DIÁRIO DE MARTA 3
Fiquei boquiaberta. A conversa com a Carla deixou-me perturbadíssima. A Carla é uma amiga minha, muito jovem, não é, talvez, ainda uma amiga, conhecia-a há muito pouco tempo, viajamos no mesmo autocarro para Lisboa, não gosto de conduzir, prefiro o transporte público, vou a Lisboa uma, duas vezes, quando calha, faço isso como uma fuga de mim própria e dos outros, desta cidade que cresce mas é pequena, onde proliferam os medíocres e os maledicentes, a inveja, vou à capital espairecer, os bons espectáculos de teatro ou dança distraem-me, embora por vezes chore com os dramas quando me tocam nas feridas, no fracasso do meu casamento, na morte da Gisela. Da Carla sei que trabalha e estuda em Lisboa, é simpática e pareceu-me tímida, a diferença de idades em vez de nos afastar aproximou-nos, provavelmente uma simpatia e confiança à primeira vista daquelas que ninguém sabe explicar. Ontem fomos as duas assistir ao espectáculo de dança da Olga Roriz. Temos essa afinidade pela dança, bem assim como pelo teatro. Danço sozinha, em casa, quantas vezes! Com o meu ex-marido íamos dançar frequentemente. A Carla é mais freguesa das discotecas, naturalmente para uma jovem, do que eu. Teatro experimentei-o há muito tempo, todavia ficou-me esse «bichinho» que nunca mais nos abandona. Fomos então as duas deliciar-nos com essa «Nortada» estupenda da Olga, e ficámos na conversa depois num barzinho confortável. É certo que as mulheres apreciam falar, conversar, sobretudo, umas com as outras (nos homens observo a mesma atitude, mas não sei se somos realmente diferentes), e as conversas são como as cerejas que se tiram do cabaz, contou-me mais pormenores, fui eu que puxei o assunto talvez para evitar que a Gisela viesse ao tema, sobre a empresa onde trabalha em part-time, uma empresa de arquitectos, é nessa actividade que ela está quase formada, desenham casas evidentemente, e pontes, etc., o administrador é um tal Vasconcelos, irritadiço e chato para os arquitectos subordinados, para ela nem tanto, anda sempre a pegar-se com um que se chama Carlos, um indivíduo do qual a Carla hesitou em falar, denunciou uma tão curiosa hesitação, baixando os olhos quando o referiu, que me obrigou a perguntar mais sobre ele. Prendeu-se-lhe a língua e deixou no ar apenas uma vaga insinuação, entre o elogio e um estranho rancor, estranho nela, que me parecia isenta em relação a tais sentimentos…Não insisti. Mudou de assunto, algo constrangida, e passou a convidar-me a ir visitar uma galeria de arte, vai lá com o namorado para a semana, não sou tão apreciadora ou conhecedora de artes plásticas como ela julga que sou, mas aceitei, vi nela interesse em apresentar-me o parceiro (essa súbita mudança de tema, em que passou do tal Carlos para o namorado pareceu-me sintomática). Foi então que a conversa ganhou um rumo inesperado: disse que o namorado conhecia o dono da galeria, faz-lhe uns fretes para ganhar uns cobres porque também anda a terminar os estudos, o tipo da galeria chama-se Bártolo…E aí, a minha curiosidade acendeu-se: como é esse tipo? Descreveu-me um indivíduo mais baixo do que alto, quase calvo, o resto do cabelo cortado à escovinha, vestindo-se de maneira exótica, que tanto parecia gay como não…Um corisco caiu-me no alto da cabeça como um martelo! Esse tipo conheço-o! Viu-o duas vezes com a minha mãe numa geladaria de Lisboa, bem conhecida aliás. Da segunda vez vi-os de mãos dadas. Assim mesmo. Nunca falei à minha mãe sobre isto, achei aquilo estúpido e ridículo. Mas à Carla perguntei de rompante se sabia algo sobre a vida pessoal desse tal Bártolo, se era casado, gay, se tinha uma amante. A Carla não sabia ao certo, o namorado contara qualquer coisa sobre isso, dele ter uma amante, uma senhora casada que o visitava na galeria, contudo não sabia descrevê-la, ela nunca a vira.
Desta conversa restam-me uma incerteza e uma certeza: a primeira é que o tal Bártolo lhe fora apresentado pelo arquitecto Carlos, com quem ela tivera, seguramente, uma relação íntima; a segunda, é que a minha mãe, a própria, tem um amante! Incrível. E, todavia, nada mais verdadeiro. A minha mãe. Começava a compreender as saídas frequentes dela e os amuos do meu pai quando o encontrava sozinho no apartamento, fechado como um túmulo, com o copo de uísque na mão. O uísque que não largava há anos e que contribuiu e muito para a catástrofe do seu casamento.
Sem comentários:
Enviar um comentário