A espuma das palavras

Translate

quinta-feira, 31 de agosto de 2023

 

A silenciar os cordeiros: Como funciona a propaganda

John Pilger [*]

Os grandes atores dos media.

Na década de 1970, conheci um dos principais propagandistas de Hitler, Leni Riefenstahl, cujos filmes épicos glorificavam os nazis. Aconteceu estar hospedada na mesma pousada no Quénia, onde ela tinha um contrato como fotógrafa, tendo escapado ao destino de outros amigos do Führer.

Ela disse-me que as "mensagens patrióticas" dos seus filmes não dependiam de "ordens" de cima", mas sobre o que ela chamou de "vazio submisso" do público alemão. E isso incluía as pessoas educadas da burguesia? – perguntei. "Sim, especialmente eles", disse ela.

Penso nisto quando olho para a propaganda que agora consome as sociedades ocidentais. É claro que somos muito diferentes de Alemanha nos anos 1930. Vivemos em sociedades ditas da informação. Somos globalistas. Nunca estivemos mais cientes, mais em contacto e melhor conectados.

Mas estaremos? Ou vivemos numa sociedade mediática onde a lavagem cerebral é insidiosa e implacável, e a perceção é filtrada de acordo com as necessidades e mentiras do Estado e do poder corporativo?

Os Estados Unidos dominam o ocidente e os media mundiais. Todas, exceto uma, as dez maiores empresas de media, estão sediadas nos EUA. A Internet e os media sociais – Google, Twitter, Facebook – são fundamentalmente de propriedade e controlo americano.

Durante a minha vida, os Estados Unidos derrubaram ou tentaram derrubar mais mais de 50 governos, a maioria democracias. Interferiram em eleições democráticas em 30 países. Lançaram bombas sobre pessoas em 30 países, a maioria deles pobres e indefesos. Tentaram o homicídio de líderes de 50 países. Lutaram para reprimir os movimentos de libertação em 20 países.

A extensão e a escala desta carnificina são em grande parte não relatadas e não reconhecidas; os responsáveis continuam a dominar vida política anglo-americana.

Nos anos que antecederam a sua morte, em 2008, o dramaturgo Harold Pinter fez dois discursos extraordinários, que quebraram o silêncio.

"A política externa dos EUA", disse ele, é "melhor definida da seguinte forma: beije meu traseiro ou eu dou-lhe um pontapé na cabeça. É tão simples e tão tosco como isto. O que há de interessante é que é incrivelmente bem-sucedido. Os EUA possuem as estruturas de desinformação, uso da retórica, distorção da linguagem, que é muito persuasiva, mas na verdade são pacotes de mentiras. É uma muito bem sucedida propaganda. Eles têm o dinheiro, têm a tecnologia, têm todos os meios para saírem impunes, e conseguem-no".

Cordeiro conformista, cartoon.

Ao aceitar o prémio Nobel Pinter disse o seguinte:   "Os crimes dos Estados Unidos têm sido sistemáticos, constantes, viciosos, sem remorso, mas muito poucas pessoas realmente falaram sobre eles. Tem que se dar o mérito à América. Exerceu uma manipulação bastante cirúrgica do poder em todo o mundo, disfarçada como uma força para o bem universal. É um brilhante, mesmo cómico, altamente bem-sucedido ato de hipnose".

Pinter era meu amigo e possivelmente o último grande sábio político – antes da dissidência política ter sido assimilada e aburguesada. Perguntei-lhe se a "hipnose" a que se referia era o "vazio submisso" descrito por Leni Riefenstahl. "É a mesma coisa", respondeu. "Significa que a lavagem cerebral é tão completa que somos programados para engolir pacotes de mentiras. Se nós não reconhecemos a propaganda, podemos aceitá-la como normal e acreditar. Isto é o vazio submisso".

Nos nossos sistemas de democracia corporativa a guerra é uma necessidade económica, o perfeito casamento de subvenção pública e lucro privado: socialismo para ricos, capitalismo para os pobres. No dia seguinte à ação do 11 de setembro em Nova Iorque, os preços das ações das indústrias bélicas dispararam. O derramamento de sangue estava a chegar, o que é ótimo para negócio.

Hoje, as guerras mais lucrativas têm sua própria marca. São as "guerras para sempre": Afeganistão, Palestina, Iraque, Líbia, Iémen e agora Ucrânia. Todas são baseadas em pacotes de mentiras.

O Iraque é a mais infame, com suas armas de destruição em massa que não existiram. A destruição da Líbia pela NATO em 2011 foi justificada por um massacre em Benghazi que não aconteceu. O Afeganistão era uma guerra de vingança pelo 11 de setembro, que nada tinha a ver fazer com o povo do Afeganistão.

Hoje, as notícias do Afeganistão são sobre o mal que os talibã fazem, mas não sobre o roubo de 7 mil milhões de dólares que o Presidente Biden ordenou, reservas bancárias do país que estão a causar sofrimento generalizado. Recentemente, a Rádio Pública em Washington dedicou duas horas ao Afeganistão – e 30 segundos para seu povo faminto.

Na cimeira de Madrid, em Junho, a NATO, controlada pelos Estados Unidos, adotou um documento de estratégia que militariza o continente europeu e escala a perspetiva de guerra com Rússia e China. Propõe "ações de guerra em múltiplos domínios contra concorrentes com armas nucleares". Por outras palavras, guerra nuclear.

Disseram: "O alargamento da NATO foi um êxito histórico". Li isto incrédulo. Uma medida deste "êxito histórico" é a guerra na Ucrânia, cujas notícias são principalmente não notícias, mas uma ladainha unilateral de política externa agressiva, distorção e omissão. Eu já relatei uma série de guerras e nunca conheci uma propaganda tão generalizada.

Em fevereiro de 2022, a Rússia invadiu a Ucrânia em resposta a quase oito anos de assassinatos e destruição criminosa no Donbass, uma região de língua russa, na sua fronteira. Em 2014, os Estados Unidos patrocinaram um golpe em Kiev que destituiu o presidente democraticamente eleito da Ucrânia, amigo da Rússia, empossando um sucessor que os americanos deixaram bem claro ser o seu homem.

Nos últimos anos, mísseis americanos "defensivos" foram instalados no leste Europa, Polónia, Eslovénia e República Checa, quase certamente dirigidos à Rússia, acompanhados por falsas garantias, desde a “promessa” de James Baker a Gorbachev, em Fevereiro de 1990, de que a NATO nunca se expandiria para além da Alemanha.

A Ucrânia é a linha de frente. A NATO efetivamente atingiu a própria fronteira russa através da qual o exército de Hitler invadiu a União Soviética em 1941, deixando mais de 23 milhões de mortos no país.

Em dezembro de 2021, a Rússia propôs um plano de segurança de longo alcance para a Europa. Isso foi descartado, ridicularizado ou suprimido nos media ocidentais. Quem leu suas propostas passo a passo? Em 24 de Fevereiro, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelenskyy ameaçou desenvolver armas nucleares a menos que os Estados Unidos armassem e protegessem a Ucrânia. Isto foi a gota de água. No mesmo dia, a Rússia invadiu – de acordo com os media ocidentais, um ato infame não provocado. A história, as mentiras, as propostas de paz, o acordos solenes sobre o Donbass em Minsk não contaram para nada.

Em 25 de Abril, o secretário de Estado da Defesa dos EUA, General Lloyd Austin, voou para Kiev e confirmou que o objetivo dos Estados Unidos era destruir a Federação Russa – a palavra que ele usou foi "enfraquer". Os Estados Unidos tinham conseguido a guerra que queriam, travada por procuração dos EUA, financiando e armando um peão dispensável.

Quase nada disso foi explicado para as audiências ocidentais, com a narrativa de que a invasão da Ucrânia pela Rússia é arbitrária e imperdoável. É crime invadir um país soberano. Não há "mas" – exceto para um país.

Quando começou a atual guerra na Ucrânia? E quem começou? De acordo com a ONU, entre 2014 e 2022, cerca de 14 000 pessoas foram mortas pelo regime de Kiev na guerra civil no Donbass. Muitos dos ataques foram realizados por neonazis.

Assista a uma reportagem da ITV News de maio de 2014, pelo jornalista veterano James Mates, sobre quem bombardeou a cidade de Mariupol, incluindo os civis, pelo batalhão neonazi ucraniano Azov. No mesmo mês, dezenas de pessoas de língua russa foram queimadas vivas ou sufocadas no prédio de um sindicato em Odessa sitiado por bandidos fascistas e seguidores do colaborador nazi e o fanático antissemita Stephen Bandera. O New York Times chamou estes bandidos de "nacionalistas".

"A missão histórica de nossa nação neste momento crítico", disse Andreiy Biletsky. fundador do Batalhão Azov, "é liderar as raças brancas do mundo numa cruzada final pela sobrevivência, uma cruzada contra os Untermenschen (subhumanos), liderados pelos semitas".

Desde fevereiro, uma campanha de auto-nomeados "monitores de notícias" (principalmente financiado por americanos e britânicos com ligações aos governos) procuraram manter o absurdo de que neonazis não existem na Ucrânia.

Apagamento, um termo outrora associado aos expurgos de Estaline, tornou-se uma ferramenta de jornalismo mainstream. Em menos de uma década, uma "boa" China foi apagada e uma China "ruim" substituiu-a: passou de fábrica do mundo para um novo Satanás.

Grande parte dessa propaganda tem origem no EUA e é transmitida através de seus procuradores e "think tanks", como o famigerado Instituto Australiano de Política Estratégica, a voz da indústria armamentista, e pelo zelo de jornalistas como Peter Hartcher, do Sydney Morning Herald, que rotulou os que difundem influência chinesa como "ratos, moscas, mosquitos e pardais" e apelou a que estas "pragas" fossem "erradicadas".

As notícias sobre a China no ocidente são quase inteiramente sobre as ameaças de Pequim. Apagadas deveriam ser as 400 bases militares americanas que cercam a maior parte da China, um colar que vai da Austrália ao Pacífico e Sudeste Asiático, Japão e Coreia. A ilha japonesa de Okinawa e a ilha coreana de Jeju são como armas carregadas apontadas à queima-roupa ao coração industrial da China. Um funcionário do Pentágono descreveu isso como um "laço".

A Palestina tem sido objeto de desinformação desde que me lembro. Para a BBC, há o “conflito” de “duas narrativas”. A ocupação militar mais longa, mais brutal e sem lei dos tempos modernos não é mencionada. O desafortunado povo do Iémen mal existe. Para os media são um não-povo. Enquanto os sauditas despejam bombas de fragmentação dos EUA e conselheiros britânicos trabalham ao lado de oficiais sauditas, mais mais de meio milhão de crianças enfrentam a fome.

Essa lavagem cerebral por omissão tem uma longa história. A matança da Primeira Guerra Mundial foi suprimida por jornalistas que foram condecorados pelo seu desempenho e confessaram-no em Memórias. Em 1917, o editor do Manchester Guardian, CP Scott, confidenciou ao primeiro-ministro Lloyd George: "Se as pessoas realmente soubessem [a verdade], a guerra pararia no dia seguinte, mas não sabem e não podem saber".

A recusa em ver pessoas e acontecimentos como em outros países são vistos é um vírus dos media do ocidente, tão debilitante quanto a Covid. É como se víssemos o mundo através de um espelho unidirecional, no qual "nós" somos morais e benignos e "eles" não. É um visão profundamente imperial.

A história, que é uma presença viva na China e na Rússia, raramente é explicada e raramente compreendida. Vladimir Putin é Adolf Hitler; Xi Jinping é Fu Man Chu. Conquistas épicas, como a erradicação de pobreza extrema na China, são pouco conhecidas. Isto é absolutamente perverso e limitador.

Quando nos permitiremos compreender? Formar jornalistas em estilo fábrica não é a resposta. Nem o são as maravilhosas ferramentas digitais, que são um meio, não um fim, como a máquina de escrever e a impressora.

Nos últimos anos, alguns dos melhores jornalistas foram afastados dos media convencionais. "Atirados pela janela" é o termo a usar. Os espaços outrora abertos a rebeldes, para jornalistas fora do discurso oficial, que expunham verdades, fecharam.

Julian Assange no presídio de Belmarsh, Reino Unido.

O caso de Julian Assange é o mais chocante. Quando Assange e o WikiLeaks ganhavam leitores e prémios para o Guardian, o New York Times e outros jornais de grande circulação, ele era célebre.

Quando o “Estado sombra” se opôs e exigiu a destruição de discos rígidos e o assassinato da personagem Assange, ele foi tornado inimigo público. O então vice-presidente Biden chamou-o de "terrorista de alta tecnologia". Hillary Clinton perguntou: "Não podemos simplesmente atirar um drone a esse tipo?"

A campanha de abuso e vilipêndio que se seguiu contra Assange – o Relator da ONU sobre tortura chamou-lhe "violência psicológica" – levou a imprensa liberal ao seu ponto mais baixo. Sabemos quem são. Penso neles como colaboracionistas, como os jornalistas do governo francês pró-hitleriano de Vichy.

Quando os verdadeiros jornalistas se levantarão? Sítios inspiradores na internet já existem:   Consortium News, fundado pelo grande jornalista Robert Parry; Grayzone de Max Blumenthal, Mint Press News, Media Lens, Declassified UK, Alborada; Electronic Intifada; WSWS; Znet; Information Clearing House; CounterPunch; Independent Australia; o trabalho de Chris Hedges; Patrick Lawrence; Jonathan Cook; Diana Johnstone; Caitlin Johnstone e outros que me perdoarão por não mencioná-los aqui.

E quando os escritores se levantarão, como fizeram contra a ascensão do fascismo nos anos 1930? Quando se levantarão os cineastas, como fizeram contra a Guerra Fria nos anos 1940? Quando os humoristas se levantarão, como fizeram há uma geração?

Tendo mergulhado durante 82 anos num profundo banho de honradez que é a versão oficial da última guerra mundial, não será altura daqueles que deveriam manter os registos corretos declararem a sua independência e descodificarem a propaganda? A urgência é maior do que nunca.

21/Agosto/2023

Ver também:
  • La intoxicación lingüística. El uso perverso de la lengua, de Vicente Romano (para descarregamento)
  • O papel dos governos e dos media na propaganda de guerra: A guerra que você não vê, documentário de John Pilger (1h33m)
  • [*] Jornalista, australiano, escritor e documentarista, residente no Reino Unido.

    O original encontra-se em www.informationclearinghouse.info/57764.htm

    Este artigo encontra-se em resistir.info

    Publicada por Nozes Pires à(s) quinta-feira, agosto 31, 2023 Sem comentários:

    António Damásio

     



    Exclusivo
    Entrevista António Damásio

    António Damásio: “Há uma grande distribuição de generosidade, paciência e calma nos portugueses”

    O leitor tem mais em comum com uma bactéria do que aquilo que possa pensar. Na obra de António Damásio, a vida, com ou sem cérebro, ocupa o papel central. Em entrevista ao P2, o neurocientista fala sobre o que faz de nós humanos, a pandemia e de como precisamos de robôs vulneráveis.

    Pedro Rios
    29 de Novembro de 2020, 6:58
    Partilhar notícia
    • Partilhar no Facebook
    • Partilhar no WhatsApp
    • Partilhar no Twitter
      • Partilhar no LinkedIn
      • Partilhar no Pinterest
      • Enviar por email
      • Guardar


    Miguel Manso

    Sentir & Saber – A Caminho da Consciência é o novo livro de António Damásio, um dos mais importantes neurocientistas do mundo. Nesta obra, edição Temas e Debates, com 48 breves capítulos, o director do Instituto do Cérebro e da Criatividade da Universidade do Sul da Califórnia, em Los Angeles, salienta a importância do afecto na consciência dos seres humanos. Em conversa por videochamada com o P2, o cientista, com 76 anos, critica os políticos que manipulam a raiva e as redes sociais que danificam a cultura humana.

    Sentir & Saber é um livro mais pequeno do que o habitual para si. Trata da consciência, um tema envolto em mistério. Porque escreveu um livro pequeno sobre um tema tão grande?
    Já tinha dito muitas vezes: “Um dia, vou escrever um livro só com as ideias de que gosto.” Comecei a pensar em fazer capítulos muito curtos e na ideia do espaço, muito ligado também à estrutura de um livro de poesia: ter um texto que ocupa apenas uma parte de uma página ou que acaba num espaço branco, o que obriga o leitor a parar e a pensar. O objectivo principal é que as ideias se imponham e se tornem mais transparentes.

    A neurociência ainda procura saber porque é que temos vida interior, uma consciência de nós mesmos, e não somos apenas robôs de grande qualidade, capazes de processar informação e reagir a estímulos. Fala-se no “problema difícil da consciência”, atribuem-lhe mistério. Mas o professor escreve que a consciência não é insolúvel e não é um problema tão “difícil” assim.
    Não há este “hard problem” de que se fala e que certos filósofos têm pretendido vincar. E não há porque a forma como corpo e sistema nervoso se inter-relacionam é muito diferente daquilo que se espera. Não é de todo parecida com a forma como o sistema nervoso se relaciona com o exterior. O chamado “mistério da consciência” não é um mistério ligado ao sistema nervoso, mas sim um problema ligado à interacção do sistema nervoso com o corpo.

    Se ler descrições sobre o “hard problem”, encontra pessoas que dizem: “Como é possível que uma estrutura física como o cérebro dê origem ao espírito, à mente, que não é física?” Bem, esse é o problema: é que não é só o cérebro, não é só o sistema nervoso, é o sistema nervoso em interacção, é esse conjunto que serve de base à consciência. Isto não é só sobre o sistema nervoso, trata-se de uma parceria entre sistema nervoso e corpo.

    Foto
    António Damásio Miguel Manso

    E isso simplifica ou complica o nosso entendimento do que é consciência? De repente, está todo o corpo envolvido nela.
    Por um lado, clarifica porque diz: “É possível haver uma resposta, vamos tentar uma nova abordagem do problema.” Por outro lado, claro que o campo sobre o qual temos de trabalhar para criar todos os dados que confirmem essa explicação é agora muito maior.

    Há mais de 20 anos que o meu trabalho incide principalmente na ideia de que corpo e sistema nervoso não estão separados e que corpo e mente não estão separados. É a coisa mais importante do meu pensamento científico e filosófico.

    Já disse que o intestino terá sido o primeiro “cérebro” da história da vida na Terra. No intestino sentimos, por exemplo, ansiedade.
    As provas são perfeitamente claras, é uma questão de pedir às pessoas para reorientarem o seu pensamento. Podem até usar a psicologia do senso comum, que às vezes se menospreza. Quando temos ansiedade, sentimo-la no corpo — no coração que bate descontroladamente, na respiração, que se torna difícil, no estômago ou no intestino. Todas as referências dos sentimentos são feitas ao corpo. São elas a realidade daquilo que é ansiedade ou, da mesma forma, o bem-estar.

    Se assim é, porque é que insistimos em pôr tudo em gavetas: cognição vs. emoção e sentimentos?
    Temos a tendência de facilmente cair em simplificações. Quando os pensadores começaram a olhar para os sentimentos, verificaram — e é verdade em muitas circunstâncias — que podem levar a um mau caminho: se a pessoa resolver um problema puramente de um modo afectivo, pode chegar à conclusão errada. Daí a ideia de que excluir a emoção, contar apenas com os factos e tentar ser puramente racional seria uma maneira melhor de resolver a nossa ligação com as complexidades do mundo.

    Não há nada no meu pensamento e na ciência que fazemos que seja contra a razão, pelo contrário. O que queremos é mostrar que a razão tem sempre de ser informada por aspectos afectivos. Se se excluir completamente o afecto, a razão fica desordenada.

    Foto
    Exposição Cérebro - Mais vasto que o céu, no edifício-sede da Gulbenkian, em Lisboa, em 2019, com a capa da revista Science (20 de Maio de 1994), onde saiu o artigo "The return of Phineas Gage: clues about the brain from the skull of a famous patient" (H Damasio, T Grabowski, R Frank, AM Galaburda, AR Damasio) Daniel Rocha

    É um processo integrado.
    No livro, tenho quatro grandes divisões: o ser, as representações que trazem a mente, depois o afecto, depois a razão. Biologicamente, houve uma sequência: de seres simples que nem sequer tinham emoções a seres mais complexos em que aparecem as emoções e, depois, seres em que aparece a possibilidade dos factos e da razão. Mas não é possível ter seres que têm unicamente razão sem terem um aspecto subjacente, que é o dos afectos. Aquilo que faz parte das nossas histórias individuais e o trajecto do ser humano e de outros seres vivos no planeta aponta para que a emoção e o sentimento tenham sido formas primárias de resolver problemas inteligentemente.

    O que lhe ensinou esta pandemia sobre os seres humanos?
    Estamos defronte de uma doença séria. As pessoas não se aperceberam imediatamente da gravidade do problema, que não é só das pessoas idosas. Nunca pensei que na minha vida iria encontrar algo tão parecido com os grandes problemas da II Guerra Mundial. Sempre tive muito interesse por ler sobre a II Guerra e pensar no horror daquele período, pensar que felizmente aquilo passou e que não iríamos ter de viver qualquer coisa como este terror. A verdade é que estamos a viver esse horror, não tão focado no cenário europeu (e com horrores absolutamente incríveis), mas planetário.

    "Quando temos ansiedade sentimo-la no corpo"
    António Damásio

    A pandemia escancarou a nossa fragilidade. Mas também fomos capazes de fazer vacinas em menos de um ano.
    Há este paradoxo: somos de uma fragilidade incrível e nunca pensámos que isto poderia acontecer, mas, ao mesmo tempo, temos uma capacidade de resposta que vem do facto de que há ciência de ponta.

    Disse, em Agosto de 2019, antes de tudo isto começar, que os nossos comportamentos poderiam levar a uma pandemia. Outros especialistas já alertavam para isso. Mas o impacto da covid-19 foi uma surpresa para quase todos, não era algo que estivesse “no programa”.
    Há uma arrogância humana lamentável na forma como se menospreza o ambiente e os seres não humanos. As pessoas têm um certo respeito pelos pássaros, têm respeito pelos cães e pelos gatos, ou seja, têm respeito pelas criaturas que lhes trazem alguma coisa, que funcionam como companheiros.

    E nas quais reconhecemos emoções.
    Exacto. As pessoas têm animais de estimação porque esses outros seres vivos lhes dão qualquer coisa. É uma troca perfeitamente egoísta. As pessoas não imaginam o que são as vidas de seres unicelulares, que estão vivos tal como nós, e não se importam nada de os destruir quando eles muitas vezes são extremamente positivos para nós. Por exemplo: todas as bactérias que estão dentro do meu corpo e do seu neste momento a fazer com que o nosso microbioma funcione. Se não estivessem lá, estaríamos em muito mau estado. [As pessoas] não têm noção disso e não têm noção de que alterações do clima destroem espécies e a qualidade do ar. Há uma ignorância em relação ao mundo. Estamos a ver uma espécie de acordar tardio para coisas que têm importância e para as quais temos de prestar atenção.

    Foto
    "O chamado 'mistério da consciência' não é um mistério ligado ao sistema nervoso, mas sim um problema ligado à interacção do sistema nervoso com o corpo" Enric Vives-Rubio

    Vemo-nos como seres excepcionais, à parte. Porém, a sua ciência mostra que temos muito em comum com as bactérias, enquanto a física, para dar outro exemplo, tem mostrado que somos “meras” interacções de partículas. A ciência torna o ser humano mais humilde?
    Absolutamente. Uma ciência verdadeiramente humana pode fazer coisas magníficas. Pode dar-nos uma ideia da nossa complexidade e da forma como ela faz parte da complexidade muito maior do nosso ambiente. Dá-nos uma possibilidade de descobrir aquilo que é melhor em nós e de ter uma acção positiva em relação ao que está à nossa volta — por exemplo, em relação ao clima, à biodiversidade ou a problemas políticos, como a pobreza. Se compreendermos o que é um ser humano, devemos ter mais e mais falta de tolerância para deixar outros seres humanos viverem em mau estado de saúde, sem casa ou as protecções que nós, os mais privilegiados, temos.

    Tudo caminha num sentido muito curioso: é uma espécie de realização, através da ciência, de bons sentimentos e bons desejos que normalmente eram trazidos unicamente pela religião. Era a religião que nos dava a direcção daquilo que é ser bom e decente, como ser humano em relação aos outros e ao mundo. A ciência não é, de forma alguma, oposta à religião, é uma nova forma de caminhar no sentido daquilo que as melhores religiões puderam trazer ao ser humano. Antes da ciência, realizava-se puramente pelo transcendente e por um desejo de ser melhor. Agora, com a ciência, podemos realizá-lo de formas mais práticas e directas.

    Escreve muito sobre a homeostasia, o processo de regulação pelo qual um organismo mantém constante o seu equilíbrio e procura garantir a sobrevivência. É já o desejo de ter uma vida boa, que está tanto nos homens como nas bactérias?
    É um desejo antes do desejo.

    Foto
    Exposição Cérebro - Mais vasto que o céu, no edifício-sede da Gulbenkian, em Lisboa, em 2019 Daniel Rocha

    Gosta de frisar que as bactérias têm esse “desejo”, mesmo que não o saibam. São inclusive seres sociais, mesmo que não tenham noção disso.
    Há todos estes processos estruturais que existem desde que existe a vida (e possivelmente antecedem a existência da vida — por exemplo, em processos de cooperação ao nível de partículas físicas). A vida de bactérias que têm uma sociabilidade e se comportam diferentemente conforme o ambiente é demonstração de que a vida, ela própria, como fenómeno central, já contém, de forma relativamente abstracta, os guias para o nosso comportamento. Aquilo que depois conquistamos — e que é magnífico — começa com processos muito pouco claros (as coisas estão contidas, escondidas), mas, à medida que somos capazes de fazer representações do mundo exterior e do interior, as coisas tornam-se mais claras.

    E aí entra a mente.
    A nossa ascensão em direcção à mente é um processo extraordinário. Dá-nos a capacidade de ir descobrir aquilo que está em nós próprios e à nossa volta através de mapas e imagens que são representações. As bactérias e grande parte dos seres vivos, mesmo os complexos, não podem fazer isso. Para que seja possível fazer representações e chegar à mente, aos sentimentos, à representação do que está à nossa volta, é preciso ter um sistema nervoso.

    A vida tem quatro mil milhões de anos, há 3500 milhões de anos que se passaram sem sistema nervoso. Quinhentos milhões de anos não são nada. E sobretudo sistemas nervosos como os nossos, com 100 milhões de anos, são uma coisa recente. Quando se pensa na trajectória da história, é um pequeno momento, mas é esse momento que nos dá o passaporte para a mente e para entrar naquilo que são as representações dos factos e as representações do estado do nosso interior, que são os sentimentos, que trazem o princípio da consciência. É isso que quero que as pessoas percebam e é por isso que o livro é mais pequeno.

    Foto
    "Se se excluir o afecto, a razão fica desordenada" MIguel Manso

    Há um debate sobre uma suposta consciência das plantas, tese de que discorda. Queremos meter a consciência em tudo? Não aceitamos facilmente que há muitas manifestações da vida que a dispensam?
    Projectamos sobre todos os seres ideias sobre a forma como chegaram a certas conclusões ou comportamentos. Quando vemos uma planta que se encolhe com o frio, a planta pensou que se tinha de encolher, tal como nós? Não é assim. Há uma série de processos que são automáticos e que têm que ver com a homeostasia dentro daquele organismo. As coisas que fazem na procura de água, a maneira como as raízes se distribuem na terra… Claro que não há nenhum cérebro na planta a dizer “vai para a direita, é onde está mais água”, mas há uma maneira de fazer esse primeiro nível do detectar (sensing ou detecting, em inglês), que é muito diferente do sentimento.

    O detectar simples é uma coisa que as plantas e as bactérias fazem. Nós também fazemos, mas grande parte daquilo que é importante que nós detectamos é acompanhada por um sentimento, por uma “cor”, positiva ou negativa, que é dada pelo afecto.

    “Há arrogância humana lamentável na forma como se menospreza o ambiente e os seres não humanos”
    António Damásio

    Há coisas que nos aproximam das bactérias e de outros seres vivos, mas há outras que nos tornam diferentes. Como damos o salto? O que faz de nós humanos?
    Esse salto é dado pela quantidade de conhecimentos que conseguimos apreender, manter e manipular. Há animais que são de enorme perspicácia, inteligência motora, capacidade de resolver problemas. Vemos isso nos símios, em elefantes, há um grande número de espécies não humanas com consciência, com uma vida afectiva, com uma vida social complexa e uma inteligência extraordinária. O que falta é a quantidade de conhecimentos que os cérebros dessas criaturas conseguem ter (em nós são quantidades absolutamente extraordinárias). E a capacidade de manipular esses conhecimentos com várias abordagens, como a matemática e a linguística.

    Uma das coisas extraordinárias daquilo que se está a passar entre nós, para além da tecnologia que nos reúne, é o facto de estarmos a usar linguagem. Estou a falar numa colecção de símbolos, uma determinada língua entre centenas de línguas que poderia utilizar, e você está a receber essas frases e eu as suas. Depois, há linguagens, como a matemática, que permitem de uma forma mais abstracta manipular conhecimentos. E a possibilidade de imaginar novos conhecimentos porque podemos manipular tudo na nossa imaginação, que é uma coisa extraordinária: você agarra numa história, parte-a aos bocados, recombina os elementos e faz uma nova história. Veja o curioso que é que esse recombinar é exactamente o que a natureza tem estado a fazer com ácidos nucleicos, através de toda a sua evolução, com genes...

    Sentir & Saber - A Caminho da Consciência

    Autor: António Damásio​
    Editor: Temas e Debates
    296 págs., 17,52€

    Comprar

    O enorme edifício intelectual está ligado ao edifício afectivo antigo, que continua a dar-nos apontadores. Às vezes, está errado: o afecto pode confundir-nos.

    E temos visto muitos políticos a utilizar os afectos para manipular os cidadãos. A raiva, em particular, parece ser um dos grandes trunfos na política contemporânea.
    A raiva e o medo são emoções e sentimentos de defesa. As pessoas acabam por utilizá-los porque se sentem ameaçadas. São uma forma de se defenderem quando não há uma possibilidade de resolver os problemas inteligentemente. Se as pessoas sentem medo e são levadas a irritarem-se e a terem zanga em relação a outros, isso é extremamente eficaz. Os bons sentimentos acabam por ser destruídos. É mais fácil induzir raiva e medo em pessoas que não tiveram acesso aos factos. Se, em vez de mostrar os factos, mostrar só uma situação que possa espoletar a zanga, abre um atalho: corta o processo normal, que seria ter os factos e depois pensar sobre eles. Seria possível evitar a zanga porque haveria outras soluções possíveis.

    Vemos isso diariamente nas redes sociais, que critica. No entanto, os utilizadores parecem hoje mais conscientes dos seus problemas. Continua pessimista?
    Acho que há uma melhoria. Vai ser muito difícil ter um grande efeito porque há um aspecto de dependência que vem do nosso desejo de informação.

    Foto
    Exposição Cérebro - Mais vasto que o céu, no edifício-sede da Gulbenkian, em Lisboa, em 2019 Daniel Rocha

    O fear of missing out, o medo de ficar de fora, de perder algo.
    Lembro-me de achar que o Twitter era bom para ter certas informações. Agora, não vejo o Twitter, só e-mail, that's it! O que me faz ser um pouco mais optimista é que há mais e mais pessoas que estão a verificar que é preciso responder com firmeza. Se não, vamos ser destruídos. Completamente. A cultura vai ser subserviente de um tipo de informações e um tipo de isolamento de opiniões extremamente graves. E há mais e mais pessoas que estão a perceber isso.

    Que estão a ser manipuladas?
    Perfeitamente.

    Nos últimos anos, as políticas de identidade ganharam força. O que explica a força da ideia de identidade?
    Há certas ideias que são atractivas porque há uma resposta afectiva muito positiva. A ideia de identidade (em relação a uma raça, a um grupo de pessoas, a uma identidade sexual) tem muito significado e peso afectivo porque as pessoas não se sentem todas iguais. Se me disserem: “Você é português, Portugal é um país pequeno, não tem importância nenhuma”, eu fico furioso. Porquê? Há qualquer coisa que tem que ver com o sítio em que nós nascemos que forma uma parte da nossa identidade, que tem que ver com a língua, os pais, as famílias, os sítios com que nos relacionamos. São coisas extremamente ligadas àquilo que é a nossa pessoa e, por isso, um ataque a essas coisas é como se fosse um ataque físico ao nosso corpo. É daí que vem o enorme poder do aspecto identitário e a enorme gravidade que é explorá-lo. Está-se a atirar pessoas contra elas mesmas: às vezes, há um grupo ao nível de uma identidade, mas os políticos espertos conseguem partir essa identidade ao nível do sítio onde estão nos Estados Unidos.

    "O enorme edifício intelectual está ligado ao edifício afectivo antigo"
    António Damásio

    Também assistimos a uma polarização política e identitária em Portugal, nomeadamente com a ascensão da extrema-direita através do Chega. Como vê isto a partir dos EUA?
    Tenho um conhecimento remoto, que vem de ler o PÚBLICO e o Expresso. Portugal é um sítio muito curioso, parece-me sempre melhor do que outros… É um país extraordinário e muito mais equilibrado. Talvez por isso tenha menos capacidade de resolver problemas, talvez porque há uma grande distribuição de generosidade, paciência e calma nas pessoas, que resulta da nossa própria história. Essas coisas que descreve encontram-se noutros países de uma forma mais vincada, com muito mais riscos, mas [em Portugal] é um espelho. As coisas parecem-me, de um modo geral, melhores.

    No novo livro, escreve também sobre a inteligência artificial (IA). Não a teme.
    Grande parte da IA é muito estúpida [risos]. O mais curioso na IA é que é muito limitada por aspectos cognitivos. É pensar a inteligência apenas com o aspecto mais moderno (o cognitivo) e não com os aspectos fundamentais que vêm do afecto. Ora, a inteligência dos seres vivos começou com aspectos que têm que ver com a regulação da vida. Uma vez que houve sistema nervoso, [a inteligência] passou a ser ligada pelos sentimentos e pela consciência. E só na parte final passou a ser uma inteligência dos factos, que tem que ver com olhar para o mundo e, através da visão, da audição e do tacto, descrevê-lo. Em vez de olhar para a nossa trajectória biológica, a IA foi directamente ao fim. E assim conseguiu uma coisa magnífica, que é ter uma inteligência rápida, que resolve uma quantidade de problemas, mas que, muitas vezes, os resolve de uma forma não particularmente inteligente e não condutiva ao ser humano que precisa de afecto e carinho.

    O que estamos a propor é que se faça uma nova espécie de IA que tenha em conta o afecto e que vem das chamadas soft robotics (matérias que podem ser modificadas, que se podem premer ou mudar com o frio e o calor). É uma forma de dar uma resposta do tipo que nós temos quando o nosso corpo responde a boa ou má temperatura, a calorias suficientes ou insuficientes. É uma nova linha de máquinas artificiais que julgo ter imenso futuro.

    Foto
    “É mais fácil induzir raiva e medo em pessoas que não tiveram acesso aos factos” Enric Vives-Rubio

    O que trariam essas máquinas de bom ao ser humano?
    A vulnerabilidade. A IA é um aspecto extremo da inteligência em que não há praticamente vulnerabilidade. E nós, seres humanos, estamos no meio: temos certas vulnerabilidades e certas capacidades. Para um robô se relacionar consigo ou comigo, é preciso que tenha qualquer coisa de um ser humano médio. Você não pode estar um dia inteiro sem beber água, vai ficar desidratado. Essas vulnerabilidades vêm do facto de que a vida não é um algoritmo fixo, mas uma constante adaptação a condições biológicas. Trazer vulnerabilidades para a robótica é uma maneira de a aproximar de nós. O problema da IA e a sua limitação é ser invulnerável.

    Essas máquinas conseguiriam resolver problemas que hoje não conseguem?
    Exacto. Falta-lhes o factor das nossas limitações.

    É das limitações que surge a criatividade?
    Absolutamente. A IA corrente dá-nos soluções para problemas que nós definimos. É muito mais difícil encontrar os problemas.

    Os humanos são geniais quando desafiam o pensamento estabelecido. Como Einstein, que viu na gravidade um efeito de um espaço-tempo curvo.
    Temos de pensar fora da caixa e para o fazer não podemos ser perfeitos.

    E, por vezes, falhar espalhafatosamente.
    Falhar é uma grande maneira de depois não falhar.

           Jornal Público

    Publicada por Nozes Pires à(s) quinta-feira, agosto 31, 2023 Sem comentários:

     

    Não é um fenómeno novo, mas não é surpreendente que a censura reapareça nos meios académicos como nos piores tempos da Idade Média. Em 2009, descobriu-se que os chefes da unidade climática da Universidade Britânica de East Anglia estavam empenhados em censurar e desacreditar os seus oponentes.
    
    Os e-mails descobertos mostravam um membro desse clã, Phil Jones, indicando a Michael Mann quais artigos deveriam ser referenciados nos relatórios do IPCC e quais não.
    
    Agora estão de volta ao ataque para censurar um artigo científico publicado por quatro cientistas italianos que concluíram que as condições meteorológicas extremas e os desastres naturais relacionados não estão a aumentar.
    O artigo foi intitulado “Uma avaliação crítica das tendências de eventos extremos em tempos de aquecimento global” e foi publicado na revista científica European Physical Journal Plus (1).
    
    Assim começou a caça às bruxas. Os zelosos defensores da Inquisição passaram a contra-atacar, tanto no campo académico (2) como no campo político, onde formaram uma holding mediática de 500 cadeias de envenenamento, denominada Covering Climate Now (CCN), que é capaz de atingindo mais de 2.000 milhões de leitores (3). A sua missão é difundir a ideologia de aquecer e insultar os hereges.
    
    Jornais gerais, como o The Australian (4) e o Guardian (5), juntaram-se à ofensiva porque a questão das alterações climáticas vai muito além do mundo académico. Pelo contrário, faz parte da política económica do capital monopolista moderno.
    
    Os inquisidores disseram que o artigo dos cientistas italianos se baseou no Quinto Relatório do IPCC e não no Sexto. Os autores esclareceram que o submeteram antes da publicação do Sexto Relatório, mas o esclarecimento não importou a ninguém. A caçada havia começado. O estudo era “falho”, incluía “afirmações desmentidas” e “dados extremamente manipulados”.
     
    No âmbito acadêmico, o objetivo era a retratação e por isso começou a pressão sobre a editora Springer para aderir à caça às bruxas. Na semana passada eles alcançaram seu objetivo.
    
    Por seu lado, numa atitude louvável de desafio aberto, os cientistas italianos não mantiveram a boca fechada e publicaram uma versão actualizada do seu artigo, também revisto por pares, no início deste mês numa revista científica diferente. O título é “O número de desastres naturais globais está aumentando?” Os autores não hesitam em criticar abertamente duas agências da ONU (FAO e UNDRR) que prevêem um número crescente de catástrofes devido ao aquecimento global. “As nossas análises refutam veementemente esta afirmação, bem como as extrapolações publicadas pela UNDRR com base nesta afirmação”, concluem (6).
    
    (1) https://ui.adsabs.harvard.edu/link_gateway/2022EPJP..137..112A/doi:10.1140/epjp/s13360-021-02243-9
    (2) https://phys.org/news/2022-09-scientists-urge-publisher-faulty-climate.html
    (3) https://coveringclimatenow.org/
    (4) https://www.theaustralian.com.au/news/latest-news/scientists-urge-top-publisher-to-withdraw-faulty-climate-study/news-story/5cff166471a1b774afa74f8ed980ccf8
    (5) https://www.theguardian.com/environment/2022/sep/22/sky-and-the-australian-find-no-evidence-of-a-climate-emergency-they-werent-looking-hard -suficiente
    (6) https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/17477891.2023.2239807
        Fonte em castelhano : Diario Octubre
    
    
    Publicada por Nozes Pires à(s) quinta-feira, agosto 31, 2023 Sem comentários:

    domingo, 27 de agosto de 2023

     

    Fuente: prensapcv.wordpress.com
    Partido Comunista Francês insta o TSJ a reconsiderar a intervenção judicial do PCV
     
    Caracas, 25/08/2023 (Redação TP).- O Partido Comunista Francês (PCF) expressou sua preocupação com a intervenção judicial do Partido Comunista da Venezuela e a nomeação de uma diretiva ad hoc, "fora dos quadros democráticos internos deste país". organização".
    
    O PCF manifestou a sua solidariedade ao PCV, que elogiou pela sua “luta resoluta” pelo “levantamento imediato das medidas imperialistas ilegais que procuram sufocar a Venezuela, causando imenso sofrimento à população”.
    
    Os comunistas franceses instaram o TSJ a reconsiderar a sua decisão e a garantir todas as garantias para a actividade política do PCV.
    
    Reproduzimos a declaração na íntegra abaixo:

    As liberdades do Partido Comunista da Venezuela devem ser respeitadas
    
    Com preocupação, o Partido Comunista Francês (PCF) tomou conhecimento da decisão do Supremo Tribunal de Justiça (TSJ) da República Bolivariana da Venezuela, datada de 11 de agosto de 2023, que coloca o Partido Comunista da Venezuela (PCV) sob tutela. e designar uma direção “ad hoc”, fora dos quadros democráticos internos desta organização, em particular do seu XVI congresso nacional em novembro de 2022.
    
    O PCF manifesta a sua solidariedade ao PCV, partido que, ao longo da sua história e ainda hoje, sempre lutou em defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores e da soberania da Venezuela. Elogia em particular a luta determinada do PCV pelo levantamento imediato das medidas imperialistas ilegais que pretendem sufocar a Venezuela, causando imenso sofrimento à população.
    
    As diferenças políticas não podem levar ao questionamento das liberdades democráticas e constitucionais dos partidos e organizações políticas e sociais que actuam no quadro legal, como é o caso do PCV. É por isso que o PCF apela ao TSJ para que reconsidere a sua decisão e garanta todas as garantias para a actividade do PCV.
    
    Partido Comunista Francês,
    
    Paris, 24 de agosto de 2023.
     

    Publicada por Nozes Pires à(s) domingo, agosto 27, 2023 Sem comentários:

    terça-feira, 22 de agosto de 2023

    RÚSSIA ESTÁ PERTO DA VITÓRIA CONTRA UCRÂNIA? - 20 MINUTOS ANÁLISE, POR B...

    Publicada por Nozes Pires à(s) terça-feira, agosto 22, 2023 Sem comentários:

    segunda-feira, 21 de agosto de 2023

    Não sou adepto do projeto político de M. Löwy , no qual encontro muito reformismo e pouco marxismo, nem, menos ainda, do "aventureiro intelectual" que me parece ser Slavoj Zizek. Serve como aviso à navegaçao. Talvez um dia possa criticar aqui as teses da ontologia absurda do último livro deste autor mediático que oscila entre o génio e o oportunismo.

     

    Löwy responde a Zizek: não há grandeza alguma no stalinismo

    Neste artigo, Löwy defende o projeto societário marxista original, frente às críticas pró-stalinianas do esloveno Slavoj Zizek

    2 de outubro de 2020 · Vale a pena ler,Formação,Cultura

    Resposta a um artigo de Slavoj Žižek

    Michael Löwy, A terra é redonda, 20 de setembro de 2020

    Os escritos de Georg Lukács nos anos 1930, apesar de seus limites, contradições e compromissos (com o stalinismo), ainda são do maior interesse. É o caso especialmente de seu ensaio sobre Hölderlin de 1935, intitulado “O Hipérion de Hölderlin”, traduzido por Lucien Goldmann e incluído no volume Goethe e sua época (1949).

    Lukács é literalmente fascinado pelo poeta, que descreve como “um dos mais puros e profundos poetas elegíacos de todos os tempos”, cuja obra tem “um caráter profundamente revolucionário”[i]. Mas, ao contrário da opinião geral dos historiadores da literatura, ele se recusa obstinadamente a reconhecê-lo como um autor romântico. Por quê?

    Desde o início dos anos 1930, Lukács compreendeu, com grande lucidez, que o romantismo não era uma simples escola literária, mas um protesto cultural contra a civilização capitalista, em nome de valores – religiosos, éticos, culturais – do passado. Ele estava ao mesmo tempo convencido de que, por suas referências passadistas, tratava-se de um fenômeno essencialmente reacionário.

    O termo “anticapitalismo romântico” aparece pela primeira vez num artigo de Lukács sobre Dostoievski, no qual o escritor russo é condenado como “reacionário”. Segundo este texto publicado em Moscou, a influência de Dostoievski resulta de sua capacidade de transformar os problemas da oposição romântica ao capitalismo em problemas “espirituais”; a partir desta “oposição intelectual pequeno-burguesa anticapitalista romântica (…), abre-se uma ampla avenida para a direita, para a reação, hoje em dia para o fascismo, e, em contrapartida, um caminho estreito e difícil para a esquerda, para a revolução”[ii].

    Esse “caminho estreito” parece desaparecer quando ele escreve, três anos mais tarde, um ensaio sobre “Nietzsche precursor da estética fascista”. Lukács apresenta Nietzsche como um continuador da tradição das críticas românticas do capitalismo: da mesma forma que elas, “ele opõe, a cada momento, à incultura do presente a alta cultura dos períodos pré-capitalistas ou do início do capitalismo”. Para ele, essa crítica é reacionária, e pode facilmente conduzir ao fascismo[iii].

    Encontramos aqui uma surpreendente cegueira: Lukács não parece perceber a heterogeneidade política do romantismo e, em particular, a existência, ao lado do romantismo reacionário, que sonha com um impossível regresso ao passado, de um romantismo revolucionário, que aspira a um desvio pelo passado, em direção a um futuro utópico. Essa recusa é ainda mais surpreendente porque a obra do próprio jovem Lukács, por exemplo, seu ensaio A teoria do romance (1916) pertence a este universo cultural romântico/utópico[iv].

    Essa corrente revolucionária está presente desde as origens do movimento romântico. Tomemos como exemplo As origens da desigualdade entre os homens de Jean-Jacques Rousseau (1755), que podemos considerar como uma espécie de primeiro manifesto do romantismo político: sua crítica feroz da sociedade burguesa, da desigualdade e da propriedade privada é feita em nome de um passado mais ou menos imaginário, o Estado de Natureza (ainda inspirado pelos costumes livres e igualitários dos indígenas “Caraíbas”). Entretanto, ao contrário do que sustentam seus adversários (Voltaire!), Rousseau não propõe que os homens modernos retornem à floresta, mas sonha com uma nova forma de igualdade libertária dos “selvagens”: a democracia. Encontramos o romantismo utópico, sob diversas formas, não apenas na França, mas também na Inglaterra (Blake, Shelley) e mesmo na Alemanha: o jovem Schlegel não era um ardoroso apoiador da Revolução Francesa? É também o caso, certamente, de Hölderlin, poeta revolucionário, mas que, como muitos românticos depois de Rousseau, está possuído pela “nostalgia dos dias de um mundo originário” (ein Sehnen nach den Tagen der Urwelt)[v].

    Lukács é obrigado a reconhecer, relutantemente, que encontramos em Hölderlin os “traços românticos e anticapitalistas que, naquela altura, não possuíam ainda um caráter reacionário”. Por exemplo, o autor do Hipérion também detestava, tal como os românticos, a divisão capitalista do trabalho e a estreita liberdade política burguesa. No entanto, “na sua essência, Hölderlin (…) não é um romântico, embora sua crítica do capitalismo nascente não esteja desprovida de certos traços românticos”[vi]. Percebemos nestas linhas que afirmam uma coisa e seu contrário, o embaraço de Lukács e sua dificuldade em mostrar claramente a natureza romântica revolucionária do poeta. Num primeiro momento, o romantismo “ainda não tinha um caráter reacionário”? Isso quer dizer que todo o Frühromantik, o período inicial do romantismo, no final do século XVIII, não era reacionário? Neste caso, como podemos proclamar que o romantismo é, por natureza, uma corrente retrógrada?

    Em sua tentativa, contra toda evidência, de dissociar Hölderlin dos românticos, Lukács menciona o fato de que o passado ao qual se referem não é o mesmo: “A diferença na escolha dos temas entre Hölderlin e os escritores românticos – Grécia contra Idade Média – não é, portanto, uma simples diferença de temas, mas uma diferença de visão de mundo e de ideologia política” (p. 194). Contudo, se muitos românticos referem-se à Idade Média, não é este o caso para todos: por exemplo, Rousseau, como vimos, inspira-se no modo de vida dos “Caraíbas”, estes homens livres e iguais. Encontramos, além do mais, românticos reacionários que sonham com o Olimpo da Grécia clássica. Se levamos em conta o assim chamado “neorromantismo” do final do século XIX – na verdade, a continuação do romantismo sob uma nova forma –, encontramos autênticos românticos revolucionários – o marxista libertário William Morris e o anarquista Gustav Landauer – fascinados pela Idade Média.

    De fato, o que distingue o romantismo revolucionário do reacionário não é o tipo de passado ao qual se refere, mas a dimensão utópica do futuro. Lukács parece perceber isso, numa outra passagem de seu ensaio, quando evoca a presença concomitante, em Hölderlin, de um “sonho de retorno à idade de ouro” e de uma “utopia para além da sociedade burguesa, de uma libertação real da humanidade”[vii]. Ele percebe também, com perspicácia, o parentesco entre Hölderlin e Rousseau: nos dois encontramos “o sonho de uma transformação da sociedade”, pela qual esta “se tornaria novamente natural”[viii]. Lukács está, assim, bem perto de considerar o ethos romântico revolucionário de Hölderlin, mas seu preconceito inflexível contra o romantismo, catalogado como “reacionário” por definição, o impede de chegar a esta conclusão. Em nossa opinião, é um dos principais limites deste ensaio, de resto brilhante…

    O outro limite concerne mais ao julgamento histórico-político de Lukács sobre o jacobinismo irredutível – pós-termidoriano – de Hölderlin, comparado com o “realismo” de Hegel: “Hegel aceita a época pós-termidoriana, o fim do períodor evolucionário da Revolução francesa, e constrói sua filosofia precisamente sobre a compreensão desta nova guinada da evolução da história universal. Hölderlin não aceita compromisso algum com a realidade pós-termidoriana; ele permanece fiel ao antigo ideal revolucionário de um renascimento da democracia antiga e é esmagado por uma realidade que não tinha mais lugar para seus ideais, nem mesmo no plano poético e ideológico”.

    Enquanto Hegel compreendeu “a evolução revolucionária da burguesia como um processo unitário, cujo terror revolucionário, assim como o Termidor e o Império, não foram senão fases necessárias”, a intransigência de Hölderlin “levou a um impasse trágico. Desconhecido, não chora por ninguém, ele caiu como um Leônidas poético e solitário, dos ideais do período jacobino às Termópilas da invasão termidoriana”[ix].

    Reconheçamos que não falta grandeza a este afresco histórico, literário e filosófico! Ele não é menos problemático… E, sobretudo, contém, implicitamente, uma referência à realidade do processo revolucionário soviético, tal como ocorria no momento em que Lukács redigia seu ensaio.

    Esta é, em todo caso, a hipótese, um pouco arriscada, que tentei defender num artigo publicado em inglês sob o título Lukács and stalinism, e incluído num livro coletivo, Western marxism, a critical reader (Londres, New Left Books, 1977). Eu também o incluí em meu livro sobre Lukács, publicado em francês em 1976, e, na Inglaterra, em 1980, sob o título Georg Lukács. From romanticism to bolshevism. Aqui está uma passagem que resume minha hipótese sobre o afresco histórico esboçado por Lukács no artigo sobre Hölderlin: “O significado dessas observações em relação à URSS em 1935 é transparente; é suficiente acrescentar que Trotsky publicou precisamente em fevereiro de 1935 um ensaio em que ele utiliza pela primeira vez o termo ‘Termidor’ para caracterizar a evolução da URSS depois de 1924 (O Estado operário e a questão do Termidor e do bonapartismo). Com toda evidência, as passagens citadas são a resposta de Lukács a Trotsky, este Leônidas intransigente, trágico e solitário, que recusa o Termidor e é condenado ao impasse. Lukács, por outro lado, como Hegel, aceita o fim do período revolucionário e constrói sua filosofia sobre a compreensão da nova guinada da história universal. Destaquemos de passagem, todavia, que Lukács parece aceitar, implicitamente, a caracterização trotskista do regime de Stálin como Termidoriano…”[x].

    Porém, foi com uma certa surpresa que li, num livro recente de Slavoj Žižek, uma passagem a respeito do ensaio de Lukács sobre Hölderlin, que retoma, quase palavra por palavra, minha hipótese, mas sem mencionar a fonte: “É evidente que a análise de Lukács é profundamente alegórica: ela foi escrita alguns meses depois que Trotsky lançou sua tese segundo a qual o stalinismo era o Termidor da Revolução de Outubro. O texto de Lukács dever ser lido como uma resposta a Trotsky: ele aceita a definição do regime stalinista como ‘termidoriano’, mas lhe conferindo um sentido positivo. Mais que deplorar a perda de energia utópica, deveríamos, de um modo heroicamente resignado, aceitar suas consequências como o único espaço real do progresso social”[xi].

    Não acredito que o Sr. Žižek tenha lido meu livro sobre Lukács, mas ele provavelmente tomou conhecimento de minha análise no artigo publicado na coletânea, de grande circulação, Western Marxism. Como o Sr. Žižek escreve muito, e rapidamente, é compreensível que ele nem sempre tenha tempo para citar suas fontes…

    Slavoj Žižek fez muitas críticas a Lukács, dentre as quais esta, bem paradoxal: Lukács “torna-se, depois dos anos 1930, o filósofo stalinista ideal que, por esta razão precisa e ao contrário de Brecht, deixou de lado a verdadeira grandeza do stalinismo”[xii]. Este comentário encontra-se num capítulo de seu livro curiosamente intitulado A grandeza interior do stalinismo – um título inspirado pelo argumento de Heidegger sobre a “grandeza interior do nazismo”, do qual Žižek se distancia negando, com razão, toda “grandeza interior” ao nazismo.

    Por que Lukács não compreendeu esta “grandeza” do stalinismo? Žižek não explica, mas ele deixa entender que a identificação do stalinismo com o Termidor – proposta por Trotsky e implicitamente aceita por Lukács – era um erro. Por exemplo, para ele, “o ano de 1928 foi um ponto de inflexão perturbador, uma verdadeira segunda revolução – não uma espécie de Termidor, mas antes a radicalização consequente da Revolução de Outubro”… Portanto, Lukács e, do mesmo modo, todos aqueles que não compreenderam “a insuportável tensão do próprio projeto stalinista” não perceberam sua “grandeza” e não compreenderam “o potencial emancipatório-utópico do stalinismo”![xiii] Moral da história: é necessário “parar o jogo ridículo que consiste em opor o terror stalinista à ‘autêntica’ herança leninista” – um velho argumento de Trotsky retomado pelos “últimos trotskistas, estes verdadeiros Hölderlin do marxismo atual”[xiv].

    Slavoj Žižek seria, assim, o último dos stalinistas? É difícil de responder, tanto que seu pensamento maneja, com considerável talento, os paradoxos e as ambiguidades. O que pensar de suas grandiosas proclamações sobre a “grandeza interior” do stalinismo e de seu “potencial utópico-emancipador”? Parece-me que teria sido mais justo falar da “mediocridade interior” e do “potencial distópico” do sistema stalinista… A reflexão de Lukács sobre o Termidor parece-me mais pertinente, mesmo que ela também seja questionável.

    Meu comentário, no artigo “Lukács and stalinism” (e no meu livro), quanto ao ambicioso afresco histórico de Lukács, a propósito de Hölderlin, tenta questionar a tese da continuidade entre a Revolução e o Termidor: “Este texto de Lukács constitui sem dúvida uma das tentativas mais inteligentes e sutis de justificar o stalinismo como uma ‘fase necessária’, ‘prosaica’, mas ‘de caráter progressista’, da evolução revolucionária do proletariado, concebida como um processo unitário. Há nesta tese – que era provavelmente o raciocínio secreto de muitos intelectuais e militantes mais ou menos ligados ao stalinismo – um certo ‘núcleo racional’, mas os eventos dos anos seguintes (os processos de Moscou, o pacto germano-soviético, etc.) mostrariam, mesmo para Lukács, que este processo não era tão ‘unitário’”. Eu acrescento, numa nota de rodapé, que o velho Lukács, numa entrevista à New Left Review em 1969, tem uma visão mais lúcida do que em 1935 sobre a União Soviética: seu poder de atração extraordinária durou “de 1917 até a época dos Grandes Expurgos”[xv].

    Mas retornemos para Žižek: as questões colocadas pelo seu livro não são unicamente históricas: elas dizem respeito à própria possibilidade de um projeto comunista emancipatório a partir das ideias de Marx (e/ou Lênin). De fato, segundo o argumento que ele propõe numa das passagens mais estranhas de seu livro, o stalinismo, com todos os seus horrores (que ele não nega), foi, em última análise, um mal menor, em relação ao projeto marxiano original! Em uma nota de rodapé, Žižek explica que a questão do stalinismo é seguidamente mal colocada: “O problema não é que a visão marxista original foi subvertida pelas consequências inesperadas. O problema é esta própria visão. Se o projeto comunista de Lênin – ou mesmo de Marx – tivesse sido plenamente realizado, de acordo com seu núcleo verdadeiro, as coisas teriam sido bem piores que o stalinismo – teríamos uma visão do que Adorno e Horkheimer chamaram die verwaltete Welt (a sociedade administrada), uma sociedade totalmente transparente a ela mesma, regulamentada pelo intelecto geral reificado, da qual teria sido banida toda veleidade de autonomia e de liberdade”[xvi].

    Parece-me que Slavoj Žižek é muito modesto. Por que esconder numa nota de rodapé tal descoberta histórico-filosófica, cuja importância política é evidente? De fato, os adversários liberais, anticomunistas e reacionários do marxismo limitam-se a torná-lo culpável dos crimes do stalinismo. Žižek é, pelo que sei, o primeiro a sustentar que, se o projeto marxista original tivesse sido plenamente realizado, o resultado teria sido pior que o stalinismo…

    É necessário levar a sério esta tese, ou não seria melhor atribuí-la ao gosto imoderado de Slavoj Žižek pela provocação? Eu não poderia responder a esta questão, mas eu me inclino para a segunda hipótese. Em todo caso, eu tenho alguma dificuldade em considerar como séria esta afirmação um tanto absurda – um ceticismo partilhado sem dúvida por aqueles – especialmente jovens – que continuam a se interessar, até hoje, pelo projeto marxista originário.

    *Michael Löwy é diretor de pesquisas no Centre National de la Recherche Scientifique(França). Autor, entre outros livros de A evolução política de Lukács 1909-1929 (Cortez). Tradução: Fernando Lima das Neves

    Notas

    [i] G. Lukács, “L‘Hyperion’ de Hölderlin”, Goethe et son époque, Paris, Nagel, 1949, p. 197.

    [ii] G. Lukács, “Über den Dotsojevski Nachlass”, Moskauer Rundschau, 22/3/1931.

    [iii] G. Lukács, “Nietzsche als Vorläufer des faschistischen Aesthetik” (1934), in F. Mehring, G. Lukács, Friedrich Nietzsche, Berlin, Aufbau Verlag, 1957, pp. 41-53.

    [iv] Ver a esse respeito, M.Löwy, R.Sayre, “Le romantisme (anticapitaliste) dans La Théorie du roman de G. Lukács”, in Romanesques, Revue du Centre d’études du roman, Paris, Classiques Garnier, n° 8, 2016, “Lukács 2016: cent ans de Théorie du roman”.

    [v] Hölderlin, Hyperion, 1797, Frankfurt am Mein, Fischer Bücherei, 1962, p. 90. Para uma discussão sobre o conceito de romantismo anticapitalista e suas diversas manifestações políticas, ver M. Löwy, R. Sayre, Revolte et melancolie. Le romantisme à contre-courant de la modernité, Paris, Payot, 1990.

    [vi] G. Lukács, Hyperion, op.cit., p. 194.

    [vii] G. Lukács, op.cit., p. 183.

    [viii] Ibid., p.182.

    [ix] G. Lukács, op.cit., pp. 179-181.

    [x] M. Löwy, Pour une sociologie des intellectuels révolutionnaires. L’évolution politique de Lukács 1909-1929, Paris, PUF, 1976, p. 232.

    [xi] S. Žižek, La révolution aux portes, Paris, Le Temps des Cerises, 2020, p. 404.

    [xii] S. Žižek, op.cit, p. 257.

    [xiii] S. Žižek, op. cit., note 49, p. 419.

    [xiv] S. Žižek , op.cit., pp. 250-52.

    [xv] M. Löwy, G.Lukács, op.cit., p. 233. É verdade que os massacres da coletivização forçada do início dos anos 1930 eram pouco conhecidos fora da URSS.

    [xvi] S. Zizek, op. cit., note 47, p. 419.

    Publicada por Nozes Pires à(s) segunda-feira, agosto 21, 2023 Sem comentários:
    Mensagens mais recentes Mensagens antigas Página inicial
    Subscrever: Mensagens (Atom)

    Viagem à Polónia

    Viagem à Polónia
    Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

    Viagem à Polónia

    Viagem à Polónia
    Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.

    Acerca de mim

    A minha foto
    Nozes Pires
    Ver o meu perfil completo

    Translate

    Contos

    • Conto

    Encontros com a Filosofia

    • Encontros com a Filosofia

    Viagens Extraordinárias - Novela

    • VIAGENS EXTRAORDINÁRIAS-NOVELA UTÓPICA DE FICÇÃO C...

    Na hora da nossa morte - Novela

    • http://nahoradanossamorte-novela.blogspot.com

    experimentalidades

    experimentalidades

    Seguidores

    Desde 24.10.2009

    Arquivo do blogue

    • ►  2009 (197)
      • ►  março (9)
      • ►  abril (12)
      • ►  maio (15)
      • ►  junho (5)
      • ►  julho (15)
      • ►  agosto (19)
      • ►  setembro (17)
      • ►  outubro (38)
      • ►  novembro (31)
      • ►  dezembro (36)
    • ►  2010 (390)
      • ►  janeiro (41)
      • ►  fevereiro (30)
      • ►  março (45)
      • ►  abril (49)
      • ►  maio (42)
      • ►  junho (43)
      • ►  julho (41)
      • ►  agosto (18)
      • ►  setembro (25)
      • ►  outubro (14)
      • ►  novembro (23)
      • ►  dezembro (19)
    • ►  2011 (245)
      • ►  janeiro (25)
      • ►  fevereiro (27)
      • ►  março (29)
      • ►  abril (15)
      • ►  maio (27)
      • ►  junho (26)
      • ►  julho (22)
      • ►  agosto (17)
      • ►  setembro (17)
      • ►  outubro (18)
      • ►  novembro (15)
      • ►  dezembro (7)
    • ►  2012 (142)
      • ►  janeiro (6)
      • ►  fevereiro (8)
      • ►  março (10)
      • ►  abril (17)
      • ►  maio (13)
      • ►  junho (12)
      • ►  julho (16)
      • ►  agosto (12)
      • ►  setembro (16)
      • ►  outubro (13)
      • ►  novembro (9)
      • ►  dezembro (10)
    • ►  2013 (130)
      • ►  janeiro (6)
      • ►  fevereiro (10)
      • ►  março (13)
      • ►  abril (7)
      • ►  maio (7)
      • ►  junho (11)
      • ►  julho (19)
      • ►  agosto (15)
      • ►  setembro (11)
      • ►  outubro (8)
      • ►  novembro (10)
      • ►  dezembro (13)
    • ►  2014 (204)
      • ►  janeiro (10)
      • ►  fevereiro (18)
      • ►  março (19)
      • ►  abril (19)
      • ►  maio (15)
      • ►  junho (21)
      • ►  julho (16)
      • ►  agosto (10)
      • ►  setembro (15)
      • ►  outubro (19)
      • ►  novembro (22)
      • ►  dezembro (20)
    • ►  2015 (275)
      • ►  janeiro (25)
      • ►  fevereiro (25)
      • ►  março (30)
      • ►  abril (17)
      • ►  maio (18)
      • ►  junho (23)
      • ►  julho (25)
      • ►  agosto (9)
      • ►  setembro (18)
      • ►  outubro (18)
      • ►  novembro (37)
      • ►  dezembro (30)
    • ►  2016 (219)
      • ►  janeiro (24)
      • ►  fevereiro (15)
      • ►  março (27)
      • ►  abril (23)
      • ►  maio (19)
      • ►  junho (20)
      • ►  julho (19)
      • ►  agosto (19)
      • ►  setembro (14)
      • ►  outubro (11)
      • ►  novembro (14)
      • ►  dezembro (14)
    • ►  2017 (206)
      • ►  janeiro (25)
      • ►  fevereiro (7)
      • ►  março (10)
      • ►  abril (21)
      • ►  maio (20)
      • ►  junho (19)
      • ►  julho (16)
      • ►  agosto (27)
      • ►  setembro (23)
      • ►  outubro (21)
      • ►  novembro (13)
      • ►  dezembro (4)
    • ►  2018 (209)
      • ►  janeiro (20)
      • ►  fevereiro (14)
      • ►  março (21)
      • ►  abril (16)
      • ►  maio (16)
      • ►  junho (8)
      • ►  julho (14)
      • ►  agosto (20)
      • ►  setembro (18)
      • ►  outubro (22)
      • ►  novembro (17)
      • ►  dezembro (23)
    • ►  2019 (264)
      • ►  janeiro (21)
      • ►  fevereiro (23)
      • ►  março (19)
      • ►  abril (12)
      • ►  maio (20)
      • ►  junho (27)
      • ►  julho (22)
      • ►  agosto (26)
      • ►  setembro (23)
      • ►  outubro (18)
      • ►  novembro (29)
      • ►  dezembro (24)
    • ►  2020 (307)
      • ►  janeiro (32)
      • ►  fevereiro (39)
      • ►  março (26)
      • ►  abril (26)
      • ►  maio (37)
      • ►  junho (24)
      • ►  julho (33)
      • ►  agosto (15)
      • ►  setembro (17)
      • ►  outubro (17)
      • ►  novembro (18)
      • ►  dezembro (23)
    • ►  2021 (310)
      • ►  janeiro (24)
      • ►  fevereiro (29)
      • ►  março (34)
      • ►  abril (21)
      • ►  maio (28)
      • ►  junho (19)
      • ►  julho (20)
      • ►  agosto (28)
      • ►  setembro (23)
      • ►  outubro (20)
      • ►  novembro (32)
      • ►  dezembro (32)
    • ►  2022 (327)
      • ►  janeiro (17)
      • ►  fevereiro (9)
      • ►  março (26)
      • ►  abril (51)
      • ►  maio (45)
      • ►  junho (18)
      • ►  julho (42)
      • ►  agosto (27)
      • ►  setembro (29)
      • ►  outubro (22)
      • ►  novembro (27)
      • ►  dezembro (14)
    • ▼  2023 (181)
      • ►  janeiro (17)
      • ►  fevereiro (13)
      • ►  março (11)
      • ►  abril (19)
      • ►  maio (17)
      • ►  junho (7)
      • ►  julho (17)
      • ▼  agosto (19)
        •  JACOBIN Comunismo verde totalmente automa...
        •  Discarding Illusions, Ending WarsBy Colonel (ret....
        •  A crise da habitação  Crónica no jornal PÚBLICO ...
        •  A RELIGIÃO DO OCIDENTE NÃO É A DESTE PAPA Carlos ...
        •  JACOBIN Pessoas em Xangai assistem ao ...
        • O que está a dividir a esquerda comunista. No meio...
        •  O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo Vlad...
        • O QUE É ANTI-IMPERIALISMO? UMA INTRODUÇÃO
        •   Deus ex Media ...
        • Não comungo necessariamente de todos os conteúdos ...
        •  El gigantesco casino de la economía mundial Pub...
        • Mais-Esquerda: Crise Estrutural do capitalismo e o...
        •   Comunidad Saker Latinoamér...
        • Não sou adepto do projeto político de M. Löwy , no...
        • RÚSSIA ESTÁ PERTO DA VITÓRIA CONTRA UCRÂNIA? - 20 ...
        •  Fuente: prensapcv.wordpress.comPartido Comunista ...
        •  Não é um fenómeno novo, mas não é surpreendente q...
        • António Damásio
        •  A silenciar os cordeiros: Como funciona a propaga...
      • ►  setembro (12)
      • ►  outubro (12)
      • ►  novembro (13)
      • ►  dezembro (24)
    • ►  2024 (205)
      • ►  janeiro (16)
      • ►  fevereiro (14)
      • ►  março (13)
      • ►  abril (11)
      • ►  maio (23)
      • ►  junho (8)
      • ►  julho (21)
      • ►  agosto (19)
      • ►  setembro (28)
      • ►  outubro (23)
      • ►  novembro (9)
      • ►  dezembro (20)
    • ►  2025 (71)
      • ►  janeiro (7)
      • ►  fevereiro (19)
      • ►  março (19)
      • ►  abril (10)
      • ►  maio (15)
      • ►  junho (1)

    Obras de Nozes Pires publicadas em

    Entre Outras:
    150 Anos Do Manifesto Do Partido Comunista, o Manifesto e o seu Tempo, Lisboa, 2000, Ed. Colibri.
    Léger-Marie Deschamps, Un Philosophe entre Lumières et Oubli, 2001, Ed. L'Harmattan.
    Renascimento e Utopias, Actas da Academia de Ciências, 1997
    Revista «Vértice», vários números.
    Revista «espaço público», 1.
    José Félix Henriques Nogueira, Revista editada pela Escola Sec. de Henriques Nogueira, 2008.
    Jornal «A Batalha», vários números.
    Semanários: Badaladas, FrenteOeste.


    Livro "Não Olhes para Trás- Lembras-te?", editora Chiado, Lisboa, 2024

    Discursando

    Discursando
    No 2º Congresso Republicano de Aveiro, 1969, em nome dos estudantes universitários do Porto
    Tema Janela desenhada. Com tecnologia do Blogger.