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segunda-feira, 19 de outubro de 2009

DIÁRIO DE CARLOS - 5

O teu funeral distinguiu-te como uma figura pública. Foste acompanhada por senhoras e senhores importantes das artes, da política, da alta sociedade. Nem um zé ninguém, uma operária, a mulher da portaria, esteve lá. Eras uma mulher de sucesso. O maior inútil ali presente terei sido eu, para aquele mundo bem sucedido. Não pintavas, mas vendias. Não fotografavas, mas vendias. Com que charme e persuasão! Em vinte anos fizeste uma carreira notável. Ignorava a tua conta bancária, mas sabia-a choruda, bastava ver-te no regresso das tuas compras, apenas tuas, apenas para a tua pessoa, e a cabeleireira, as massagens, o clube, as viagens. No velório não olhei para ti sequer uma vez, não por crueldade, mas por compaixão. Por mim talvez. Aquilo que vira em ti durante meses de agonia chegara para meu sofrimento. Descobriste com alguma surpresa o quanto sofri por ti. Chegaste a julgar que eu te amava muito, perguntaste, eu respondo que sim, mas menti. Não, não te amava, há anos que não te amava já. Nunca soube ao certo se as amantes que tive te provocaram o desamor que os teus amantes me provocaram a mim. Se o resultado fosse equivalente porque não me deixaste? Não precisavas de mim pela fortuna, eras tu que a acumulavas; nem pelas viagens, eras tu que as fazias e raramente comigo, nem pelos amigos, a maior parte eram teus, e os meus não te interessaram nunca, todos eles tinham defeitos para ti, frequentemente os mesmos: uns derrotados da vida (ultimamente era assim que os classificavas a quase todos), uns boémios e umas galdérias. Gabavas os teus pintores, os teus fotógrafos, os teus críticos de arte, os teus professores universitários, os teus empresários. Esses sim, representavam o alvo da tua admiração e da tua cobiça, por aquilo que criavam uns, por aquilo que representavam, outros. Foste para a cama com quantos? Talvez não muitos. Às vezes, para me irritares, insinuavas que sim, com fulano e beltrano, mas sempre desconfiei que fosse treta. No fundo eras uma mulher frígida, ou quase, ou passaste a sê-lo. Sedutora, mas indiferente aos fogos da paixão. Por ventura eles julgavam-te fácil, ardente, mas enganaram-se. Eras um fogo para ser visto, não para aqueceres.

Não tenho saudades de ti, tenho e não tenho. Amei-te não te amei. Tu foste a floresta onde me perdi, o predador e eu a presa, eu o predador, tu a presa, tu foste as lágrimas e o riso, a alvorada e o anoitecer, o rumo e o rumor, a pegada na areia, os orgasmos ao espelho, as fantasias e os temores, o pequeno-almoço na cama, os piqueniques de burgueses, a torreira dos Algarves, os cabelos na almofada, os vómitos na sanita, os sonos despertos à tua cabeceira, a lividez da lua na tua face, os amantes que tiveste e não tiveste, a foice da morte.

1 comentário:

Meg disse...

Estou sem fôlego.
Volto a perguntar-te... quando publicas?
Por que não publicaste ainda?

Um abraço

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