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quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Um texto precioso do grande dirigente africano Amílcar Cabral e a personalidade moral de Lenine

 

"Uma luz fecunda ilumina o caminho da Luta"


O valor e o caráter transcendente do pensamento e da obra humana, política, científica, cultural— histórica— de Vladimir llitch Lenin são há muito já um fato universalmente reconhecido. Mesmo os mais ferozes adversários das suas ideias tiveram de reconhecer em Lenin um revolucionário consequente, que soube dedicar- se totalmente à causa da revolução e fazê-la, um filósofo e um sábio cuja grandeza só é comparável à dos maiores pensadores da humanidade.

Atualmente, não é raro ouvir políticos — mesmo os mais antissocialistas — citar Lenin ou gabar- se de ter lido as suas obras. É evidente que não podemos acredita-los à letra, mas isso dá bem a medida da importância (mesmo da necessidade) do pensamento de Lenin e da vastidão das consequências práticas da sua ação no contexto histórico atual.

Para os movimentos de libertação nacional, cuja tarefa é fazer a revolução, modificando radicalmente, pelas vias mais adequadas, a situação econômica, política, social e cultural dos seus povos, o pensamento e a ação de Lenin têm um interesse especial.

Mas Lenin não deixou apenas a sua obra. Foi e continua a ser um exemplo vivo de combatente pela causa da humanidade, pela libertação econômica e, portanto, nacional, social e cultural do homem. A sua vida e o seu comportamento como personalidade humana contêm lições e exemplos úteis para todos os combatentes da libertação nacional. Entre essas lições, as que nos parecem ser da maior acuidade para os movimentos de libertação referem- se ao comportamento moral, à ação política, à estratégia e à prática revolucionária.

No âmbito geral do movimento de libertação nacional, especialmente em condições como as nossas, o comportamento moral do combatente, em particular dos dirigentes, é um fator primordial que pode influenciar significativamente o êxito ou o fracasso do movimento. É evidente que a luta é essencialmente política, mas as circunstancias políticas, econômicas e sociais — históricas —, em que se estrutura e desenvolve o movimento, conferem aos problemas de natureza moral uma particular importância, devido principalmente às fraquezas próprias do movimento nacional de libertação nas colônias, ao oportunismo ou às possibilidades de oportunismo que o caracterizam, às pressões e manhas utilizadas pelo inimigo imperialista, assim como à dificuldade, mesmo a impossibilidade de um controle do movimento e dos seus chefes pelas massas populares nacionalistas.

No movimento de libertação, como em qualquer outro empreendimento humano — e sejam quais forem os fatores materiais e sociais que condicionem a sua evolução —, o homem (a sua mentalidade, o seu comportamento) é o elemento essencial e determinante.

Lenin foi um exemplo de coerência consigo mesmo e de coerência entre as palavras e os atos. Soube, através de toda a evolução característica da sua personalidade, permanecer igual a si mesmo na verticalidade das suas opções e dos seus atos. Estes sempre corresponderam às suas palavras, pois soube rejeitar o verbalismo fácil, a adulação e a demagogia.

Lenin foi um exemplo de honestidade, de probidade, de sinceridade e de coragem. Sempre colocou acima de todas as suas conveniências a necessidade de observar rigorosamente os deveres da moral e da justiça, recusar a mentira e praticar a verdade, sejam quais forem as consequências ou os problemas que possa criar.

Como um ser humano integral, soube amar e odiar. Amar a causa da libertação do homem de qualquer espécie de opressão, a aventura maravilhosa que é a vida humana, tudo o que há de belo e construtivo no planeta. Odiar os inimigos do progresso e da felicidade do homem, o inimigo de classe, os oportunistas, a cobardia, a mentira, todos os fatores de aviltamento da consciência social e moral do homem. Sempre considerou o homem como o valor supremo do

Universo. A sua dedicação às crianças tornou- se lendária pois, para ele, esses seres delicados e tantas vezes incompreendidos, vítimas inocentes da exploração do homem pelo homem, são as flores da humanidade, a esperança e a certeza do triunfo de uma vida de justiça.

A luta de libertação nacional é, como já dissemos, uma luta política que pode revestir diversas formas, de acordo com as circunstâncias específicas em que se desenvolve. No nosso caso concreto, esgotamos todos os meios pacíficos ao nosso alcance para levar os colonialistas portugueses a uma modificação radical da sua política no sentido da libertação e do progresso do nosso povo.

Só encontramos repressão e crimes. Decidimos então pegar em armas para nos batermos contra a tentativa de genocídio do nosso povo, decidido a ser livre e senhor do seu próprio destino.

O fato de travarmos uma luta armada de libertação em nada modifica o caráter essencialmente político do nosso combate. Pelo contrário, acentua- o. Ora, não há, não pode haver ação política, seja qual for a sua forma, sem princípios bem definidos, quer sejam bons ou maus.

No plano político, Lenin foi um exemplo de fidelidade aos princípios. Soube fazer concessões sobre a forma de reivindicações, de axés, mas nunca sobre os princípios, principalmente quando se tratava de defender os interesses da classe e da nação que representava, assim como na prática consequente de um internacionalismo desprovido de reservas, de timidez ou de condicionalismos. É igualmente uma lição de realismo, de noção clara da possibilidade e da oportunidade política, que encontra a sua expressão máxima na decisão de desencadear a insurreição de Outubro de 1917, apesar das enormes dificuldades para vencer as hesitações e as oposições mais ou menos fundamentadas.

Uma lição de firmeza na via determinada para conduzir a ação política, ilustrada pelo combate sem tréguas que moveu a todos os desvios «de direita» ou «de esquerda» e que tantos inimigos lhe criou.

Ultrapassando a concepção vulgar, segundo a qual a política é a arte do possível, Lenin demonstrou que é antes a arte de transformar o que é aparentemente impossível em possível (tornar possível o impossível), rejeitando categoricamente o oportunismo. Assim definida, a ação política implica uma criatividade permanente. Para ela, como para a arte, criar não é inventar.

A ação de Lenin é caracterizada por uma grande flexibilidade construtiva. Em cada problema, em cada fato da luta, mesmo no mais negativo, soube discernir o lado positivo para dele extrair todas as vantagens e fazer avançar a luta.

Nesse âmbito, como noutros, demonstrou uma perseverança a toda a prova.

Ele, que considerava que «os fatos são teimosos», era teimoso como os fatos. Confiando na opinião dos outros, apesar disso, certo de que todo o combatente tem necessidade dos outros, sempre soube mudar de opinião quando a razão— a verdade científica —não estava do seu lado.

Crítico rigoroso, mesmo violento, tanto dos seus adversários como dos seus companheiros de luta caídos em erro, Lenin soube praticar exemplarmente a autocrítica. Sabia reconhecer os seus erros e elogiar o valor dos outros, mesmo dos seus mais ferozes adversários; mas soube usar de uma severidade sem limites para atacar os que considerava como inimigos de classe e da revolução.

Lenin sempre demonstrou uma confiança sem limites na capacidade das massas, mas soube, no entanto, demonstrar claramente que estas nunca deviam agir com anarquia, sem um plano bem concebido, correspondendo às possibilidades concretas de ação. Para ele, as massas nunca devem ser acéfalas.

No âmbito geral do movimento de libertação nacional, tal como em qualquer confrontação, pacífica ou não, há a necessidade vital de descobrir as leis gerais da luta e agir com base num plano geral concebido e elaborado a partir da realidade concreta do meio e dos fatores em presença. Isto quer dizer que qualquer movimento de libertação necessita de uma estratégia.

Na elaboração dessa estratégia é preciso ser capaz de distinguir o essencial do secundário, o permanente do temporário. Sem nunca confundir estratégia e táctica, a ação deve basear- se numa concepção científica da realidade, seja qual for à influência dos fatores subjetivos que é necessário enfrentar.

Também nesse plano Lenin deu uma lição muito útil aos movimentos de libertação, aos combatentes da liberdade. Tinha uma nítida consciência do valor da unidade como meio necessário para a luta, mas não como um fim em si. Para Lenin, não se trata de unir todos em torno da mesma causa, por mais justa que ela seja, de realizar a unidade absoluta, de unir- se não importa com quem.

A unidade, como qualquer outra realidade, está sujeita às transformações quantitativas, positivas ou negativas. A questão é descobrir qual é o grau de unidade suficiente que pode permitir o desencadear e garantir o avanço vitorioso da luta. E, posteriormente, preservar essa unidade contra todos os fatores de dissolução ou divisão, tanto internos como externos.

Por outro lado, Lenin tinha uma consciência profunda da necessidade de conhecer o melhor possível, na luta, as forças e as fraquezas do inimigo, tal como as nossas próprias forças e fraquezas. A concepção leninista da estratégia implica que devemos agir no sentido de aumentar as fraquezas do inimigo e transformar as suas forças em fraquezas e, simultaneamente, preservar e reforçar as nossas forças e eliminar as nossas fraquezas ou transformá-las em forças. Isto é possível pela aliança permanente e dinâmica entre a teoria e a prática.

A vida de Lenin é a aplicação consequente desta máxima dialética de Paul Langevin: o pensamento deriva da ação e, no homem consciente, deve regressar à ação. Isso implica que, como Lenin demonstrou através de toda a sua vida, a ação deve basear- se na análise concreta de cada situação concreta. De acordo com Lenin, tanto na luta como em qualquer outro fenômeno em movimento, as transformações qualitativas só se operam a partir de determinado nível de modificações quantitativas, o que significa que o processo da luta evolui por etapas, por fases bem definidas. Nessa base e nesta perspectiva devem ser estabelecidas as tácticas a seguir, que são incompatíveis mesmo com os recuos que, em determinados momentos, podem ser o único meio de fazer progredir a luta.

Qualquer luta é experiência nova, seja qual for a soma de conhecimentos teóricos ou de experiências práticas que lhe dizem respeito. Qualquer luta implica, portanto, um determinado grau de empirismo, mas não é necessário inventar o que já o foi: é sim preciso criar nas condições concretas em que a luta se trava.

Ainda neste ponto a lição de Lenin é pertinente: ele detestava tanto o empirismo cego como os dogmas. A assimilação crítica (dos conhecimentos ou das experiências dos outros) é tão válida para a vida como para a luta. O pensamento dos outros, filosófico ou científico — por mais lúcido que seja —, é apenas uma base que permite pensar e agir, portanto, criar. Para criar na luta é necessário conduzi-la, desenvolver todos os esforços e aceitar os sacrifícios necessários. A luta não é feita de palavras, mas de ação quotidiana, organizada e disciplinada, de todos os elementos válidos. A atividade múltipla desenvolvida por Lenin no decurso de uma longa luta é um exemplo de continuidade e consequência, de esforços e sacrifícios, assim como da capacidade para mobilizar as forças necessárias no tempo e no espaço necessários.

Demonstrando que, numa luta, as dificuldades subjetivas são as mais difíceis de ultrapassar, Lenin tinha consciência desta realidade: a luta é feita de êxitos e fracassos, de vitórias e derrotas, mas avança sempre e as suas fases, mesmo as mais idênticas, nunca se repetem, pois a luta é um processo e não um acidente, uma corrida de fundo e não de velocidade: as derrotas eventuais não podem justificar nem a desmoralização nem a desistência, porque mesmo os insucessos podem ser uma base de partida para novos êxitos.

Essa ultrapassagem só é possível se extrairmos uma lição de cada erro, de cada experiência positiva ou negativa e partindo do princípio de que, se é certo que a teoria sem prática é uma perda de tempo, não há prática consequente sem teoria.

Principal artífice da grande Revolução de Outubro, que modificou o destino não apenas do povo russo mas da humanidade; criador do primeiro Estado socialista; dirigente supremo da Revolução nas antigas colônias czaristas; teórico e prático conhecedor na solução do delicado problema que representava a questão nacional no país dos sovietes; militante catalisador do movimento operário internacional — Lenin marcou o século e o futuro do homem com a sua personalidade de revolucionário, legando às gerações que lhe sucederam uma obra tão singular como cheia de lições. Para os movimentos de libertação, Lenin forneceu mais esta valiosa contribuição: demonstrou, definitivamente, que os povos oprimidos podem libertar- se e ultrapassar todos os obstáculos para a construção de uma vida de justiça, de dignidade e de progresso.

É desejável que, independentemente das suas tendências ou opções políticas, os autênticos movimentos de libertação possam beber nas lições e no exemplo de Lenin a inspiração necessária para o seu pensamento, para a sua ação e para o comportamento moral e intelectual dos seus dirigentes. No interesse geral da luta contra o imperialismo e se tivermos em consideração algumas contradições que caracterizam as atuais relações entre as outras forças anti-imperialistas e mesmo alguns aspectos da sua ação, não seria justo nem, talvez, objetivo limitar esse desejo unicamente aos movimentos de libertação.

Acontece hoje com a doutrina de Lenin o que já se verificou mais de uma vez na história com as doutrinas dos pensadores revolucionários e dos chefes de classes ou nações oprimidas em luta pela sua libertação. Durante a vida dos grandes revolucionários, as classes opressoras recompensam-nos com incessantes perseguições: acolhem as suas doutrinas com um furor selvagem, com um ódio tenaz, com as mais intensas campanhas de mentiras e calúnias.

Depois da sua morte, tentam fazer deles ícones inofensivos, canonizam-nos, por assim dizer, rodeando o seu nome com uma certa auréola a fim de «consolidar» as classes ou as nações oprimidas e de as mistificar; fazendo- o, esvaziam a doutrina revolucionária do seu conteúdo, depreciam-na e destroem- lhe a força revolucionária.

É nessa forma de «arranjar» o leninismo que hoje coincidem a burguesia e os oportunistas, tanto do movimento operário como do movimento de libertação nacional. Esquecem, amordaçam, alteram o lado revolucionário da doutrina, a sua alma revolucionária. Colocam em primeiro plano e exaltam o que é ou parece ser aceitável, mesmo conveniente, para a burguesia e para o imperialismo.

O leitor deve já ter notado que o que acaba de ler é a paráfrase de parte de uma lapidar afirmação de Lenin referente a Marx. Modificamos os nomes e adaptamos o discurso à realidade essencial da história dos nossos dias: a luta de vida ou de morte contra o imperialismo. Temos de admitir que o discurso se adapta perfeitamente ao próprio Lenin, em especial quando consideramos o que ele escreveu sobre o imperialismo e a luta contra o domínio imperialista.

Sem ter a pretensão ou a audácia de querer restabelecer a doutrina de Lenin acerca do movimento de libertação nacional, gostaríamos, no entanto, de evocar determinados aspectos que nos parecem importantes—, principalmente para os que lutam pela libertação e o progresso dos seus povos.

Lenin demonstrou de forma muito clara que o movimento de libertação nacional, que adquiriu força desde o começo do século não é um fato novo na história. Em todos os continentes, em épocas mais ou menos recuadas, houve, não apenas luta de libertação tribal ou étnica, mas também movimento de luta de libertação nacional. Os povos da antiga Indochina e de outras regiões da Ásia; do México, da Bolívia e de outros países do continente americano; da

Grécia, dos Balcãs em geral, mesmo de Portugal, na Europa; do Egito, da África Oriental e da África Ocidental — para só citar estes — tiveram, no passado, a sua experiência de luta de libertação nacional.

Esses movimentos sofreram vitórias ou derrotas, mas existiram e deixaram vestígios indeléveis nos povos que afetaram, no âmbito das coordenadas históricas das sociedades em questão, numa determinada etapa da evolução econômica e política da humanidade.

Não há no entanto lugar para confusões. Lenin demonstrou que o império romano, por exemplo, não é a mesma realidade histórica que o império britânico, embora ambos tenham em comum o que parece ser, até agora, uma necessidade ou uma constante nas relações entre as sociedades humanas: a tentativa ou o êxito do domínio político e da exploração econômica de certos povos ou nações por Estados estrangeiros ou, o que vem a dar no mesmo, por classes dirigentes estrangeiras.

É evidente que Carlos Magno não foi nem podia ser César ou Átila, mas é ainda mais evidente que qualquer chefe de Estado imperialista não é, nem poder ser, o Gana do império africano que tem o seu nome, nem um imperador da família dos Ming, nem um Cortez, conquistador das Américas, nem o czar das Rússias.

Da mesma maneira e pelas mesmas razões, os bancos e os monopólios imperialistas não são as antigas associações dos comerciantes de Veneza ou a Liga Hanseática.

Lenin demonstrou que a luta de libertação contra o domínio de uma aristocracia militar (tribal ou étnica), contra o domínio feudal e mesmo contra o domínio capitalista estrangeiro do tempo do capitalismo de livre concorrência não é a mesma realidade histórica que a luta de libertação nacional contra o imperialismo, contra o domínio econômico e político dos monopólios, do capitalismo financeiro, atuando sob a forma do colonialismo, do neocolonialismo. Tomou- se e deve ser evidente para todos hoje que o aparecimento do imperialismo operou uma transformação profunda e irreversível no movimento de libertação nacional, definindo- se este como a resistência natural e necessária ao domínio imperialista.

Definindo as características internas e externas do imperialismo — estado supremo do capitalismo, resultado da concentração do capital financeiro em algumas empresas de uma meia dúzia de países, domínio insaciável dos monopólios —, Lenin caracterizou simultaneamente as transformações irreversíveis operadas no conteúdo e na forma do movimento de libertação nacional, do qual previu, cientificamente, a linha geral de evolução.

Cabe a Lenin o mérito de ter revelado, e mesmo previsto, as realidades essenciais da luta dos nossos dias, pois foi até ao fundo na análise do fato imperialista e da luta geral contra o imperialismo.

Na sua crítica genial, Lenin esclareceu o caráter essencialmente econômico do imperialismo, estudou as suas características internas e externas e as suas implicações econômicas, políticas e sociais, tanto dentro como fora do mundo capitalista. Pôs em relevo as forças e as fraquezas dessa nova realidade que é o imperialismo (quase da sua idade), que abriu novas perspectivas à evolução da humanidade.

Situando geograficamente o fenômeno imperialista no interior de uma parte bem definida do mundo; distinguindo o fator econômico das suas implicações políticas ou político-sociais, sem esquecer as relações de dependência dinâmica entre esses dois aspectos de um mesmo fenômeno; e caracterizando as relações do imperialismo com o resto do mundo, Lenin situou objetivamente tanto o imperialismo como a luta de libertação nacional nas suas verdadeiras coordenadas históricas. Estabeleceu assim, de forma definitiva, a diferença e as ligações fundamentais entre o imperialismo e o domínio imperialista.

A análise de Lenin revela- se desta forma como um encorajamento realista e uma arma poderosa para o desenvolvimento ulterior e multilateral do movimento nacional libertador. É necessário, no entanto, notar que esta análise vai ainda mais longe na contribuição que fornece à evolução desse mesmo movimento.

Com efeito, se podemos dizer que Marx, principalmente na sua obra principal— O Capital —, procedeu à anatomia ou à anatomia patológica do capitalismo, a obra de Lenin referente ao imperialismo pode ser considerada como a pré-autópsia do capitalismo moribundo. Não é exagerado afirmar que, para ele, a partir do momento em que o domínio econômico e político do capital financeiro (os monopólios) se consolidou em alguns países e se concretizou no exterior desses países pelo movimento de partilha do mundo, especialmente em África, com o monopólio das colônias — o capitalismo, tal como se definira anteriormente, transformou- se num corpo em putrefação.

Um estudo, mesmo superficial, da história econômica contemporânea dos principais países capitalistas (talvez mesmo dos menos importantes), revela que a luta tenaz entre o capital financeiro (representado pelos monopólios e os bancos) e o capital de livre concorrência se salda geralmente pela vitória do primeiro, isto é, do imperialismo.

Temos, pois, de verificar que Lenin tinha razão: o capitalismo criou o imperialismo e criou simultaneamente os elementos propícios à sua destruição.

O imperialismo matou e continua a matar o capitalismo. Com efeito, as transformações profundas realizadas nas relações de forças no âmbito da livre concorrência levaram aos monopólios, à acumulação gigantesca do capital financeiro privado no interior de certos países e, como consequência disso, ao domínio político destes pelos monopólios, o que os transformou em países imperialistas. Esta nova situação está na origem de uma confrontação permanente, aberta ou não, «pacífica» ou não, entre os países imperialistas que procuram novos equilíbrios na relação de forças, em função do grau relativo de desenvolvimento das forças produtivas e da necessidade crescente tanto de obter matérias-primas como de conquistar mercados, isto é, da realização insaciável de mais-valia ou de rendimento para o capital financeiro.

Com base numa análise tão lúcida e realista, era normal que Lenin extraísse conclusões importantes para o desenvolvimento ulterior da luta contra o imperialismo.

Entre essas conclusões, estas parecem-nos extremamente ricas em consequências:

– A acumulação desenfreada do capital financeiro e a vitória dos monopólios como fase última da apropriação privada dos meios de produção – com o agravamento da contradição entre essa apropriação e o caráter social do trabalho produtivo – criaram as condições propícias à revolução, que progressivamente acabará com o regime capitalista, atualmente representado pelo imperialismo.

– É possível, necessário e urgente fazer a revolução, se não em vários países, pelo menos num, principalmente no momento em que a agressividade característica do imperialismo se manifesta numa guerra entre os países capitalistas para uma nova partilha do mundo (Primeira Guerra Mundial).

– A criação de um Estado socialista desferirá um golpe decisivo no imperialismo e abrirá novas perspectivas ao desenvolvimento do movimento operário internacional e do movimento de libertação nacional.

– É possível uma nova confrontação armada entre os Estados imperialistas-capitalistas, pois a hipótese do ultra- imperialismo ou superimperialismo, que resolveria as contradições entre os Estados imperialistas "é tão utópica como a da ultra- agricultura". Essa confrontação enfraquecerá inevitavelmente o imperialismo (Segunda Guerra Mundial). Criar-se-ão assim condições mais favoráveis para o desenvolvimento das forças cujo destino histórico é destruir o imperialismo: instalação do poder socialista em novos países, reforço do movimento operário internacional e do movimento de libertação nacional.

– Os povos oprimidos da África, da Ásia e da América Latina são necessariamente chamados a desempenhar um papel decisivo na luta pela liquidação do sistema imperialista mundial, de que são as principais vítimas.

Estas conclusões de Lenin, explícita ou implicitamente contidas na sua obra consagrada ao imperialismo e confirmadas pelos atos da história contemporânea, são mais uma notável contribuição para o pensamento e para a ação do movimento de libertação.

Sendo marxista ou não, leninista ou não, é difícil a alguém não reconhecer a validade, mesmo o caráter genial da análise e das conclusões de Lenin, que se revelam de um alcance histórico imenso, iluminando com uma claridade fecunda o caminho quantas vezes espinhoso e mesmo sombrio dos povos que se batem pela sua libertação total do domínio imperialista.

por Amilcar Cabral

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