O poeta palestino Mahmoud Darwish disse que "há mais inspiração
e riqueza humana na derrota do que na vitória". Darwish queria dizer
que há uma grande poesia na derrota, mas talvez quisesse dizer que as
derrotas, mais do que as vitórias, nos obrigam a refletir e a tirar
lições. Este livro de Alexandre Ostrovski é uma fonte rica de lições a
retirar da derrota do socialismo soviético. Escrito pelo historiador
russo da Academia de Ciências de Leninegrado em 2011 e publicado em
francês pelas Edições Delga em 2023, Erreur ou Trahison (Erro ou Traição) é o livro mais exaustivo sobre o colapso soviético até hoje publicado.
Ostrovski tem três objectivos: primeiro, reconstruir os
acontecimentos que levaram ao colapso; segundo, determinar se o colapso
foi "espontâneo" ou "propositado"; e terceiro, descobrir o papel que os
líderes soviéticos desempenharam nos acontecimentos que conduziram ao
colapso.
Quanto ao primeiro objetivo, Ostrovski faz um relato minucioso
dos acontecimentos desde 1985 até ao colapso soviético em 1991. Quanto
ao segundo e terceiro objectivos, Ostrovski defende que o colapso não
foi espontâneo nem inevitável, nem resultou de "erros" dos dirigentes.
Pelo contrário, o colapso deveu-se às políticas e acções deliberadas de
Mikhail Gorbachev e dos seus colaboradores mais próximos, em particular
Alexander Yakovlev. Desde o início, estes homens tinham um plano geral
para enfraquecer o Partido Comunista Soviético, abandonar a economia
socialista planificada e introduzir uma economia de mercado com
propriedade privada e um governo parlamentar liberal.
Tendo escrito um livro com Joe Jamison (que usava o pseudónimo
de Thomas Kenny) sobre o colapso soviético, publicado em 2010 (um ano
antes do livro de Ostrovski), estava ansioso por saber em que pontos os
nossos dois livros concordavam e divergiam, e que novas informações
Ostrovski, com a vantagem de ter fontes em língua russa, poderá ter
descoberto. No que respeita às linhas gerais dos acontecimentos que
conduziram ao colapso e à responsabilidade global de Gorbachev e dos
seus aliados próximos pelo colapso, os dois livros concordam. Do mesmo
modo, concordamos com Ostrovski em que a União Soviética não enfrentou
qualquer crise em 1985 e que o colapso não foi inevitável nem
espontâneo.
No entanto, existem diferenças. Enquanto nós sublinhamos as
raízes das ideias reformistas de Gorbachev em Nikolai Bukharin e Nikita
Khrushchev e o papel da segunda economia (mercado negro) no
enfraquecimento do socialismo e na preparação de uma base ideológica e
material para o oportunismo de Gorbachev, estas ideias não ocupam um
lugar importante em Ostrovski. Além disso, por vezes, o desprezo
compreensível de Ostrovski por Gorbachev leva-o a ver conspirações (como
no incidente de Rust abaixo) que podem ser verdadeiras mas não são
apoiadas pelas provas disponíveis. Além disso, enquanto nós atribuímos o
crescimento do nacionalismo em algumas repúblicas soviéticas à inépcia
de Gorbachev, Ostrovski vê-o como resultado de um esforço calculado de
Gorbachev para enfraquecer o Partido Comunista e o Estado.
Com o seu acesso a uma grande variedade de fontes russas,
incluindo jornais e diários, actas de reuniões, relatórios e
entrevistas, Ostrovski fornece 800 páginas de novos factos e ideias que
tornam este livro uma leitura inestimável. Sem tentar relatar toda a
nova informação, concentrar-me-ei antes na luz que Ostrovski lança sobre
a questão mais desconcertante que envolve o colapso: como é que
Gorbachev conseguiu levar a cabo a sua destruição do Partido, da
economia socialista e do Estado soviético multinacional sem ser travado
por outros comunistas.
Na primavera de 1985, quando Mikhail Gorbachev se tornou
Secretário-Geral, a grande maioria do Politburo, do Comité Central, da
comunidade militar e dos serviços secretos e da população em geral
ter-se-ia oposto aos planos de Gorbachev e de Yakovlev, se os tivesse
conhecido. Gorbachev e os seus aliados admitiram-no mais tarde. Por
isso, Gorbachev e Yakovlev só puseram em prática os seus planos
revelando-os gradualmente e utilizando sem escrúpulos o engano, a
duplicidade, a demagogia e a crueldade para ultrapassar os seus
camaradas. Esta é a chave para compreender como foram bem sucedidos.
Gorbachev e Yakovlev compreenderam a importância de preparar o
terreno para as suas reformas, assumindo o controlo da ideologia do
partido e minando as ideias e políticas comunistas tradicionais. Uma
das primeiras medidas de Gorbachev foi nomear Yakovlev para dirigir o
Departamento de Propaganda do Comité Central, colocando-o à frente da
ideologia do Partido e dos jornais, revistas e outros meios de
comunicação social do país. Yakovlev utilizou então uma tática a que,
noutro contexto, Mao Tsé Tung chamou "usar a bandeira vermelha para
combater a bandeira vermelha". Como Yakovlev disse mais tarde, o seu
plano visava "usar a autoridade de Lenine para derrubar Estaline, o
estalinismo. E depois, em caso de sucesso, usar Plekhanov e a
social-democracia para derrubar Lenine e, finalmente, derrubar a
revolução em geral a caminho do liberalismo e do 'socialismo moral'".
Seguiu-se a mais amarga das ironias: um ataque a Estaline, o homem que
mais do que ninguém construiu o socialismo soviético, serviu como a
ponta aguçada da cunha que minou o socialismo.
Ostrovski considera a trapaça de Yakovlev, mas não reconhece
que o seu êxito só ocorreu porque Khrushchev havia preparado o caminho,
fazendo da condenação de Estaline a ideologia dominante do Partido
Comunista. Em 1977, quando leccionava na Universidade de Cornell,
recebi um candidato a doutoramento da Universidade Estatal de Moscovo
que estava a fazer investigação sobre os Estados Unidos. Um dia, abordei
uma discussão sobre os "erros" de Estaline e aquele jovem comunista
protestou: "Estaline não cometeu erros. Ele cometeu crimes". O repúdio
total de Estaline marcou a ideologia soviética após o discurso de
Khrushchev sobre o culto da personalidade no XX Congresso do PCUS, em
1956, e diferia marcadamente dos chineses, que concluíram que Estaline
estava 70% certo e 30% errado. Ao atacarem Estaline, Yakovlev e os seus
aliados estavam a empurrar uma porta aberta e, ao associarem as suas
reformas a um ataque a Estaline, estavam a estigmatizar preventivamente
os adversários da reforma como estalinistas.
No início, Gorbachev cultivou o apoio de líderes do Partido
honestos e muito respeitados, como N.I. Ryzhkov e Yegor Ligachev, que
eram a favor de reformas económicas segundo as linhas propostas
anteriormente por Yuri Andropov. Mais tarde, quando se opuseram a
medidas para enfraquecer o Partido e o sistema socialista, Gorbachev
virou-se contra eles. De um modo geral, Gorbachev e Yakovlev
recompensaram e promoveram magistralmente os seus aliados, ao mesmo
tempo que despromoviam ou marginalizavam os seus opositores.
Ostrovski mostra como Gorbachev introduziu novas ideias e
políticas fora do Partido e, por vezes, junto de líderes estrangeiros,
sem as discutir previamente com o Politburo. Além disso, para promover a
sua agenda, planeou habilmente alguns acontecimentos e explorou outros
de forma oportunista.
No relato de Ostrovski, Gorbachev não surge como um vagabundo
provinciano e ingénuo cujas reformas produziram consequências
imprevistas e conduziram involuntariamente ao colapso do Partido
Comunista, do socialismo e da União Soviética. Em vez disso, segundo
Ostrovski, Gorbachev e os seus colaboradores mais próximos sabiam que a
União Soviética não estava a enfrentar nenhuma crise iminente e,
consequentemente, enfrentar uma crise ou mesmo uma crise iminente não
era a verdadeira motivação para o seu programa de glasnost e
perestroika. Gorbachev ampliou as preocupações existentes sobre a
estagnação da economia soviética e a corrida ao armamento para atingir o
seu verdadeiro objetivo, que era transformar o socialismo soviético
numa versão de social-democracia.
Ostrovski apresenta provas e argumentos convincentes para cada
elo desta cadeia. (Embora até ele admita que ainda não é possível
escrever uma história conclusiva do colapso porque alguns documentos
continuam indisponíveis). Quanto à questão de saber se o sistema
socialista enfrentava uma crise iminente em 1985, os colaboradores
próximos de Gorbachev, V. A. Medvedev e G. K. Shakhnazarov, bem como o
próprio Gorbachev, admitiram anos mais tarde que essa crise não existia.
Em 2008, por exemplo, em resposta a uma pergunta de um entrevistador,
Gorbachev afirmou que, sem as suas acções, a União Soviética teria
durado anos.
Gorbachev tinha um plano de reformas quando se tornou
Secretário-Geral em 1985? Gorbachev não tinha um plano bem elaborado,
mas ele e Yakovlev tinham uma ideia geral do que queriam fazer, e criou
imediatamente um grupo de trabalho fora da estrutura e da aprovação do
Politburo e do Comité Central para desenvolver um plano em segredo.
Dirigido pelo omnipresente Alexander Yakovlev, cujas impressões digitais
estão em todos os aspectos da glasnost e da perestroika, o
grupo de trabalho desenvolveu este plano entre março e junho de 1985.
Embora os participantes no grupo de trabalho atestem o plano, o
documento em si permanece desconhecido, e Gorbachev nunca apresentou
esse plano ao Politburo ou ao Comité Central.
A duplicidade de Gorbachev revelou-se desde o início. Em 11 de
março de 1985, quando foi proposto para Secretário-Geral, Gorbachev
afirmou: "Não precisamos de mudar as nossas políticas". No mesmo
dia, após a sua aprovação no novo cargo, Gorbachev apelou a "mudanças
radicais nos mecanismos produtivos e económicos, bem como na gestão do
país". A duplicidade de Gorbachev e do seu círculo íntimo foi
abertamente admitida por Yakovlev em 2003. Comentando a abordagem de
Gorbachev, Yakovlev disse que era "uma cara de Jano", falando, por um
lado, da continuidade da construção do socialismo e, por outro, da
reestruturação das condições existentes.
Outro exemplo da duplicidade de Gorbachev dizia respeito às
suas primeiras acções em matéria de política externa. Gorbachev
estava convencido de que só poderia fazer as reformas internas que
desejava reduzindo as despesas militares soviéticas, e só o poderia
fazer reduzindo a ameaça do exterior através do cultivo da cooperação
entre os líderes europeus e americanos. Gorbachev introduziu assim a
ideia de "uma casa comum europeia", a ideia de que a União Soviética, a
Europa de Leste e a Europa Ocidental deveriam cooperar para promover a
paz, o comércio e, em última análise, a integração económica. Esta ideia
aparentemente inócua e visionária implicava, de facto, uma mudança
radical na ideologia e na política soviéticas. A integração económica
não era possível, por exemplo, enquanto a URSS tivesse uma economia
planificada e a Europa Ocidental uma economia de mercado. Alguns foram
atraídos pela visão de paz e prosperidade sem se aperceberem de que isso
significava o abandono de uma economia socialista planificada. No
entanto, Gorbachev discutiu esta ideia com líderes da Europa Ocidental,
como François Mitterand, de França, e nos meios de comunicação social
soviéticos, antes de a apresentar ao Politburo.
Gorbachev também utilizou a ameaça da "Guerra das Estrelas"
como argumento para promover o desanuviamento e fazer concessões
unilaterais ao Ocidente. Em março de 1983, o Presidente Ronald Reagan
tinha declarado a intenção dos Estados Unidos de construírem um sistema
de defesa antimíssil, designado por Iniciativa de Defesa Estratégica (Strategic Defense Initiative, SDI)
ou Guerra das Estrelas. Muitos membros das comunidades militar e
científica soviéticas pensaram que a Guerra das Estrelas representava
uma ameaça fictícia (idle), uma vez que um sistema de defesa a
laser não era viável (um juízo que se revelou historicamente correto,
uma vez que os EUA nunca construíram um sistema desse tipo).
Gorbachev, no entanto, rejeitou esta opinião e argumentou que a Guerra
das Estrelas representava uma ameaça real e que combatê-la exigiria uma
despesa que a União Soviética não poderia suportar, pelo que era
imperativo procurar o desarmamento com o Ocidente, mesmo que isso
implicasse que a União Soviética fizesse concessões unilaterais. Foi
exatamente isso que aconteceu.
Ostrovski dá muitos outros exemplos de como Gorbachev criou ou
explorou os acontecimentos para afastar os opositores do poder e levar
por diante as suas reformas. Em maio de 1987, ocorreu um incidente
menor quando um pequeno avião Cessna pilotado por um jovem alemão,
Matthais Rust, aterrou junto ao Kremlin. Ostrovski argumenta que nenhum
avião poderia ter penetrado nas defesas soviéticas sem ser detectado
e/ou comunicado sem algum tipo de cooperação dos serviços secretos
soviéticos. Ostrovski implica, assim, que só uma conspiração envolvendo
Gorbachev, o KGB e os militares, e talvez até os serviços secretos
americanos, poderia explicar este incidente. Se Ostrovski estiver
correto (embora ainda não tenha surgido nenhum indício a revelar tal
conspiração), isso mostraria um nível espantoso de engano. Se Gorbachev
engendrou este incidente pode ser discutível, mas é incontestável que
ele utilizou esta brecha nas defesas soviéticas como uma razão para
afastar alguns dos seus opositores do cargo e substituí-los pelos seus
apoiantes. Entre os destituídos encontrava-se o ministro da Defesa S.
L. Sokolov. Depois disso, Yakovlev entrou no gabinete de Ligachev,
regozijando-se e dizendo jovialmente: "Olha. As minhas mãos estão
cobertas de sangue até aos cotovelos".
No final, os comunistas honestos que queriam melhorar o sistema
socialista, mas que se opunham a Gorbachev, enfrentaram enormes
obstáculos. Tinham de respeitar as restrições impostas pela sua própria
adesão aos princípios comunistas da disciplina e do centralismo
democrático, desafiando simultaneamente o líder do partido, que detinha o
poder, a influência e o respeito inerentes a essa posição, e que estava
disposto a espezinhar as regras, a ideologia, as políticas e a ética
comunistas. Yakovlev admitiu que o Partido Comunista só podia ser
destruído recorrendo à "disciplina" do Partido e à "confiança" dos
comunistas no secretário-geral que o Partido havia inculcado durante
anos. Para ter êxito com o programa de reformas, Yakovlev disse que
eram necessários recuos e truques. Confessou mais tarde que distorcia
muitas vezes as coisas e "falou mais do que uma vez em 'renovar o
socialismo', quando sabia muito bem que o caminho seguido levaria à
destruição do socialismo".
Uma outra questão no relato de Ostrovski merece ser mencionada.
Terá sido Gorbachev bem sucedido porque os serviços secretos
americanos desempenharam um papel no colapso soviético? Ostrovski
salienta que os diplomatas e os agentes dos serviços secretos americanos
ficaram geralmente surpreendidos com o colapso soviético, o que
constitui a melhor prova de que o colapso não foi, em primeiro lugar,
obra deles, mas um assunto interno. Ostrovski observa, no entanto, que
os diplomatas e os agentes dos serviços secretos americanos encorajaram e
promoveram as reformas de Gorbachev a cada passo e, mais tarde, alguns
ficaram com os louros do colapso. Além disso, Ostrovski discute em
profundidade as suspeitas que surgiram sobre as possíveis ligações de
Yakovlev à CIA. Essas suspeitas surgiram durante a sua estadia na
Universidade de Columbia em 1960 e, mais tarde, durante os anos de
Gorbachev. O mais grave é que V. A. Kryuchkov, o chefe do KGB,
escreveu nas suas memórias que, a partir de 1989, "começaram a chegar
informações extremamente alarmantes que indicavam ligações de Yakovlev
aos serviços especiais americanos". Kryuchkov estava tão preocupado
que abordou o assunto com Gorbachev, o qual, naturalmente, desviou um
inquérito sério sobre o comportamento do seu colaborador mais próximo.
Ostrovski sugere que a alegação de Yakovlev de que queria uma
investigação para limpar o seu nome era altamente duvidosa e
inconsistente com o seu comportamento. No final, Ostrovski afirma que
as relações de Yakovlev com os serviços secretos americanos, quaisquer
que tenham sido, continuam a ser um aspeto não esclarecido do colapso
soviético.
Apesar de Ostrovski fazer uma análise exaustiva da forma como
Gorbachev e os seus aliados se safaram com a destruição do socialismo,
alguém poderia ainda perguntar: porque é que comunistas como Ligachev e
Ryzhkov não foram suficientemente duros ou perspicazes para ver através
das mentiras e dos enganos? Como é que comunistas tão traidores como
Gorbachev e Yakovlev conseguiram ascender a posições de poder? O que
motivou Gorbachev e Yakovlev a quererem transformar o sistema?
(Relativamente a esta última questão, Ostrovski fornece algumas provas
de que Gorbachev e Yakovlev receberam ou, pelo menos, esperavam uma
recompensa financeira do Ocidente pela sua traição). É claro que uma
regressão infinita de porquês pode dificultar qualquer explicação.
Estas questões não diminuem o feito de Ostrovski. Sublinham, no
entanto, a importância de olhar para além das motivações e acções dos
indivíduos, para os problemas sociais, económicos e ideológicos
subjacentes (como o crescimento da segunda economia e a persistência do
oportunismo) que facilitaram a traição de Gorbachev.
É lamentável que os americanos que queiram seguir a ideia de
Darwish e procurar inspiração e lições na derrota soviética não
disponham de uma versão em língua inglesa de um dos melhores livros
sobre o assunto. Se se tornar disponível em inglês, não deixem de
aproveitá-la.