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sexta-feira, 23 de maio de 2025

O método do neo-fascismo

 in JACOBIN

O método por trás da loucura da extrema direita

Tradução
Pedro Silva

A extrema direita contemporânea está combinando o apelo por liberdade econômica com a pseudociência sobre hierarquias naturais de raça e QI. O historiador Quinn Slobodian explica como essas ideias se interligam.

Quinn Slobodian consolidou-se como um dos historiadores intelectuais mais perspicazes do neoliberalismo. Em livros como “Globalistas: O Fim do Império e o Nascimento do Neoliberalismo e “Capitalismo Destrutivo: Os Radicais do Mercado e a Ameaça de um Mundo Sem Democracia”, ele apresenta o neoliberalismo como uma ideologia cuja característica essencial consiste em proteger o capital das consequências adversas da democracia.

Em seu último livro, Hayek’s Bastards: Race, Gold, Iq, and the Capitalism of the Far Right [Os Bastardos de Hayek: Raça, Ouro, QI e o Capitalismo da Extrema Direita], ele afirma que a ascensão da direita contemporânea — tanto em suas vertentes tecnolibertárias quanto mais autoritárias — não pode ser entendida sem considerar a guinada dos pensadores neoliberais para a ideia de que a natureza e a ciência poderiam ser utilizadas como um apoio contra as demandas por justiça social e ações afirmativas na década de 1990. Ele explica como esse “darwinismo social”, às vezes descambando para o “apocalipticismo” absoluto, está por trás de diferentes membros da internacional reacionária, desde o discípulo de Murray Rothbard, Javier Milei, até a Alternativa para a Alemanha (AfD).

Em uma entrevista para a Jacobin, Bartolomeo Sala conversou com Slobodian sobre essa formação ideológica, que ele identifica como o estranho produto do fim da Guerra Fria, bem como qual o efeito que ela tem nas motivações do governo Trump e dos partidos de extrema direita internacionalmente.


BARTOLOMEO SALA

Gostaria de começar pedindo que você descrevesse o conceito do livro em poucas palavras. Em diferentes pontos, você enfatiza seu caráter contraintuitivo. Você descreve também a relação da nova direita com o neoliberalismo não como uma “reação de recuo”, mas como uma “reação frontal”, por exemplo. Da mesma forma, na conclusão do livro, descreve pessoas como Milei não como um “renegado”, mas como um “entusiasta” do neoliberalismo.

Até que ponto é apropriado chamar o livro de genealogia do presente? Que clichês desgastados você tentou superar?

QUINN SLOBODIAN

Acho que o livro foi pensado como um corretivo para essa narrativa que se tornou muito comum depois de 2016, com Donald Trump e o Brexit, na qual a extrema direita era entendida como uma resposta e uma crítica aos excessos da globalização neoliberal.

A suposição era que esses atores da extrema direita buscavam algum tipo de proteção social ou blindagem das populações contra dinâmicas de competição. Mas meu livro mostra que muitos dos líderes proeminentes da extrema direita eram, na verdade, capitalistas radicalizados que buscavam acelerar essas mesmas dinâmicas de competição e rivalidade de uma nova maneira.

O contexto que analiso é o fim da Guerra Fria. Com o fim do comunismo de Estado, havia a preocupação de que o inimigo tivesse mudado de forma e de rosto, porque neoliberais e conservadores ainda sentiam que havia um Estado amplo, havia demandas por justiça social e os progressistas não haviam morrido com a União Soviética.

“O livro foi pensado como um corretivo à narrativa na qual a extrema direita era entendida como uma resposta aos excessos da globalização neoliberal.”

Assim, a partir da década de 1990, pessoas da direita, tanto do campo neoliberal quanto do campo mais culturalmente conservador, começaram a se concentrar em novos inimigos — incluindo feministas, antirracistas e ambientalistas. Acredito que grande parte da estranheza do momento atual, em que a direita está obcecada pelo marxismo cultural e pela cultura woke, decorre dessa transformação pós-queda do Muro de Berlim.

BS

Por que, então, o título Os Bastardos de Hayek?

QS

Isso indica que alguns dos principais intelectuais que descrevo no livro eram membros do movimento intelectual neoliberal organizado. Faziam parte de um grupo relativamente pequeno de pessoas que se reunia regularmente na Sociedade Mont Pelerin para debater as diferentes maneiras pelas quais o capitalismo deveria ser defendido contra seus adversários, incluindo a democracia.

O próprio Friedrich Hayek tinha uma compreensão evolutiva da natureza humana e da natureza dos mercados. Muitas das pessoas sobre as quais escrevo no livro simplesmente levaram suas ideias a um novo patamar. A evolução cultural se transformou em evolução biológica. Os marcadores de mercado dentro das populações se transformaram em ideias de inteligência intrínseca, deficiência e ciência racial.

Então eles são “bastardos” no sentido de que são intelectualmente descendentes de Hayek, mas acho que eles o interpretam mal e levam seu trabalho em direções que ele mesmo não teria tomado.

BS

Acho que seu livro parece extremamente “contemporâneo”, por razões bastante óbvias. Ao mesmo tempo, parece uma continuação orgânica de seus livros anteriores, Globalistas e Capitalismo Destrutivo. Em que medida você considera esse livro independente e em que medida ele dá continuidade ao projeto dos outros dois?

QS

Vejo-o como uma continuidade com os dois livros anteriores e até mesmo como um suporte cronológico para eles.

Globalistas leva em conta o período entre o fim da Primeira Guerra Mundial — especificamente o fim do Império Austro-Húngaro — e a década de 1990. Na época, esse grupo de intelectuais neoliberais acreditava firmemente que era possível criar instituições que se situassem acima do Estado e protegessem os mercados por meio de leis e da estrutura estatal, o que culminou na Organização Mundial do Comércio, por exemplo — em outras palavras, a ideia de garantir certos direitos ao capital que se sobrepusessem à soberania nacional.

Capitalismo Destrutivo era sobre pessoas insatisfeitas com esse modelo de expansão e que, em contrapartida, buscavam oportunidades para reduzir a escala e sair dos arranjos estatais existentes. Tendo, assim, a ficção de Hong Kong e do microestado como a nova solução para os obstáculos da política de classe e dos movimentos sociais, que se intensificou no final da década de 1970, mas se acelerou de fato nas décadas de 1990 e 2000, com sonhos tecnolibertários de cidades autônomas e Estados privados.

“A ideia é entender como pessoas que priorizam a liberdade econômica acima de tudo encontrariam aliados úteis em pessoas que acreditam em formas naturais de hierarquia, como de raça, gênero e inteligência.”

Os Bastardos de Hayek retoma o ponto em que Capitalismo Destrutivo parou. Este último começa com esta imagem de Peter Thiel, em 2009, especulando sobre a necessidade de escapar completamente da política e criar milhares de novos Estados e políticas. Mas o livro termina com Thiel, em 2016, subindo ao palco da Convenção Nacional Republicana e fundindo esse projeto político com o de Trump. A conclusão parece ser que é muito mais fácil tomar um Estado que já existe do que começar um novo.

Eu diria que o projeto intelectual é tentar entender uma parte dessa ideologia que chegou ao poder nos Estados Unidos, e como pessoas que priorizam a liberdade econômica acima de tudo encontrariam aliados úteis em pessoas que acreditam em formas naturais de hierarquia, como de raça, gênero e inteligência. Então, sim, a trilogia nos traz até o momento presente.

BS

Então os três livros são três capítulos de uma história intelectual do neoliberalismo?

QS

O método foi um pouco incomum, pois me concentrei de forma muito específica nesse grupo de pensadores do movimento neoliberal e os usei como uma lente para observar tendências maiores.

Nunca tentei afirmar que havia uma conspiração de marionetistas em Genebra que coordenava as leis e políticas mundiais. Mas acredito que essa miopia sobre os intelectuais orgânicos do movimento neoliberal pode ser esclarecedora em um sentido. Não acho que devamos esperar que uma história intelectual substitua todas as outras formas de análise, mas ela pode ajudar a oferecer uma perspectiva.

No entanto, coisas como o atual projeto de destruição do sistema comercial mundial, o desmantelamento do Estado federal, o ataque às instituições e à ecologia da pesquisa e desenvolvimento nos Estados Unidos, a autoradicalização das elites do Vale do Silício e sua aliança com nativistas não se explicam por simples incentivos estruturais. Nem são simplesmente a loucura encarnada. Há uma coerência intelectual muito estranha, mas que ser mapeada.

Depois disso, o que se faz a respeito? Não sei, mas acho que ajuda começar a entender as coisas.

BS

Vamos ao livro propriamente dito. Você poderia me contar mais sobre o que chama de “novo fusionismo” — isto é, a guinada neoliberal para a natureza e a ciência como forma de neutralizar o impulso “igualitário” por trás dos movimentos por justiça social nos anos 1990? E por que esse é um ponto de partida importante para entender a ideologia da extrema direita hoje?

QS

Bem, há uma maneira tradicional de interpretar a direita estadunidense chamada fusionismo, que argumenta que foi a reconciliação dos tradicionalistas cristãos com os libertários defensores do livre mercado na década de 1950 que deu ao movimento conservador dos EUA sua forma e aparência específicas.

“Coisas como o atual projeto de destruição do sistema comercial mundial não se explicam por simples incentivos estruturais. Ele tem uma coerência intelectual muito estranha, mas que ser mapeada.”

O que notei foi que, a partir da década de 1970, mas com uma aceleração significativa nas décadas de 1980 e 1990, a discussão dentro dos círculos neoliberais estava retornando cada vez mais às ideias tanto das ciências exatas, como da biologia, quanto das ciências sociais e das ideias da psicologia cognitiva, psicologia evolucionista e sociobiologia. Essas pessoas discutiam como poderiam usar a ciência para sustentar os argumentos neoliberais.

Na década de 1990, o sucesso de um livro como The Bell Curve” [A Curva do Sino] — escrito por um psicólogo de Harvard, membro de um think tank libertário, e que permaneceu na lista de mais vendidos do New York Times por quase um ano — pareceu-me um ponto de inflexão. Se você quisesse defender a ideia para um público maior e talvez aproximar a opinião pública da sua posição, fazia sentido não usar mais a linguagem de Deus e Jesus, mas sim a do DNA e da evolução.

Após a ascensão da chamada alt-right em 2016, as pessoas ficaram muito confusas com o que entendiam como o retorno da ciência racial — havia a ideia de que, após o Terceiro Reich, ninguém levaria a sério a ideia de uma hierarquia científica dos humanos novamente. Mas o que meu livro mostra é que a ciência racial continuou nas sombras até ganhar novo destaque nas décadas de 1990 e 2000, com a ascensão do prestígio da genética, incluindo o Projeto Genoma Humano, e da neurociência — a ideia de que a química cerebral determina o comportamento e que a verdade dos humanos estava inscrita em seus corpos e genes.

BS

O livro gira em torno de certas figuras e temas. É claro que você fala sobre Friedrich Hayek e Ludwig von Mises e como as diferentes posições que eles assumiram em relação ao motivo pelo qual certas populações são mais adeptas ao capitalismo de mercado do que outras — e se isso é algo cultural ou uma diferença mais profunda e talvez tenha a ver com essa constituição genética — foram adotadas por libertários e conservadores estadunidenses. Outra figura que eu definiria como fundamental, que quase atua como um ponto médio entre os austríacos e seus descendentes bastardos, é Murray Rothbard, o pai do anarcocapitalismo.

Se esta é uma narrativa com personagens e temas, como isso se desenrola no livro? Qual é o arco da história que você está contando?

QS

Acho que o ponto de partida é contraintuitivo e me surpreendeu um pouco quando o encontrei. E foi a sensação, por parte dos intelectuais neoliberais, de que não haviam realmente vencido a Guerra Fria.

Acho que minha suposição era de triunfalismo e uma sensação de vitória após a queda da União Soviética. Mas o fato de que, na semana da queda do Muro de Berlim, eles já estivessem falando sobre novos inimigos — inimigos que haviam se escondido de certas maneiras ou se transformado de maneiras que eram ilusórias — foi o início da confusão. Porque, uma vez que você aceita a ideia de que o marxismo e o socialismo sobreviveram e, ainda assim, mudaram de cara, então qualquer coisa pode ser marxismo e socialismo.

Acredito que é assim que podemos entender a fixação da direita em coisas como o que eles chamam de “marxismo cultural” ou “ideologia de gênero” como essencialmente o novo inimigo da humanidade. Como o adversário muda continuamente de forma, isso os torna abertos a infinitas reinterpretações. Há uma qualidade paranoica no termo. E a paranoia não tem limites, como mostro no livro.

Portanto, creio que o arco narrativo advém de um sentimento por parte dos libertários, e frequentemente dos libertários racistas, de que podem conter o inimigo de novas maneiras, prendendo-o a hierarquias de inteligência ou utilizando as descobertas mais recentes da genética. Mas, ao final do livro, com um capítulo sobre os “fanáticos por ouro” e a obsessão da extrema direita por ouro, há quase uma sensação de desespero ou rendição ao inevitável, uma incapacidade de conter os inimigos e a ideia de um colapso iminente e de um apocalipse inevitável.

Acredito que muito disso esteja por trás da energia selvagem e caótica da política nos últimos anos — algo que tento capturar na conclusão, falando sobre a figura de Javier Milei. Algo parecido poderia ser dito também de Elon Musk, embora ele não tivesse realmente enlouquecido quando terminei este livro. O que reconheço é uma espécie de desespero e uma espécie de disposição descontrolada de buscar soluções radicais em tempos de grande perigo. E, como descrevi no último capítulo, muitas vezes a técnica retórica do fanático por ouro é prever um apocalipse iminente e, em seguida, imediatamente vender a você o único meio disponível para protegê-lo do pior.

Acho que esse aceleracionismo está visível agora na extrema direita, certamente nos Estados Unidos. Então, a questão de quem vem depois desses desgraçados é bem sensível.

BS

Com certeza. Gostaria de retornar a este assunto. Mas vamos voltar de novo um pouco. Você acabou de falar sobre um dos “três pontos difíceis” que identifica como obsessões ou mantras desta nova extrema direita — a saber, sua obsessão com o ouro como “dinheiro forte”, em oposição ao dinheiro fiduciário volátil e insubstancial. Poderia me falar mais sobre os outros dois termos da trindade que você identifica, a saber, “natureza humana intrínseca” e “fronteiras rígidas”?

QS

Sim. Acho que a metáfora que Murray Rothbard usa no início da década de 1970 é útil, quando ele fala sobre a “rocha da biologia” que impede as fantasias igualitárias.

Portanto, creio que precisamos entender todo o livro como descrevendo uma reação — não uma reação contra a globalização neoliberal, mas uma reação contra os movimentos sociais da década de 1960 e a tentativa de retificar desigualdades historicamente arraigadas de raça, gênero e geografia global. O apelo à biologia foi retoricamente útil porque sugeriu que havia algo além da manipulação humana que impedia os esforços sociais de transformação. Da mesma forma, a ideia de que diferentes capacidades e talentos eram intrínsecos de diferentes maneiras às populações tornaria quixotescos e impossíveis os esforços de reforma social que surgiram na década de 1960.

Portanto, essa ideia arraigada imediatamente põe fim a grande parte do reformismo da segunda metade do século XX. Se observarmos as operações do Departamento de Eficiência Governamental (DOGE) e do governo dos EUA neste momento, veremos que isso está sendo transformado em um programa político em que todas as medidas destinadas a retificar desigualdades históricas são perseguidas e finalizadas.

“Mesmo depois da Segunda Guerra Mundial, a ciência racial continuou nas sombras até ganhar nova credibilidade nas décadas de 1990 e 2000, com a ascensão do prestígio da genética e da neurociência.”

O aspecto das fronteiras rígidas emerge disso, porque os debates sobre imigração são frequentemente enquadrados como debates sobre coesão comunitária e social e a ameaça à estabilidade e segurança internas. E o que mostro no livro é que, se pensarmos nas populações como tendo capacidades inatas para a atividade econômica, também podemos criar um novo regime de imigração que permita a entrada de algumas populações porque as consideramos mebros mais eficazes do mercado, enquanto mantém outras fora porque as consideramos parasitas e dependentes inevitáveis ​​do bem-estar social.

Agora, essas duas coisas podem funcionar juntas sem a crença em moeda forte ou a necessidade de desmantelar o sistema monetário fiduciário e retornar às moedas lastreadas em metais preciosos. Mas nas formas mais extremas do libertarianismo de direita, as três andam juntas. A crença de que a ciência e a natureza ditam a ordem se estende também aos meios de armazenar valor e trocar mercadorias — e o dinheiro também está sujeito a essa cientificação.

BS

Acho que o ápice disso é o que no livro você chama de “QI-centrismo”, a ideia de que é possível ter uma métrica em torno da qual se deve organizar toda a sociedade e que categoriza as pessoas em hierarquias rígidas. No livro, você usa o neologismo “neurocastas” para ilustrar isso.

QS

Acredito que isso ajude a dar sentido à aliança, de outra forma improvável, entre tradicionalistas de direita e tecnolibertários do Vale do Silício. Pode reforçar um impulso em direção à segregação ou à reprodução da supremacia branca. Mas, para o Vale do Silício, acredito que o QI opera de forma um pouco diferente e oferece a perspectiva de certas formas de engenharia social e da seleção de populações de acordo com seu melhor emprego produtivo.

Acredito que, como acontece com muitas coisas da extrema direita hoje em dia, isso funciona não porque tenha um objetivo em comum, mas porque há certas linguagens e ideias que podem unir muitos objetivos e imaginários diferentes sobre o futuro.

BS

Como você disse anteriormente, seu livro não chega ao segundo mandato de Trump. Em muitos aspectos, porém, este último parece a justificação ou o ponto final da “longa marcha através das instituições” dos novos fusionistas. Do papel descomunal de Elon Musk como “rei empreendedor” à implementação do DOGE, à eliminação do DEI e de qualquer manifestação do “vírus woke” e do “coletivismo” em ação, e à detenção e deportação ilegais de estudantes e migrantes, Trump 2.0 parece a mistura de libertarianismo extremo e autoritarismo que você descreve no livro. Até que ponto você acha que essa afirmação é válida?

QS

Acredito que a forma como o governo Trump está se desenrolando desta segunda vez apresenta algumas diferenças bastante sérias, na verdade, em relação à ideologia que apresento no livro. Eu diria que a aspiração de figuras do Vale do Silício como Thiel, Marc Andreessen e Musk seria mais uma administração “neofusionista” que ainda busca os imperativos capitalistas de eficiência e produtividade, enquanto atropela alegremente quaisquer ideias de igualdade humana ou redistribuição.

No final de 2024, houve um debate entre Musk e Vivek Ramaswamy com Steve Bannon sobre imigração, onde Bannon defendia que deveria haver uma política de empregos estadunidenses para estadunidenses, e Musk e Ramaswamy afirmavam que certos tipos de empregos em tecnologia exigiam trabalhadores altamente qualificados. Assim, poderíamos realizar deportações em massa em nossas fronteiras, selecionando essa classe de trabalhadores móveis de todo o mundo para se conectarem às suas empresas no Vale do Silício. Isso, para mim, foi um bom exemplo do “novo fusionismo” em ação.

Isso não queria simplesmente dizer que existe um princípio que se aplica a todos os humanos, mas que devemos diferenciar entre indivíduos de maior valor ou menor valor. Acho que a política de Trump sobre o gold card, que permitiria às pessoas comprarem cidadania, seria outra expressão perfeita do tipo de coisa sobre a qual escrevo no livro — fundir cidadania com valor monetário de maneiras que seriam completamente inimagináveis para fascistas à moda antiga. Não se pode imaginar o Terceiro Reich oferecendo essa opção — sabe, um milhão de marcos e você se torna um ariano.

BS

A ideia da nação como um mercado onde você compra sua cidadania por meio de seu talento inato ou, se isso não for suficiente, seu patrimônio líquido…

QS

Ao mesmo tempo — talvez seja apenas o viés da última semana — a política comercial que está sendo implementada e a atitude em relação à anexação de países e territórios adjacentes, como Groenlândia, Canadá e Panamá, estão em total descompasso, de forma fundamental, com qualquer genealogia do movimento neoliberal. Porque se há algo em que o movimento neoliberal se baseia, é que os Estados devem ser subordinados aos mercados em algum nível, e o poder econômico deve prevalecer sobre o poder estatal. Os Estados são muito importantes, essenciais, mas são servos do capital, e acredito que ultrapassar os limites da soberania nacional de forma tão direta é praticar o tipo de política contra a qual os neoliberais originais se formaram na década de 1930.

BS

Ao contrário de seus livros anteriores, “Bastardos” de Hayek, é bastante centrado nos EUA. É verdade que, no capítulo sobre os “fanáticos por ouro” e pessoas que fetichizam o ouro como investimento e um retorno ao padrão-ouro, você fala longamente sobre a AfD ter surgido como uma reação conservadora-libertária contra a União Europeia e o euro. Na conclusão do livro, você cita figuras importantes como Milei, Jair Bolsonaro, Nayib Bukele e Nigel Farage como reafirmações dessa agenda de extrema direita vagamente definida. No entanto, na maior parte, você se concentra em um punhado de jornalistas, acadêmicos e think tanks estadunidenses.

Você vê essa ideologia se infiltrando em outros lugares? Por exemplo, na Europa? Estou pensando nos Fratelli d’Italia, de Giorgia Meloni, ou no Rassemblement National, de Marine Le Pen — partidos pós-fascistas que, pelo menos em teoria, ovacionam a nação e, em sua constituição ideológica, adotam um mínimo de dirigismo e proteção social, mais do que o livre mercado e a ciência como alicerce da desigualdade?

QS

Acredito que, de forma mais branda, Viktor Orbán continua sendo um líder muito importante dessa mutação da direita pós-Guerra Fria. Ele é alguém que, na Conferência de Ação Política Conservadora e em outros lugares, articulou com muita clareza a ideia de que o marxismo não desapareceu. Ele simplesmente se escondeu e se transformou, e por isso ainda precisa ser erradicado, porque a Guerra Fria, de certa forma, nunca terminou. Mas digo “mais branda” porque ele também combina sua política antiesquerda com uma visão de bem-estar social. Uma política pró-natalidade muito forte, por exemplo, e alguma atenção ao que chamam de chauvinismo assistencialista.

“Há um esforço conjunto nos Estados Unidos para tornar impossível a prática acadêmica como a concebemos. É, na verdade, um esforço para desfinanciar o ensino superior.”

E acho que isso afeta mais as outras facções da direita pós-fascista, especialmente na Europa. Sempre achei que Marine Le Pen, e até mesmo Matteo Salvini e Meloni, representam uma vertente ligeiramente diferente da extrema direita, que frequentemente se dispõe a ser antiausteridade, a brincar com ideias de pagamentos diretos em dinheiro e certos tipos de proteção social, ao mesmo tempo em que joga o jogo da competitividade e da hospitalidade ao capital e às alianças militares. Portanto, eu não diria que o que descrevo no livro retrata perfeitamente a extrema direita em todos os países.

Acho que há uma grande diferença entre os conservadores que lideraram o Brexit e a AfD e a extrema direita belga. Então, eu os colocaria nesse espectro, mas o livro não tenta uma explicação única para tudo o que estamos vendo.

BS

Em seu recente ensaio sobre Elon Musk para o New Statesman, você escreve: “Tentar entender as regras caleidoscópicas do jogo que Musk está jogando […] tornou-se algo como um dever cívico”. É assim que você vê seu trabalho como “historiador de más ideias”? Você considera seu trabalho inerentemente político ou está apenas tentando mapear as ideias desses extremistas de direita em nome do conhecimento acadêmico?

QS

Acredito que o conhecimento acadêmico requer um ecossistema que o sustente em um nível básico: universidades, financiamento para estudantes de pós-graduação, salas de aula, bibliotecas. Um dos aspectos realmente assustadores do momento atual é a incerta suposição de que essas coisas persistirão a médio prazo. Há um esforço conjunto nos Estados Unidos para tornar impossível a prática do conhecimento acadêmico como a entendemos. É, na verdade, um esforço para desfinanciar o ensino superior.

Então, em períodos anteriores, quando podíamos contar com financiamento de pesquisa relativamente estável, grupos de estudantes de pós-graduação e empregos para esses estudantes após a formatura, acho que era possível imaginar uma espécie de espaço autônomo. No entanto, como a extrema direita politizou a existência das universidades, acredito que tudo o que se faz em uma universidade agora é, de fato, político.

Apresenta-se como um alvo potencial para eliminação ou como uma possível justificativa para um maior estrangulamento de recursos. Então, eu gostaria de imaginar que ainda estivéssemos em um espaço onde a pesquisa autônoma é possível, mas acho que essa liberdade desapareceu atualmente.

Portanto, a escolha de agir politicamente dentro da universidade não é algo que precisamos fazer. Ela nos foi imposta. Acho que nosso trabalho, por definição, agora faz parte de uma política contestada, então provavelmente é uma boa ideia começar a pensar dessa forma e lidar com as consequências que isso também traz.

Sobre os autores

é professor de História em Wellesley College, Massachusetts. O seu último livro se chama "Globalistas: O Fim do Império e o Nascimento do Neoliberalismo".

Bartolomeo Sala

é um escritor freelance e leitor de livros baseado em Londres. Sua escrita apareceu em FriezeVittles, bem como no Brooklyn Rail.

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