e mais ao sistêmico.
Guerras, massacres e recessões ajudam a aumentar a concentração do
capital, o monopólio de mercado e dos recursos naturais, e destroem
organizações trabalhistas e a resistência popular transformadora.
Os caprichos brutais da plutocracia não são produto de personalidades
particulares, mas de interesses sistêmicos. O presidente George W. Bush
foi ridicularizado por errar as palavras, mas sua construção de impérios
e remoção de serviços e regulamentos governamentais revelou uma grande
devoção aos interesses da classe dominante. Da mesma maneira, o
presidente Barack Obama não é covarde. Ele é hipócrita, mas não confuso.
Ele é (em sua própria descrição) um antigo “liberal republicano”, ou
como eu diria, um fiel servidor das corporações da América.
Nossos diferentes líderes são bem informados, não iludidos. Eles vêm de
diferentes regiões e diferentes famílias, e têm personalidades
diferentes, mas ele buscam basicamente as mesmas políticas representando
a mesma plutocracia.
Ações
Então não é suficiente denunciar atrocidades e guerras, nós também
temos que entender quem as propaga quem lucra com elas. Nós temos que
perguntar porque a violência e a decepção são ingredientes constantes.
Consequências não intencionais e outras esquisitices acontecem em
assuntos mundanos, mas nós também temos que levar em consideração as
intenções racionais orientadas pelo lucro. É mais comum que as
aberrações – sejam elas guerras, quebras de mercado, fomes, assassinatos
individuais ou matanças em massa – tomem forma porque aqueles no topo
estão buscando expropriações lucrativas. Muitos podem sofrer e perecer,
mas alguém em algum lugar esta lucrando sem limites.
Conhecer nossos inimigos e o que eles são capazes de fazer é o primeiro
passo na direção de uma oposição efetiva. O mundo deixa de ser uma
confusão terrível. Nós podemos resistir a esses agressores quando nós
vemos quem eles são e o que eles estão fazendo conosco e com nosso
sagrado meio-ambiente.
As vitórias democráticas, não importa se são pequenas ou parciais,
devem ser abraçadas. Mas as pessoas não devem ficar satisfeitas com
favores cintilantes oferecidos pelos líderes suaves. Nós precisamos nos
esforçar de toda forma possível pelo desenrolar revolucionário, uma
revolução de democracia, o tipo de onda irresistível que parece surgir
do nada enquanto leva tudo que está à sua frente.
* Michael Parenti é um escritor e historiador norte-americano.
Seus livros mais recentes são The Culture Struggle (2006), Contrary
Notions: The Michael Parenti Reader (2007), God and His Demons (2010),
Democracy for the Few (9th ed. 2011), e The Face of Imperialism (2011).
Para mais informações sobre o trabalho dele, visite seu site: www.michaelparenti.org. Artigo originalmente publicado no site Global Research.
OPERA MUNDI
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