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domingo, 31 de janeiro de 2010

PABLO NERUDA

A Grande Alegria


A sombra que indaguei hoje não me pertence.
Hoje tenho a alegria duradoura de um mastro,
a herança dos bosques, o vento dos caminhos
e um dia decidido sob a luz terrestre.

Não escrevo para que outros livros me aprisionem
nem para encarniçados aprendizes de lírio,
mas para simples habitantes que pedem
água e lua, elementos da ordem imutável,
escolas, pão e vinho, guitarras, ferramentas.

Escrevo para o povo, mesmo que ele não possa
ler minha poesia com seus olhos rurais.
Virá o instante em que uma linha, o ar
que alterou minha vida tocará seus ouvidos,
e então o camponês levantará os olhos,
o mineiro sorrirá partindo pedras,
o ferreiro limpará a fronte,
o pescador verá melhor o brilho
dum peixe que a palpitar lhe queima as mãos,
o mecânico, limpo, recém-lavado, cheio
de aroma de sabão, olhará meus poemas,
e dirão talvez:«Foi um nosso camarada».

Isso é bastante; é a coroa que busco.

Quero que à saída das fábricas e minas
estejam os meus poemas agarrados à terra,
ao espaço, à vitória do homem oprimido.
Quero que um jovem encontre na dureza
que constrói, com lentidão e com metais,
como um cofre, ao abri-la, face a face, a vida,
e mergulhando a alma toque as rajadas que fizeram
minha alegria, na altura tempestuosa.

República

Comemoração da implantação da República: poucos ou nenhuns se lembram nos discursos oficiais de ensinar quem ainda não se sabe, ou já não se recorda, que a República caíu às mãos de um complot de militares, afastados depressa os democratas, que entregou o poder executivo e mais tarde absoluto, a um indivíduo depois conhecido como o «Botas», que assentou a ditadura terrorista mais longa da Europa. A figura mais tenebrosa da nossa História de oito séculos.

sábado, 30 de janeiro de 2010

Ignorância

Uma árvore é só uma árvore.
Quando vejo nuvens no céu digo: olha, nuvens no céu!
Quando me falam de Humanidade, não sei do que me falam.
Quando me falam de Ética, não sei de que falam.
Quando me dizem: Todo o Homem possui direitos!
procuro nos bolsos se tenho alguma coisa.

Sou um indivíduo simples
e ignorante.
Sempre que falam no Universal
olho o céu,
a árvore,
a pedra no caminho.

Que sábios são aqueles
que falam no geral.

Eu somente possuo uns olhos
uma boca
uns bolsos vazios.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Morreu J.D. SALINGER

Salinger morreu esta semana aos 91 anos. Quem leu Uma Agulha no Palheiro (Livros do Brasil) nunca mais o esqueceu, como sucedeu com tantos da minha geração, apesar dele mesmo se ter remetido ao mais completo e enigmático isolamento. Publicou A Catcher in the Rye em 1951 (À Espera no Centeio (Difel), Nove Contos (Bertrand) (nove histórias editadas em entre 1948 e 1953), Fanny e Zooey, em 1961 ( Relógio d'Água, 2002), Carpinteiros, Levantem Alto o Pau de Fileira (Quetzal, 1991). A fuga de Holden Caufield do colégio e as aventuras em Nova Iorque durante poucos dias constituem ainda um retrato vivaz da iniciação à vida de um adolescente, de todos, apetece dizer, os adolescentes. Para estes, sobretudo, uma novela imperdível. Lê-se de um fôlego o Carpinteiros, Levantem Alto o Pau de Fileira. A minha homenagem é comprar e ler Franny e Zooey.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Na Hora Da Nossa Morte (novela, cont.)


Diário de Carlos – 13



Sabias os anos, os meses e os anos em que estávamos casados. Nunca percebi se na verdade me amaste sempre, se deixaste de me amar. Se é verdadeira a segunda hipótese, se não entendi nunca a força e duração do teu afecto, menos sei quando se quebrou e porquê. Quando a tua doença se revelou, fatal, inexorável, o cancro no útero, definitivo, implacável, não desprezavas um minuto sequer da minha companhia. Porém, anos a fio, meses, dias, noites, não sentia a tua presença. Reacção natural à minha desatenção, à minha indiferença? Hoje compreendo-me melhor. E não gosto do que vejo. Não sei que defeito, que tara é a minha que me fez assim como sou. Ou como fui. Amava quando perdia o amor do outro. Amei-te quando te perdi. E, mesmo assim, não to demonstrei. Traí-te vezes sem conta, traíste-me por mera vingança? Se foram paixões dissimulaste-as bem. Eu mal dissimulava as minhas. Lias-me nos olhos o brilho vivaz de uma nova paixão. Seguiste-me os passos, vigiavas os meus encontros, exigiste na vez primeira que me apanhaste em flagrante que confessasse à amante que não a amava e que tudo não passava de um flirt, ameaçaste-me com o divórcio, um divórcio litigioso, acedi, porque receei perder-te e da pior maneira e admirei – o meu egoísmo admirou – o teu amor resistente e apaixonado. Poucos anos haveriam de passar até me traíres tu. Depois disso foi a caminhada juntos e separados, em cada encruzilhada ia cada um para o seu lado. Não sei se me arrependo, se me culpo. Cheguei a uma idade em que não se pode mentir a si próprio. Falhei no amor porque nunca lhe fui leal (devia dizer: vos, a vós), atento, obediente, fiel até ao sacrifício. Não, nunca sacrifiquei as minhas escolhas, os meus gostos, as minhas paixões, a um só amor, a ti mesma. Aos flirts, como lhe chamavas, ainda menos. Somente depois da tua morte fui fiel à Carla, a mais improvável das amantes duradoiras. Caso extraordinário: não o fui nas paixões assolapadas por mulheres que me poderiam ter oferecido um amor seguro, domesticado, fui-o por uma jovem mulher que nada me poderia oferecer e nada me ofereceu! A vida é um enigma. Se fosse filósofo como o velho prof. Ramos diria que não soube decifrar o oráculo da Esfinge de Tebas. Humano, demasiado humano. Pergunto-me se não sou um Édipo – um pequeno Édipo – com um destino traçado. Uma tara herdada. Não tenho filhos. Não a transmiti.


Não lavo as mãos convulsivamente. Verifico duas, três vezes, se a torneira do gás está fechada. Tomo metade de um calmante todas as noites. Assusto-me quando o coração ameaça uma arritmia. Desperto pela manhã com más recordações. Quando uma insónia me assalta em plena madrugada, no silêncio tenebroso da solidão, é a ti que eu vejo ao meu lado. Morta.

Fotografias de Auschwitz


Há 65 anos os exércitos da União Soviética libertaram os prisioneiros sobreviventes do campo de extermínio de Auschwitz, na Polónia, onde pereceram quatro milhões de inocentes. Visitei-o. Para nunca esquecer a barbárie nazi e outras barbáries.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

As doutrinas filosóficas materialistas antigas (Índia)


A filosofia não nasceu na Grécia Antiga, a índia e a China praticaram-na muito antes. Devemos considerar a Grécia como berço da filosofia ocidental, mundial, não, de modo algum. É certo que a filosofia grega (que começou nas colónias formadas pelos gregos nas ilhas e no continente do que é hoje o Médio Oriente) foi adquirindo pelo intercâmbio entre as cidades-estado traços que a distinguiram e a conduziram às influentes escolas epicurista, socrático-platónica, estoicista, aristotélica, etc., influentes em todo o Mediterrâneo e, sobretudo, dominaram o pensamento da antiga Europa. Certo é também que a filosofia ocidental (ou europeia) veio a ligar-se ao desenvolvimento do racionalismo e do espírito científico, base do experimentalismo técnico-industrial que passou a dominar o mundo. Contudo, não devemos ignorar que outras civilizações produziram e exportaram a sua própria filosofia, a qual, de resto, se cruzou com a filosofia ocidental em diversas épocas, com mediações e influências recíprocas.


A índia é um dos primeiros territórios onde aparece e se desenvolve a filosofia, desde os fins do II milénio e inícios do I milénio A.C. Os seus mais importantes monumentos literários, os Vedas («saber») e os Upanishadas, escritos depois em forma de contos e diálogos sobre temas filosóficos, atestam o profundo interesse que os temas filosóficos suscitavam: fundamentação de doutrinas idealistas religiosas, mas também controvérsias sobre o materialismo filosófico. Os vedas são compilações de hinos e preces onde se trabalham com conceitos tipicamente filosóficos, como o que é o ser, a primeira substância, espaço, tempo, causa, etc.


Tal como viria a suceder com a primitiva filosofia grega, as explicações que os mais filósofos hindus davam sobre as coisas observadas e pensadas, prendiam-se com a formulação de princípios naturais, fossem eles a água ou o fogo, o ar ou a luz. Estas explicações «naturalistas» demonstram a existência de uma corrente materialista de pensamento (tal como viria a verificar-se, por influência directa ou indirecta, em Tales de Mileto, Empédocles, e outros filósofos gregos.


Na sua obra Filosofia da Índia, o doutor S. Radhakrishnan (1956), que publicou na Índia uma História da Filosofia ( 2 volumes , 1952-1953) demonstra que o materialismo já se encontra como linha filosófica antes do período budista (o budismo surge no século VI A.C.) repartido em quatro escolas, sendo que a principal diferença entre elas desenrolava-se à volta da questão da natureza da alma, mas coincidindo na afirmação de que a alma é exclusivamente um fenómeno natural. Em suma: o materialismo antigo hindu, embora diverso, sustentava que tudo que existe no mundo é composto de matéria e de mudança. A explicação por meio dos quatro princípios naturais (terra, fogo, água e ar) era comum; algumas destas escolas (Charvaka ou Lokayata; Brihapasti o seu fundador) defendiam com argumentação tipicamente filosófica a não existência de deuses ou de um deus, da alma e da transmigração das almas (que muitos ocidentais julgam erradamente a única asserção do pensamento hindu). Segundo estas escolas materialistas do pensamento hindu a percepção é a única fonte segura do conhecimento, pois que é por meio dos nossos sentidos que conhecemos a existência dos quatro elementos materiais. A diversidade das coisas é gerada pela própria matéria sem outra intervenção «fora dela» que não ela mesma. Matéria, dita prakriti ( escola de Sankhya, séc. VII A.C.), dotada de movimento, espaço e tempo. Na Índia Antiga o materialismo atomista existiu, tal como existiu na Grécia Antiga. Nas seis escolas Nyaya e Vaiseshika podemos verificar essa doutrina segundo a qual os átomos eternos e imutáveis de terra, água, fogo e ar, são os elementos primários. Materialismo ingénuo, com certeza, porém tão ingénuo como o foi na Grécia Antiga. E, todavia, admiráveis ambos.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

UTOPIAS E UTOPISTAS


Autores utópicos


A viagem a uma ilha - UTOPIA- que o livro de Tomás More (1516) nos relata teve um êxito que chegou aos nossos dias. Depois dele vários autores lhe seguiram os passos: Tommaso Campanella (1568-1639) publica A Cidade do Sol; Savinien Cyrano de Bergerac, a História Cómica dos Estados e Impérios da Lua (1657); Nova Atlândida, de Francis Bacon, (dispomos delas em português); de Samuel Hartlib, La Description du Fameux Royaume de Macaria, de 1641; Oceana, de James Harrington, 1656 (que servirá de inspiração ao abade Sieyès para redigir o seu projecto de Constituição, em 1800, em plena Revolução); Fontenelle publica a sua Relation de l’Île de Bornéo, em 1688, e Fénelon, em 1699, publica Aventures de Télémaque. No século XVIII, lemos o Testamento e as Memórias, de Jean Meslier, um pároco que abdicou da Igreja e de Deus; O Verdadeiro Sistema, do monge Dom Deschamps, que fez outro tanto (de ambos as edições são póstumas), imaginando uma sociedade exclusivamente camponesa (tal como Meslier) e absolutamente igualitária em que tudo é comum; as Viagens de Guliver (1726), de J. Swift, obra celebérrima, pouco optimista, dura crítica dos europeus; A Fábula das Abelhas, de Mandeville, editada em 17º5, apenas em 1723 atraiu a atenção, fábula igualmente pessimista; Cartas Persas (1721), de Montesquieu, em que relata os costumes dos Trogloditas (tal como as abelhas de Mandeville acabamos por ser nós todos); Morelly publica a «Basiliade» (1753) e o «Código da Natureza» (1755), a primeira obra é uma história utópica típica (dá-nos a conhecer um país de igualdade e felicidade completas), a segunda apresenta-se como um programa doutrinário e político de governo, retomando um género filosófico-literário que remonta a Platão, e teve grande influência nas facções de esquerda da Revolução Francesa, ainda neste século a obra inovadora de Mercier, o «Ano 2440», 1770 e 1786, que localiza a Cidade Da Igualdade não no passado ou no presente, mas no futuro longínquo (promissora para a literatura de ficção-científica do século XX).


No século XIX são de destacar os seguintes autores e obras: Goethe, «Wilhelm Meister», que influenciou o período florescente romântico e revolucionário; Robert Owen, que aplicou os seus princípios socialistas nas escolas de New-Lanark, com os operários das suas fábricas e funda a comunidade da New-Harmony, em Indiana, Estados Unidos. Saint-Simon (1760-1825), cujos escritos doutrinários converterão em discípulos personagens importantes da França: Jean-Baptiste Say (figura célebre da Revolução Francesa), o grande sábio Cuvier, o historiador Auguste Thierry, o inventor do termo «Sociologia», Auguste Comte. Karl Marx não fica imune à influência dele. O «Socialismo» é uma criação saint-simoniana, tanto o termo como algumas das suas finalidades. O «Profeta» Saint-Simon (oriundo da aristocracia, era conde) é a figura incontornável da difusão dos ideais socialistas, típico utópico que apelava aos industriais para se «suicidarem» como classe social, ou, noutros termos, para impulsionarem eles mesmos as reformas sociais.

O melhor livro do melhor especialista português na vida e obra de Thomas More


A «ILHA DA UTOPIA» de THOMAS MORE


UTOPIA E UTOPIAS - 1





Em 1516 Thomas More (1477/78-1535) publica De optimo republicae statu deque nova ínsula Utopia, criando um novo género literário e político: como realizar na terra a cidade ideal, isto é, uma sociedade igualitária, justa e feliz. Prefixo privativo ou, e topos, lugar; outopos, o não-lugar, parte nenhuma como indicava o primeiro título latino antes da publicação, Nusquama. O título completo é o seguinte: A nova forma de comunidade política e a nova ilha da Utopia. Um verdadeiro livro de oiro não menos salutar que agradável pelo muito célebre e muito eloquente THOMAS MORE cidadão e chanceler da ilustre cidade de Londres. Outopos, o não-lugar, pode ler-se também eutopos, o lugar da felicidade.


A exemplaridade deste livrinho reside nos dispositivos que impedem o dogmatismo: utiliza a dialéctica (paradoxos e contradições, até nos nomes), a ironia, a sátira, o humor. As utopias, portanto, transportam elas próprias a sua crítica, quando elas são boas, são dogmáticas quando não o fazem, e são ideológicas quando não querem ou são incapazes de fazê-lo. Referimo-nos particularmente aos textos escritos (romances de viagens, programas edificantes, etc.).


No sentido geral, como sonho racional acordado, a utopia é recorrente, universal e inevitável. Mas é histórica, ou seja, traduz anseios e os limites da sua época. É assim que surgem utopias camponesas, utopias industriais, utopias ecológicas, políticas, estéticas, etc.


Os filósofos e os artistas contribuem para forjar utopias fortes, tão racionais ou persuasivas quanto maior o seu talento e a capacidade para interpretar os sinais dos tempos. O termo aplica-se a estes casos, com rigor, embora se haja generalizado para os messianismos e milenarismos de cariz religioso, porém aqui erradamente. Um projecto racional utópico (normalmente filosófico) pode transformar-se numa força material, quando é popularizado sob a forma de ideologia e de propaganda. Não descartamos a possibilidade de determinadas utopias conterem ou promoverem elementos de cariz religioso.


No nosso tempo existem várias utopias, fortes e fracas. Podemos categorizar as correntes principais:


1. Utopias ecológicas- De modo geral criticam os males que associam às revoluções científicas e industriais; retomam antigos mitos de sociedades «naturais», camponesas; tendem a defender os culturalismos, ou seja, cada povo merece a cultura que tem; nesse sentido, todas são úteis. Tentam conciliar uma atitude conservadora (preservar o que ainda existe de «natural») com opções mais amigas do ambiente. Preocupações contemporâneas que atravessam os partidos políticos situados mais à esquerda do espectro político das democracias (sociais-democratas e comunistas) ou dão substância e corpo a novos partidos ( Os Verdes) na cena europeia. A corrente dita «holista» é uma utopia típica. Como também o é, segundo a nossa opinião, a corrente dita »New Age».


2. Utopias industriais e/ou científico-tecnológicas – Tendem a entrever nos progressos da Ciência possibilidades grandiosas e inesgotáveis de melhorias do género humano: maior liberdade individual ou colectiva, mais tempo livre, melhores costumes. Nestas existem variantes: umas são conservadoras, isto é, o que temos é bom, trata-se apenas de melhorar e regular ( as teorias neo-capitalistas do «fim da História», do «comunitarismo», da «Comunicação Universal» e das «sociedades em-rede», do «Governo Mundial»; outras, são reformistas: introduzir reformas nos sistemas económicos de produção e distribuição e nos sistemas políticos sem alterá-los no essencial; outras, são revolucionárias: substituir o sistema capitalista por um outro que finalmente igualize, liberte, distribua, e potencie as vantagens do desenvolvimento científico e industrial.






Nas utopias fracas encontram-se uma grande variedade, mas que se resumem ao seguinte: mitos de consumo, de saúde, de juventude, de viagens, sexuais, etc. Normalmente estão capturados pelo marketing, quando não são puramente seus produtos.











segunda-feira, 25 de janeiro de 2010


Octavio Paz

Certeza
Se é real a luz branca
desta lâmpada, real
a mão que escreve, são reais
os olhos que olham o escrito?

Duma palavra à outra
o que digo desvanece-se.
Sei que estou vivo
entre dois parênteses.

sábado, 23 de janeiro de 2010

ALEXANDRE O'NEIL





Impossível cantar-te

como cantei o amor adolescente

colorindo de ingenuidade

paisagens e figuras reduzindo-o

à mesma atmosfera rarefeita

do sonho sem percurso no real

Impossível tomar o íngreme caminho

da aventura mental

ou imaginar-te pelo fio estéril

da solitária imaginação



Tão-pouco desenhar-te como estrela

neste céu infame

dizer-te em linguagem de jornal

ou levar-te à emoção dos outros

pela voz contrafeita da poesia



Impossível



Impossível não tentar dizer-te

com as poucas palavras que nos ficam

da usura dos dias

do grotesco discurso que escutamos

proferimos

transidos de sonho no ramal do tempo

onde estamos como ervas

pedrinhas

coisas perfeitamente inúteis

pequenas conversas de ferrugem de musgo

queixas

questiúnculas

arrotos comoventes



CONSENSOS

Hoje há a moda dos «consensos». Diz-se que o pós-modernismo (alguns chamam de pós-modernidade, o que me parece errado) se caracteriza pela diversidade, multiplicidade (falam disso na estética, sobretudo). Não creio. Muita da diversidade é artificial e publicitária. Muita diversidade (ecológica, cultural, económica) foi e é esmagada pelo cilindo da neo-liberalização dos mercados. A mercadoria impera e tudo se transforma em mercadoria. Muita da diversidade de mercadorias é enganosa. Por imperativos económicos, o «gosto médio» predomina. Aprecio, evidentemente, os consensos, mas transparentes, justos, equitativos. Não o consenso do «comércio livre» (os acordos leoninos), o consenso da Carta de Lisboa, o consenso do Fundo Monetário Internacional, os consensos em Bruxelas que correspondem à maioria neo-liberal (a que re-elegeu o D. Barroso), o consenso sobre a precariedade do trabalho e que exlui do emprego um exército conveniente de trabalhadores. Na verdade, há consensos, mas impostos, ou porque se encosta à parede o adversário, ou porque se mente. Não há consenso sobre o efeito «estufa» - o aquecimento global- provocado pelas emissões de CO2, e ainda bem, porque não está provada a causa-efeito e existem sinais suspeitos de muita negociata. Apesar disso, fazer da cautela um princípio é bom. Há consenso sobre os efeitos devastadores que podem assumir a desflorestação, a desertificação, as monoculturas erradas, o desvio de correntes fluviais, a secagem de lagos, o esbanjamento da água e dos lençóis subterrâneos, a poluição por causa dos combustíveis sólidos, etc. Não há consenso sobre a legitimidade das guerras conduzidas pelos norte-americanos. Não há consenso sobre as causas da implosão dos regimes do Bloco de Leste. Não há consenso entre as potências porque os seus interesses opõem-se, e menos ainda por parte dos países mais pobres dominados pelas potências. Não há consenso entre o empresário que despede e o trabalhador que é despedido, entre o Governo que precariza e congela os salários e os funcionários do Estado.
A ambição das ditaduras é estabelecer o consenso unívoco. Ou seja, uma única voz.
Aprecio os consensos que resultam da luta entre adversários, em que ambas as partes cedem o suficiente. Aprecio especialmente aqueles consensos em que o patronato cede completamente perante a força dos trabalhadores.
Na verdade, o que há, e tem que haver, é a força, o poder das forças em presença. O que há são contardições.
A boa filosofia é aquela que não fecha os olhos a isso. Não é bom o filósofo que arranca os olhos para ver melhor.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Os meus livros


Idealistas e Materialistas

Materialismo e idealismo são noções filosóficas. Na definição filosófica os materialistas não equivalem a indivíduos que vivem e pensam exclusivamente em coisas materiais, consumistas, a quem desinteressa as coisas do espírito, da ética, da cultura; assim como os idealistas não significam aqueles que se guiam por sonhos, quimeras, utopias.
Em rigor os materialistas afirmam que é a vida que determina a consciência, os idealistas afirmam o contrário. Ambos prestam valor às ideias, mas os materialistas consideram que estas são uma função do cérebro e das relações sociais, enquanto os idealistas acreditam que possuimos uma «parte» espiritual que é independente do corpo natural. Os materialistas são «monistas», os idealistas são «dualistas».
Deste modo, alguns materialistas podem ser utopistas (acreditar na força e valor das utopias sociais, artísticas, etc.) e outros recusam a utilidade das utopias. Tanto os idealistas como os materialistas valorizam a ética; a diferença é que os segundos afirmam que os valores e comportamentos éticos são criações históricas, condicionadas e sujeitas às mudanças (determinadas por vários factores sociais que a ética por vezes desconhece e oculta) e às condições físicas (o corpo do indvíduo, as características da Espécie), enquanto que os idealistas acreditam que possuímos uma coisa a que chamam de «livre arbítrio», incondicionada e «espiritual».
Os materialistas não todos e sempre «ateus», assim como os idealistas não são necessariamente sempre adeptos de uma determinada religião e igreja.
A «matéria» não se resume para todos os materialistas á matéria física, consideram que as relações e instituições sociais se incluem na «materialidade» do viver humano (o modo de produção do viver, em primeiro lugar). É falso afirmar-se que os materialistas apenas acreditam no que vêem, nas sensações, e nos prazeres físicos imediatos. A verdade é que existiram filósofos idealistas que se atinham às sensações. 

Os meus livros


quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

As minhas Revistas


O novo «Leviatão»


A televisão constitui hoje o veículo principal da ideologia hegemónica imperial-capitalista (Quem se enfada com «clichés» que invente outros). Já o é há muito tempo nos E.U., por exemplo. O que tem de novo, mesmo nos E.U., é que substituiu a imprensa escrita (que já foi famosa nos E.U. e na Grã-Bretanha). E de novo ainda o facto de não ser apenas um transmissor, mas um criador da ideologia dominante (criadora de «factos» e de interpretações). É um elemento compositor (não apenas componente) do discurso dominante. Portanto, formatador das mentes. Não serve para pensar: dá o que pensar. Se observarmos com atenção constatamos que os indivíduos «pensam» o que a tv quer que pensem. A reflexão é escassa, as opiniões abaundam. Não se conversa, opina-se (reproduz-se o que se viu na tv). O meio (media) transformou-se na Mensagem. Daí o interesse enorme que os governos e os políticos lhe devotam. Nos aparelhos ideológicos dos governos a tv ocupa o primeiro lugar, a seguir é que vem a Escola e a Igreja. Pode a internet ocupar mais o tempo das crianças e jovens, mas ainda quem vence é a tv. De resto, não está parada, inova-se nas técnicas e já se entrosa com a internet. Thomas Hobbes falava no «Leviatão». Hoje falamos na televisão.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Na Hora Da Nossa Morte (novela, cont.)

DIÁRIO DE MARTA – 11




Como descobri o prof. Ramos ? foi fácil: bastou-me utilizar o Google. Várias informações sobre a sua vida passada e presente: textos em revistas e jornais, comunicações em colóquios e simpósios, trabalhos fotográficos, intervenções na política. E um blogue. Aí encontrei o endereço electrónico. Milhares de indivíduos têm assim a sua vida postada, como agora se diz, em pedaços, links que se cruzam, que se perdem nos intervalos, que é preciso costurar, inventar. Ao fim de vinte e tal anos ele aí estava ao alcance de um clique. E-mail enviado, resposta em meia dúzia de horas. Lembro-me de um folhetim choramingas na televisão que ajudava a encontrar parentes desaparecidos. A internet faz isso agora, sem lágrimas.

Escrevo estas linhas (escrever um diário é conservar a sanidade mental, mais do que uma gaveta de lembranças. Devia-se destruir imediatamente a seguir: quantos equívocos podem os diários provocar em alguém que nos leia!) uma semana depois de me ter encontrado com o meu antigo professor de filosofia e de psicologia. Foi num café, na Ericeira, num dia de semana e naquelas horas mortas em que ninguém, no inverno, se empanturra de bolos (já quase não se encontram nos cafés fregueses a ler demorada e sossegadamente um jornal, um livro). A conversa fluiu rapidamente do presente para o passado, como se o meu interlocutor calculasse que era no passado que se localizava o motivo do nosso encontro (foi ele que me convidou, eu ainda não aprendi a ser atrevida. Defesas femininas). Aparentava saúde e energia, contudo os seus sessenta e tal anos evidenciavam-se, sem apelo nem agravo, na alva cabeleira que já anunciava a marcha inexorável da calvície, na miríade de finas rugas sob as pálpebras quando sorria, naqueles pequenos sinais escuros na pele que denunciam implacavelmente um sexagenário.

Elogiou-me a maturidade física, com cautela e subtileza, lembrou o romance de Balzac, A Mulher dos Trinta Anos (não tenho a certeza de ser este o título pois que não li o livro), explicando-me que naqueles tempos as mulheres alcançavam a sua plena beleza madura nessa idade, hoje alcançam-na mais tarde. Queria relatar-lhe a tragédia da morte da minha filha, abrir o coração, ainda que acabasse a chorar, mas contive-me, afinal era o primeiro encontro com um homem que eu respeitara como professor (naquele tempo respeitávamos realmente os professores) que eu não via há duas dezenas de anos, que ali estava envelhecido, talvez desconfortável pela mudança física com que se apresentava ao fim de tantos anos decorridos, com muitos sabores e dissabores, com certeza, tal como eu os tive. Não via nos seus olhos aquele brilho de alegria vivaz que me permitisse aborrecê-lo com tragédias. Porém, senti-me tão à vontade, inspirou-me uma tão insólita confiança, que estive quase por desabafar. Ficará para um próximo encontro. Neste falámos quase exclusivamente dos tempos em que eu era aluna dele. Soube trazer-me à memória a personalidade que eu tinha então, rebelde, afirmativa (eu, que era tão insegura!), apaixonada (eu preferiria dizer: apaixonadiça!). Realmente envolvia-me em múltiplas actividades e arranjava tempo para todas elas, políticas, associativas, artísticas. Nos colóquios e exposições na biblioteca sobre temas que ele propunha nas aulas, nos espectáculos teatrais que as turmas organizavam, nos concursos literários, nas mostras de fotografia…Tantos mundos que eu mal conhecia e que ele me abriu evitando sempre impor uma presença tutelar.

- Eras muito dotada – Disse-me – Continuaste?

- Não, ou quase nada. O curso de Medicina é muito exigente e longo, de resto a Faculdade não oferecia nada para além do marranço. Depois casei, mesmo antes de terminar já estava casada. O tempo já não chegava sequer para o internato, deambulações de hospital em hospital, uma filha para criar…

- Compreendo, a tua é uma profissão muito exigente, espero que não sintas essa exclusividade como uma frustração, temos que encarar isso, infelizmente ou não, como uma fase que não volta mais, eu também fui jovem e sei como é improvável, na maioria dos casos, manter essa abertura, essa curiosidade que é tão própria dos jovens. Mas que tinhas dotes, ai isso tinhas! Talvez tivesse permanecido o tal bichinho, não?

- Claro! Está cá dentro…Apesar da minha insegurança de então, da minha busca de algo que não sabia o que era, provavelmente buscava-me a mim mesma…

- Através dos outros, das actividades em que te vias a ti mesma de vários ângulos e facetas…

-…Certamente. Ando a pensar introduzir-me numa associação ou colectividade, fazer teatro amador. Continuo a sentir muita necessidade de voltar à pintura, à fotografia, ainda que não fosse uma artista por aí além…

- Pelo contrário! Eras dotada sim senhora! A técnica, a maturidade, vinha com o exercício continuado. Farias bem em retomar.

Deste modo foi decorrendo a nossa primeira conversa após tantos anos de separação. SE me abstraísse dos sinais evidentes de velhice que ele nem sequer disfarçava, se olhasse apenas para os olhos dele, conseguia imaginar-me a rapariga que eu era então, bem mais indeterminada, bem mais insegura, do que ele julga, ciumenta, porque não dizê-lo: invejosa? Um mistura de sentimentos generosos e elevados, admito sem vaidade já que ele o diz, e de sentimentos superficiais, inconstantes. Uma incontrolável necessidade de ser amada, de me poder inserir nos grupos, ser convidada…Tinha inveja das mamas grandes que outras tinham, escrever isto até me custa…dizia de mim própria que era apenas um «patinho feio»…Exagerava as minhas deficiências (se é que o eram), culpava-me. É provável que ao prof. Ramos não lhe escapasse isso, mas preferia comigo acentuar os bons hábitos que vencem os menos bons, aconselhando-me a agir, pois que é no acto que nos formamos e, sobretudo, nos transformamos. O meu acto foi transformar-me em médica, esposa, mãe…

Durante estas rememorações nunca me perguntou pelo Carlos, o que estranhei bastante. Não se recordava ele do meu namorado que foi seu aluno? O namoro foi suficientemente público, a um olhar atento como o dele não escaparia isso com certeza. Porém, não perguntou.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

As televisões no Haiti

Informação e manipulação


Os trágicos acontecimentos no Haiti suscitam algumas reflexões necessárias. Se nos primeiros dias não pareciam merecer as reflexões seguintes (embora merecessem de facto), hoje impõem-se ao espírito. A overdose de informações vai oprimir-nos ainda mais tempo, é fácil prever, para depois, gradualmente esmorecer (as notícias passam para lugares do noticiário cada vez mais secundários)e, por fim, já não ocupare espaço algum. Aparentemente tudo isto é aceitável, normal, compreensível. Porém, não o é.

1. O enquadramento histórico do sítio da tragédia nunca surgiu até à data: porquê a divisão da ilha em duas repúblicas, em dois povos, duas línguas? Porque é a República Dominicana um roteiro turístico muito rentável para as agências que souberam «impô-lo» aos gostos dos turistas (portugueses incluídos) e não sucedia o mesmo com o Haiti, a outra parte da Ilha? Que andava por lá a fazer a ONU, gastando «pipas» de massa e residindo no melhor hotel (curiosamente um dos melhores hotéis das Caraíbas)? Quem menciona já as dezenas de anos em que o Haiti foi esmagado por ditadores dos mais sanguinários das Américas? E que se importavam com isso os norte-americanos? Qual o papel destes nessas ditaduras? Quem se apropria dos produtos e das monoculturas e quem obrigou o Haiti a escolher essas monoculturas de exportação? Qual a ligação entre essa economia e os interesses dos importadores, e a miséria indescritível dos trabalhadores haitianos? Quem se lembra que a República Dominicana sofreu não há muito tempo uma repressão brutal e o esmagamento de uma experiência revolucionária?

2. O não tratamento das imagens (ou, mais certo ainda, a sua manipulação), a repetição («replicação» como ora se diz), a insistência até à náusea da morte e do sofrimento, os «directos» pelos enviados especiais que se limitam a descrever o que a imagem diz, fornecendo à imagem «bruta» uma pseudo-interpretação, isto é, uma retórica que aumenta a ansiedade do espectador, o desenquadramento das imagens, a fragmentação destas, os ângulos seleccionados pelas filmagens, tudo isto servido à hora das refeições se falarmos apenas nos telejornais, provocam ( e dizemo-lo sem hesitação: propositadamente) uma tristeza sem medida e sem controlo, indefinida, um mal-estar, uma tal compaixão que torna o espectador um boneco insuflado, apto a aceitar a «invasão» pacífica de uma República soberana pelas forças armadas norte-americanas, convertidas em legiões salvadoras, justificando-se indirectamente (habilmente) a ocupação do Iraque e do Afeganistão (como já o haviam feito no Líbano há pouco tempo atrás).

3. Deste modo a horrenda miséria em que vivia aquele povo já antes desta tragédia e que tornou a tragédia ainda maior nos seus efeitos e nas suas sequelas, fica por explicar, ou, em muitos casos, fica na mente do espectador ignorante a suspeita de que a miséria se deve ao próprio povo (o que não surpreende: muita gente culpa os habitantes das favelas do Rio de Janeiro). E deste modo ainda se desvia o nosso povo das «calamidades» políticas de que ele é vítima e pagador (por exemplo, da miséria dos desempregados, da iniquidade da Justiça, dos espúrios acordos do PS com o CDS já cozinhados apesar das retóricas de disfarce, e a cozinhar com o PSD (cujo discurso de «oposição» é mera treta para remendar o Orçamento com um figurino aceitável pelo grande capital). E deste modo se induzem na mente colectiva sentimentos de impotência, medo, morbidez, resignação religiosa perante a inclemência das forças da natureza…Ao frenesim dos saldos que provocam uma espécie de exaltação colectiva, sucedeu depressa a melancolia do fado em que somos contumazes.


domingo, 17 de janeiro de 2010

Qual a ligação entre desastres naturais e colonialismo?

Martinica



por Rosa Luxemburgo [*]










Este artigo, escrito logo após a grande erupção vulcânica de Maio de 1902 no porto de St. Pierre, na ilha da Martinica, reflecte o interesse de Rosa Luxemburgo pelos acontecimentos fora da Europa e a sua fervente oposição ao colonialismo europeu. Agora, após a catástrofe provocada na Ásia pelo tsunami asiático de 26 de Dezembro de 2004, ele ganha uma nova actualidade.

Montanhas de ruínas fumarentas, pilhas de cadáveres mutilados, um fumegante mar de fogo para onde quer que nos voltemos, lama e cinzas — isto é tudo o que resta da cidade florescente que se encarapitava no terreno rochoso do vulcão tal como um pássaro deglutido. Por algum tempo o gigante colérico foi ouvido a rugir e a enraivecer-se contra esta presunção humana, a arrogância cega dos anões de duas pernas. Com bondade mesmo na sua ira, um verdadeiro gigante, ele advertiu as imprudentes criaturas que rastejavam aos seus pés. Ele expeliu fumo, vomitou nuvens ardentes, no seu peito havia tempestuosas e ferventes explosões como descargas de rifle e trovejar de canhões. Mas os deuses da terra, aqueles que ordenam o destino humano, ali permaneceram com fé inabalável — na sua própria sapiência.



Em 7 de Maio, a comissão despachada pelo governo anunciou ao ansioso povo de St. Pierre que estava tudo em ordem no céu e sobre a terra. Está tudo em ordem, não há motivo para alarme! — como disseram na véspera do Juramento do Palácio nos salões intoxicados pela dança de Luís XVI, enquanto na cratera do vulcão revolucionário a lava ardente estava a acumular-se para a temível erupção. Tudo está em ordem, em paz e em tranquilidade por toda a parte! — como disseram em Viena e Berlim na véspera da erupção de Março cinquenta anos atrás. [1] O velho e sofrido titã da Martinica não prestou atenção aos relatórios da honrada comissão: depois de o povo ter sido acalmado pelo governador no dia 7, ele entrou em erupção nas primeiras horas do dia 8 e nuns poucos minutos enterrou o governador, a comissão, o povo, casas, ruas e navios sob as ardentes exalações do seu coração indignado.



O trabalho foi radicalmente completo. Quarenta mil vidas humanas ceifadas, um punhado de refugiados tementes resgatados — o velho gigante pode rugir e borbulhar em paz, ele mostrou o seu poder, ele vingou-se terrivelmente do desprezo para com o seu poder primitivo.



E agora, chega às ruínas da cidade aniquilada na Martinica um novo hóspede, desconhecido, nunca antes visto — o ser humano. Nem deuses e servos, nem negros e brancos, nem ricos e pobres, nem donos de plantações e escravos assalariados — seres humanos surgiram sobre a pequena ilha destruída, seres humanos que apenas sentem o sofrimento e vêem apenas o desastre, que querem apenas ajudar e socorrer. O velho Monte Pelee operou um milagre! Estão esquecidos os dias de Fashoda, [2] esquecido o conflito sobre Cuba, esquecida "la Revanche" — os franceses e os ingleses, o czar e o Senado de Washington, a Alemanha e a Holanda doam dinheiro, enviam telegramas, estendem a mão da ajuda. Uma fraternidade de povos contra o ódio incendiário da natureza, uma ressurreição do humanismo sobre as ruínas da cultura humana. O preço do redespertar da sua humanidade foi alto, mas o trovejante Monte Pelee teve voz para alcançar os seus ouvidos.



A França chora sobre os quarenta mil corpos da pequena ilha, e o mundo inteiro precipita-se para secar as lágrimas da República Mãe. Mas como se passava isto séculos atrás, quando a França derramava sangue em torrentes pelas Antilhas Menores e Maiores? No mar da costa leste da África jaz uma ilha vulcânica — Madagascar: cinquenta anos atrás vimos ali a desconsolada República, que hoje chora pelos seus filhos perdidos, como ela subjugou o obstinado povo nativo sob sua canga através das cadeias e da espada. Nenhum vulcão abriu ali a sua cratera: as bocas dos canhões franceses vomitaram morte e aniquilação. A artilharia francesa varreu com o fogo milhares de vidas humanas florescentes da face da terra até que um povo livre ficasse prostrado no chão, até que a rainha escura dos "selvagens" fosse arrastada como um trofeu pela "Cidade Luz".



Na costa asiática, lavada pelas ondas do oceano, ficam as sorridentes Filipinas. Seis anos atrás vimos os bondosos ianques e o Senado de Washington a trabalharem ali. [3] Não há montanhas a vomitarem fogo naquele lugar — lá, rifles americanos ceifaram vidas humanas aos montes; o cartel do açúcar do Senado hoje envia dólares dourados para a Martinica, milhares de milhares, para trazer a vida de volta a partir das ruínas, envia canhões e mais canhões, vasos de guerra e mais vasos de guerra, milhões e mais milhões de dólares dourados a Cuba, para semear morte e devastação.



Ontem, hoje, lá longe no distante sul da África, onde há apenas uns poucos anos um pequeno povo tranquilo vivia do seu trabalho e em paz, vimos como o inglês provoca o caos, estes mesmos ingleses que na Martinica salvam as mães, os seus filhos: ali nós os vimos marcar corpos humanos, sobre corpos de crianças com botas brutais de soldados, chapinhando em lagos de sangue, morte e miséria.



Ah, e os russos, a resgatarem, a ajudarem, o lacrimoso czar de todos os russos — um velho conhecido! Nós o vimos nas baterias de Praga, nos polacos calorosos, o sangue fluiu em jorros e tornou o céu vermelho com o seu vapor. [4] Mas isto foi antigamente. Não! Agora, a apenas umas poucas semanas, vimos bondosos russos nas suas estradas empoeiradas, em aldeias russas arruinadas, em pleno acordo com multidões ásperas, desenfreadamente agitadas e resmungonas, mujiques caídos por terra a arfarem, sangue vermelho camponês misturados com o pó da estrada. Eles devem morrer, eles devem cair porque os seus corpos redobram-se com fome, porque eles clamaram por pão, por pão!



E também a vimos, Oh Mãe República, lavada em lágrimas. Foi em 23 de Maio de 1871: o glorioso sol da primavera brilhava sobre Paris, milhares de pálidos seres humanos em roupas de trabalho apertados de pé, todos juntos, nas ruas, no pátio da prisão, corpo com corpo e cabeça com cabeça; atrave´s de buracos nas paredes, metralhadoras a avançarem os seus focinhos sedentos de sangue. Nenhum vulcão entrou em erupção, nenhuma corrente de lava derramou-se. Os seus canhões, Mãe República, foram virados contra a multidão duramente apertada, jorros de sofrimento rasgaram os ares — mais de vinte mil cadáveres cobriram os calçamentos de Paris! [5]



E todos vocês — sejam franceses e ingleses, russos e alemães, italianos e americanos — foram vistos todos juntos uma vez antes do acordo fraternal, unidos na grande liga das nações, a ajudarem e a guiarem uns aos outros: foi na China. Ali vocês também esqueceram todas as querelas internos, ali também fizeram uma paz do povos — para o assassínio em comum e o atear do fogo. Ah, como aquelas tranças de rabicho caem aos molhos diante das suas balas, como um campo de trigo maduro açoitado pelo granizo! Ah, como as mulheres chorosas afundadas na água, com os seus mortos nos braços frios, a fugirem das torturas dos vossos abraços ardentes!



E agora todos eles voltaram-se para a Martinica, todos com um só coração e um só pensamento, mais uma vez; eles ajudam, resgatam, secam as lágrimas e amaldiçoam o vulcão que descarrega destruição. Monte Pelee, grande gigante bondoso, você pode rir; você pode olhar com desprezo para a abominação destes assassinos benévolos, para estes carnívoros lacrimejantes, para estas bestas vestidas com roupas de samaritano. Mas chegará o dia em que um outro vulcão levantará a sua voz de trovão: um trovão que está a ferver e a borbulhar, quer você precise disto ou não, e varrerá toda a cultura hipócrita e respigante de sangue da face da terra. E só sobre as suas ruínas as nações ficarão reunidas em verdadeira humanidade, a qual não conhecerá senão um inimigo mortal — a natureza cega e mortal.

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Notas

1- Referência ao estalar das revoluções de 1848 na Europa.

2- Em 1898 a França e a Inglaterra quase foram à guerra devido a um conflito em Fashoda, no Sudão.

3- Referência à Guerra Hispano-Americana de 1898, na qual os Estados Unidos tomaram posse das Filipinas e de Cuba. Isto verificou-se quatro anos antes e não seis.

4- “Os baluartes de Praga" referem-se a um massacre do exército russo contra um levantamento polaco em Praga, um subúrbio de Varsóvia, em 1831.

5- Referência à brutal supressão da Comuna de Paris de 1871, na qual milhares de revolucionários foram massacrados pelas forças do governo francês.



[*] Este ensaio foi extraído de The Rosa Luxemburg Reader , traduzido e editado por Peter Hudis e Kevin B. Anderson (Monthly Review Press, 2004). O artigo original foi publicado no Leipziger Volkszeitung de 15 de Maio de 1902.






O original encontra-se em http://www.monthlyreview.org/0105luxemburg.htm.






Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

Haiti: solidariedade desinteressada e ajuda interesseira

Prensa Web RNV/Cubadebate


16 Enero 2010



Foto: Cortesía ABN





El director general del Fondo Monetario Internacional, Dominique Strauss Kahn, acaba de anunciar su firme intención de "movilizar ayuda" para Haití "muy rápidamente", con el desbloqueo de 100 millones de dólares. Strauss Kahn dijo que el objetivo es "acompañar a Haití en la difícil tarea", y expresó su "profunda simpatía para con las víctimas". Lo que olvidó de decir el director general es que los 100 millones de euros no son ayuda. En la letra pequeña pone que la suma será desbloqueada en forma de "facilidad ampliada de crédito". Es decir que los haitianos tendrán que devolverla, aunque estén bajo los escombros. Y con intereses.



Desde hace dos siglos, es una costumbre de eso que se suele llamar la comunidad financiera internacional. Auténtica ayuda y auténtica anulación de la deuda externa de Haití son irremediablemente las asignaturas pendientes del Norte con este país desde su nacimiento, en 1804.



Aprovechando uno de los episodios de restauración monárquica que sufrió Francia en la primera mitad del siglo XIX, los ex colonos blancos impusieron su venganza. El rey Carlos X envió un emisario a la no reconocida república negra en 1825 con un mensaje claro: o Haití aceptaba endeudarse para "indemnizar a los agraviados colonos", o Francia impondría un bloqueo naval férreo, seguido de una invasión.



Los haitianos tuvieron que capitular, y así cargaron con una deuda de 150 millones de francos-oro de la época debidos a Francia. Un monto que, proyectado a cifras actuales, equivaldría a imponer unos 23 mil millones de dólares de deuda de golpe a un país como Bosnia-Herzegovina recién salido de la guerra.



Milicia fascista



Roto el primer sueño de libertad de los ex esclavos haitianos, Francia, exhausta, pasó el relevo a EE UU. La ocupación de Haití por los marines (1915-34) no sólo sirvió para que Washington deslocalizara, rumbo a la república negra, a soldados procedentes de familias del Sur, capaces de aplastar la rebelión campesina de Los Cacos. También sirvió para formar a una milicia auxiliar haitiana fascista.



EE UU desocupó Haití en 1934, pero dejó a la milicia, bautizada Ejército regular, y siguió administrando la economía y las aduanas hasta 1945, para cobrarse. Ese cobro tuvo la forma de una tasa sobre el café exportable que era repercutida a los campesinos.



Ese Ejército haitiano sirvió para sustentar décadas tras décadas dictaduras como la de los Duvalier, que desviaron unos 900 millones de dólares a cuentas numeradas suizas y monegascas, dinero que nadie ha devuelto a los haitianos.





Actualmente, las remesas de los emigrantes haitianos son, con mucho, la principal fuente de ingresos del país, seguido por el textil y el café. Pero no logran equilibrar la balanza de pagos del país.





Consecuencia: 1.885 millones de euros de deuda externa bruta en 2008. Pese a los anuncios de la "comunidad financiera internacional" en julio pasado, sólo una pequeña parte de esa deuda ha sido anulada. Buena parte ha sido "calificada cancelable", pero no anulada. Los haitianos deben sólo en intereses unos 430 millones de euros.



Consciente de ello, Christine Lagarde, la ministra francesa de Economía dijo ayer que ha contactado con el resto de miembros del Club de París para anular la deuda de Haití.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

DANIEL BENSAIDE (1946-2010)


Morreu hoje o filósofo Daniel Bensaide. Não sendo eu em vez alguma militante trotskista, não deixo de prestar homenagem a um produtivo e profundo pensador das teorias políticas e da pós-modernidade, que nos desafiou a leituras sempre renovadas do pensamento de Karl Marx. As suas obras estão vivas para esse confronto honesto e lúcido com o seu autor que hoje nos deixou. Que toda a Esquerda saiba acolhê-lo como um dos seus.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

FÁBULAS - 2




O macaco pessimista

Num rincão da floresta vivia uma tribo de macacos. O chefe distinguia-se pela treta, apenas. Chegara ao topo pela aldrabice. Instalado no poder, assaltara os melhores territórios apoiado por um grupo de acólitos que disputavam entre si os galhos mais seguros e frutuosos. Estas governanças e estas tácticas não eram inusitadas na tribo. A força bruta e a astúcia constituíam os imperativos categóricos da espécie de moralidade que ali sempre reinara. Não eram os mais inteligentes e honestos que ascendiam ao topo, mas os mais manhosos. Daí que houvesse na tribo um macaco particularmente pessimista. Não surpreendia, portanto. O que surpreendia era que existissem tantos optimistas.

Os optimistas compunham aquela fracção que arranja sempre uma teoria para justificar o passado e o presente. Não se reduziam, de modo nenhum, àqueles cujo modo de vida dependia de ser acólito ou aliado do chefe. Dispunham do bom senso, de alguma cultura e , sobretudo, da faculdade de digerir os acontecimentos, de interpretá-los de acordo com esquemas de pensamento positivos, afirmativos e esperançosos. Existia mesmo um macaco filósofo que apelava para a vontade de afirmação da tribo, «potência de ser» na sua fraseologia peculiar. Aos governantes até que lhe convinham estas teorias, desdobrando-se em arengas contra «os velhos do Restelo», os «alarmistas», em suma: contra o pessimismo nacional.

Existiam, portanto, os optimistas porque comiam da gamela grande, os optimistas porque acreditavam numa qualquer «potência» que só precisava de ser despertada por meio de palavras, os optimistas que conseguiam ver no «negativo» o «trabalho do positivo», isto é, eram simplesmente utópicos.

Fora desta ou destas fracções pulavam de ramo em ramo os pessimistas. Como a tribo era pequena, a bem dizer apenas um era pessimista. Poder-se-ia pensar que era rancoroso e ressentido, que passava o tempo a dizer mal da vida, da existência e da transcendência. Nada disso. Cultivava um género de serenidade, de certo modo solitária, que o deixava ao abrigo de utopias abstractas. Olhava e não gostava do que via, porém não sobrepunha ao que via um outro mundo onde todos os macacos cooperavam alegremente, comiam da mesma árvore, dançavam a mesma música, acreditavam no mesmo sol. Os outros encaravam-no com compaixão, mais frequentemente com desconfiança e censura. Verificavam, porém, que nos momentos de perigo ou de abusos insustentáveis o pessimista saltava logo para a primeira linha do combate urgente. Conquistava simpatia e admiração, mas, logo que a borrasca era passada, esqueciam-se imediatamente dele. Os utópicos continuavam a construir ficções (que neles era uma espécie de ópio) e os espertos a construir mansões sobre os ramos mais elevados das árvores mais frutíferas.

Certo dia, que se esperava ser igual aos outros, sucedeu um desastre: uma horda de trogloditas vindo dos confins da floresta assaltou o território e subjugou a tribo dos pequenos macacos. Apenas escapou o macaco pessimista por encontrar-se, como sempre, num recanto recôndito em serena levitação. Nada pôde fazer, excepto permitir que um macaco optimista encontrasse refúgio ao pé dele.

- Paciência, quanto pior, melhor, partamos ambos em busca da Terra Prometida, vejo claramente visto que este é o sinal que confirma que Ela é Possível! - Concluiu o macaco optimista.

- Mas como consegues ver epifanias onde eu só vejo tiranias? Onde está essa ilha da Bem Aventurança senão na tua imaginação?

- Os anciãos falam de um território onde todos trabalhavam para o bem comum!

- Onde fica ele?

- Desapareceu não se sabe porquê, ou perderam-lhe o rasto.

- Se explodiu por causa de algum cataclismo natural não vale a pena procurá-la, se implodiu porque a Bem Aventurança era apenas um mito a que te agarras, também não vale a pena repetir a experiência. Parte tu, rouba uma fêmea jovem, faz filhos, organiza um clã e depressa serás dele o chefe, o patriarca, o supremo guia. Uns venerar-te-ão quando morreres, outros dirão de ti que foste um ditador sanguinário.

- Chega de interpretares o mundo, o que é preciso é transformá-lo!

- Que injusto! Quanto não fiz para transformá-lo, talvez bem mais do que tu! Só que ele se repete…

O macaco optimista farejou uma fêmea, arrebatou-a pelo pêlo, e partiu em demanda do paraíso, munido de uma doutrina inabalável. O macaco pessimista regressou à tribo submetida e passou o resto dos seus dias a cultivar flores no seu minúsculo quintal.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010


O HORROR

Hoje é um dia de silêncio e morte. Pobre povo do Haiti, esquecido por Deus, explorado pelos norte-americanos, bordel dos milionários, coutada dos nativos facínoras, varrido pelos tufões, pela miséria, pelo terramoto!

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

NA HORA DA NOSSA MORTE (novela, cont.)

(Resumo dos episódios anteriores: O arquitecto Carlos vê erguer-se, finalmente, a ponte que projectou. Marta continua a esforçar-se por fazer o luto pela filha desaparecida, visita a mãe e ganha forças para seguir em frente. Decide visitar o seu antigo professor, o dr. Ramos, que fora de Carlos também.)

DIÁRIO DE CARLOS -12




Há três meses atrás a minha ponte era apenas uma pedra e uma cerimónia, hoje erguem-se os pilares altaneiros cuja brancura pinta de sol a paisagem. Operários e máquinas em constante labor. Se ela demorou a iniciar-se, a nascer, tanto a mim se deve como à burocracia. Que não me culpe somente a mim o meu chefe, esse lambe-botas que mete cunhas por tudo e por nada. Enfim, provavelmente desta vez agiu com eficácia. Julga que lhe estou devedor, mas não estou. Admito que não me apressei a entregar o projecto, que fosse bom é o que importa.

Assisto à construção da ponte como se ela fosse uma ilha num mar encapelado de contestação social. A desordem continua. Outros chamam-lhe sublevação, ou desejariam que fosse, eu chamo-lhe desordem social. O mundo em que fui formado estremece até aos alicerces. Seguros parecem ser os alicerces da minha ponte. Violento contraste entre os seus e os da sociedade, entre o seu levantamento elegante e seguro e o abatimento geral da sociedade, entre um futuro e um presente que já é passado.

Vivo dias de alguma euforia. As revoltas nas ruas não me inquietam, nem me tiram o sono. Entretanto, os novos projectos realizo-os por mera rotina. A crise instalou-se, as encomendas são escassas, excepto as moradias espaventosas, as recuperações principescas de mansões, quanto mais miséria, mais luxo. A minha classe média de outros tempos está a desaparecer, o meu pai não haveria de sentir-se nada bem se fosse vivo. Não tenciono alienar a sua herança, refiro-me à casa porque o resto já o gastei. Tudo voou nesses anos loucos de juventude. Viajei, comi e bebi, frequentei os melhores hotéis, comprei um barco que já não tenho e equipamento para pesca submarina que pouco utilizei, esbanjei dinheiro com mulheres de boa e má sorte, emprestei a amigos que nunca me devolveram. Enfim, estou reduzido a uma moradia que herdei onde raramente vou, a um apartamento e a um ordenado razoável. O suficiente para com isso haver seduzido mulheres cobiçosas. Às vezes pergunto-me se a Clara não foi atrás disso também. Sucede naqueles dias em que a desconfiança ou o pessimismo me atacam logo pela manhã. Talvez não, talvez ela se encantasse com outros dotes meus. Quais serão é que não sei. Foi nos tempos em que trabalhou sob a minha chefia, chamemos-lhe assim, isto é, no gabinete, tudo se modificou quando decidiu terminar o curso superior em exclusividade (ou será que trabalha em part-time nalgum sítio? Ou arranjou uma bolsa de estudos?), novos colegas, novas amigas e amigos, e por lá anda com algum. Se me ajudou a fazer o luto pela esposa falecida, ninguém me ajudou ainda a fazer o luto pela perda dela mesma. Se já não padeço, ainda recordo, o que é uma forma de sofrimento. Nenhuma mulher substitui outra, provavelmente as mulheres dirão o mesmo dos homens. Ninguém é igual a outrem. Nem os acontecimentos, os momentos que se viveram nessa comunhão física que faz o amor apaixonado.

E nestas meditações avulsas acabo de evocar a Marta. Tão perto de mim e não dei ainda um passo para a descobrir! Como é meu hábito, ou defeito, aguardo que me conquistem. A bem dizer sei lá qual é o seu estado: casada, e bem casada, com filhos?

Rainer Maria Rilke e Auguste Rodin



Uma e outra vez do vidro espelhado
voltas a buscar-te de novo até ti;
ordenas em ti, como numa jarra,
as imagens tuas. Chamas-lhe Tu,

a esse despontar dos teus reflexos
que por momentos ao de leve estudas
antes de, vencida pela felicidade deles,
voltares a ofertá-los ao teu corpo.

domingo, 10 de janeiro de 2010

PERGUNTAS

Porque é que o Congresso norte-americano aprovou 400 milhões de dólares destinados a operações visando o desmembramento do Irão? Porque é que o grupo sunita «soldados de deus» que tem executado numerosos atentados na região fronteiriça com o Afeganistão se encontra na lista de financiamento da CIA, como outrora os talibãs? Benazir Butho, ex-primeira ministra do Paquistão, assassinada em Dezembro de 2007, revelou que «a ideia dos Talibãs era inglesa, a gestão norte-americana, o financiamento saudita e a organização paquistanesa» (Le Monde, 30.10.2001)

TACHOS

A ex-ministra da Educação foi nomeada pelo Sr. Sócrates presidente da Fundação Luso-Americana. A senhorita que foi apelidada de todos os qualificativos pejorativos safou-se e saíu pela porta grande. A senhorita a quem o Sr. Sócrates deve ter perdido uns bons milhares de votos e a maioria absoluta, recebeu um grande tacho. Vai trabalhar com os amigos americanos e abandonou um ministério com quem abandona um navio em pleno naufrágio. Quem são as primeiras a saltar borda fora?
Assim se premeia quem mal governa. Assim se safam os governantes sem arcar responsabilidades nenhumas. Essa senhorita devia ser julgada, avaliada pelo modelo que tentou impôr com brutalidade. Uma lição, ao menos, se retira: sem lutas não há vitórias. Os professores venceram, os sindicatos venceram. O que era justíssimo era colocar a senhorita numa escola daquelas onde alunos andam com facas no bolso. Um raio que...

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Casamentos

Saúdo a Assembleia da República por haver aprovado o diploma que consagra a união jurídica entre pessoas do mesmo sexo. Saúdo com reservas: essas pessoas mereciam o casamento normal, a Constituição proibe todas as discriminações. Se essas pessoas querem casar, pois que o possam fazer sem que o seja por essa via enviesada e limitativa que é a «união». Foi preciso deitar mão desta «manobra» do PSD para este votar a favor, e o PS gostou do recuo. O PS canta agora de galo (não passo o «machismo» voluntário) e o Sr. Sócrates e acólitos aproveitam a «vitória» para ganhar uns votos, enquanto adiam ou mesmo afastam medidas urgentíssimas, essas sim, para combater o flagelo do desemprego e aliviar a humilhação e a indecência (expressões muito glosadas no Parlamento a propósito dos homossexuais) em que são obrigados a sobreviver (ou a morrer?) as centenas de milhar de desempregados.

Os meus livros


PINA BAUSCH legou-nos uma revolução na dança contemporânea! Genial.


quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Morreu Lhasa de Sela

Morreu a cantora Lhasa de Sela, de cancro da mama. Nasceu no estado de Nova Iorque, actuou várias vezes em Portugal, editou o 1º álbum, «La Llorona», em 1997. Ouçamo-la na minha «playlist».

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Os Materialismos (Breve história)


Os materialismos do século XIX




Desde logo nos inícios do século os materialismos manifestaram-se em pensadores maiores e menores, suportando os ataques poderosos da influente filosofia alemã idealista (Kant, Fichte, Schelling) e romântica. Poderosos pois que a Filosofia Alemã dominou claramente na primeira metade do século e não largava um instante os calcanhares dos materialismos: Em certos casos não era assim tão difícil roer nos materialismos na medida em que as limitações destes eram evidentes (referimo-nos aos materialismos do século anterior). Havia, pois, que renovar as teses materialistas. As fontes de inspiração vieram de dentro e de fora. De dentro da filosofia a contribuição do empirismo francês e britânico foi flagrante, e veja-se o caso de L. Feuerbach (1804-1872), que constrói uma filosofia sensualista e sentimental extraordinariamente cativante ainda hoje («o homem é aquilo que come», «os que habitam uma choupana pensam de modo diferente daqueles que habitam um palácio»), tanto pela valorização do corpo, dos sentidos e dos sentimentos, como pela crítica da religião que desbravou decisivamente as vias modernas da compreensão desse fenómeno. Em França assistimos à emergência do chamado grupo dos «ideólogos» (investigavam a origem e natureza das ideias), discípulos de Condillac (século XVIII), Destutt de Tracy (1754-1836), Cabanis (1757-1808) e outros, cujas obras foram, e podem ainda ser, interpretadas no sentido materialista, em boa parte, por causa da defesa dos sentidos e do papel fundamental do cérebro, mais consistente do que o haviam feito os naturalistas do século anterior (Helvétius, d´Holbach, Condillac). Quer muitos sorriam ontem e hoje com o exagero da fórmula famosa de Cabanis: «o cérebro segrega o pensamento, como o fígado segrega a bílis», o facto é que a filosofia ia buscar sustento nas novas ciências e mantinha assim a aliança com a ciência que sempre fez do materialismo um adversário dos idealismos que separavam o pensamento relativamente ao físico. Certamente que as filosofias idealistas não ignoram as ciências, e sabemos isso desde Platão, o pai de todos os idealismos, contudo tendem a introduzir na matéria (Natureza) um qualquer princípio espiritual ou antropomórfico (é o caso da filosofia de Arturo Schopenhauer que coloca como fundamento e motor dos comportamentos vitais o Princípio da Vontade). Todavia, não é menos certo que as novas descobertas científicas reabrem os combates do materialismo contra o idealismo: as ciências da natureza, a biologia, a antropologia natural, que vão preparando o terreno para que nele brotasse em esplendor a obra revolucionária de Charles Darwin (tornou-se extremamente difícil, depois disso, defender-se, agora sem uma sorriso, teses «criacionistas»). A astronomia, a física da termodinâmica e do electromagnetismo que operou outra revolução, desta feita na Física (e, seguidamente, na Técnica). A arqueologia, a medicina, a química.

Os materialismos do século XIX que citámos, quase a totalidade a bem dizer, conservam orientações ora «contemplativas», como em Feuerbach, quer «biologistas», como em Cabanis, sendo que o «cientismo» e o «positivismo» (e de algum modo o empirismo) são forte e crescentemente notórios. Limitação de monta, a nosso ver. Além disto, as suas preocupações aparecem normalmente desligadas de engajamentos políticos. Entretanto, porém, a vida move-se, as mudanças económicas, sociais, políticas, marcam indelevelmente este século da Revolução Industrial, das revoluções liberais e da Comuna de Paris. Se alguns pensadores académicos e filósofos mais ou menos materialistas (raramente consequentes) não são sequer adeptos de ideais progressistas – Gobineau, por exemplo, na década de 50, defende abertamente o racismo- uma nova filosofia intervencionista e comprometida expande-se entre camadas sociais que, antes, não se mostravam conscientes da necessidade de uma filosofia e, menos ainda, de uma filosofia que fosse a deles. É verdade que já Diderot, no século anterior, desejava e apelava a uma filosofia do «homem comum», mas percebe-se que esse «homem» genérico era a Burguesia. O que se passa agora é de uma profunda novidade: as classes trabalhadoras entram no palco da história. Sectores, mais ou menos radicalizados, das pequenas burguesias tomam o papel de vanguardas nas lutas liberais e republicanas, amplos sectores convertem-se rapidamente aos ideais socialistas, um proletariado aguerrido e organizado faz a sua aparição e como que exige uma doutrina que brote do próprio movimento. As discussões teóricas mobilizam seitas de utópicos, tipógrafos, tecelões, mineiros, nos clubes mais ou menos secretos, nos sindicatos; a imprensa desempenhava cada vez mais um papel crucial; as agremiações cooperativas, cuja importância foi fundamental, dispunham dos seus periódicos independentes e dos seus próprios doutrinadores e prosélitos. Neste alfobre, que jamais existira, proliferam os programas, as utopias, os manifestos revolucionários, os apelos à revolução.

Se L. Feuerbach já declarava a sua filosofia como sendo «do Futuro», uma inversão do hegelianismo em direcção ao mundo terreno do indivíduo concreto, é com Karl Marx (1818-1883)e F. Engels (1820-1895) que toda a filosofia, toda ela sem excepção, chega ao seu termo. É como se ela alcançasse a sua plena maturidade e, logo a seguir, a sua erosão e decadência. Ao ponto de alguns concluírem que Marx não foi filósofo, isto é, por outras palavras, abandonasse a filosofia a partir de determinada altura. Na realidade, o que produziu Marx foi de facto uma ruptura com a filosofia tradicional, e esta ruptura deve-se a uma mudança radical do materialismo.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Da Filosofia da História


Sobre as Invasões Francesas



No bi-centenário das Linhas de Torres





A Filosofia permanece sob o silêncio altivo de ignorantes ou sob o fogo cerrado do cientismo. Apesar disso ela floresce cheia de vigor e novidade em França, Itália, Grã-Bretanha, e a própria Espanha nossa vizinha não fica excluída. Novos títulos chegam regularmente aos escaparates, de tal modo que é praticamente impossível lê-los todos. Alguns autores e algumas obras tornam-se até best-sellers. A investigação filosófica (epistemológica ou gnoseológica, ética, política, estética, antropológica) não pára. Há mesmo uma moda que aconselha a terapia filosófica em vez do Prozac…

Ora bem, o que nos antolha é que a propósito das investigações historiográficas, e no caso vertente, das investigações relacionadas com as Invasões Francesas (convenhamos que o bi-centenário das Linhas de Torres ainda apenas agora se inicia), as reflexões filosóficas, melhor dito: a filosofia da História, não se anunciam (estarão em gestação?). Profusos estudos de história, militar sobretudo, mas nada sobre o que dissemos. Será que a Filosofia da História já morreu? Os seus detractores conseguiram enterrá-la no baú do passado morto? Que houve e há vontade de um assassinato parece-me fácil demonstrar, especialmente da parte da chamada Nova História, ou seja, basta de metafísicas puramente especulativas, os historiadores é que escrevem a verdade, tanto mais quanto não se aventuram em Teorias da História, e se limitam aos «factos» (o neo-positivismo quer tomar conta de tudo, o que é curioso, porque ele próprio é uma determinada filosofia).

Dir-se-ia que a filosofia da história, aplicada em e para Portugal por exemplo, terminou com o Antero (As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares) ou com Oliveira Martins (este de qualidade francamente inferior comparativamente). No entanto, bastaria lembrar António Sérgio e a sua concepção ética neo-kantiana da História (neo-kantiana e platónica), cuja influencia e pedagogia foram enormes, ou Jaime Cortesão com a sua visão nacionalista elitista ( que Sérgio combateu frontalmente), ou Joel Serrão com direcção desse Dicionário da História de Portugal que tanto nos formou a muitos de nós, e, por fim, sem desmerecer de outros, Eduardo Lourenço, por um lado, e os marxistas por outro (salientar aqui a obra pioneira de Álvaro Cunhal sobre a crise ou luta de classes de 1383, logo seguido pelo seu discípulo António Borges Coelho com um livrinho sobre a mesma Revolução que se converteu num sucesso).

Fazer filosofia da História, portanto, não é repetir a fórmula idealista de Hegel, essa sim, morta no essencial. Não é repetir, de igual modo, a fórmula da Dialéctica da História resumida por Estáline (ou os estupendos estudos de F. Engels e G. Luckacs, discutíveis embora). Nada disso. Por mim está posta de lado uma ficção épica e utópica de uma História Universal conduzida por um Plano em direcção a um fim último. Contudo, o seu contrário é completamente errado, isto é, defender-se que a História, geral ou particular, é feita de meros acasos fortuitos e imprevistos. Noutra vertente desta tese errada encontra-se a tentativa de ressurreição, mais ou menos encapotada, de uma filosofia (espontânea?) idealista da História, que, ironicamente, muito se assemelha à teria hegeliana, ou seja, os acontecimentos geram-se por via «supra-estrutural», ideológica e/ou política. Que às vezes sucede não o negamos, mas o que dizemos que é que esse «motor» vem a posteriori, como se fosse o pico de uma onda que é económico-social. Não são as ideias, por mais importantes que o sejam, que conduzem os acontecimentos de princípio ao fim (o mais das vezes exprimem convulsões sociais e guiam as massas ou os indivíduos, o que já é muito); não é este ou aquele indivíduo excepcional que faz a História (ainda que tenha a envergadura de um Napoleão Bonaparte); os «factos» (não esquecer que todos os factos são «construídos e não dados) não meros acasos em circunstâncias indiscerníveis (como quase pretendeu o falecido historiador influente francês Furet, «revisionista»).

As Invasões Francesas inserem-se num vasto e complexo quadro de transformações económico-sociais (e, evidentemente, políticas) que foi rompendo (quase sempre à força) os quadros estreitos, inflexíveis no essencial, do Antigo Regime (ainda que a nobreza gostasse de manducar no bolo do comércio nacional e internacional). A derrota dos exércitos napoleónicos (no mar, na Rússia, em Portugal) ditou, ao mesmo tempo, o começo do fim do Antigo Regime, aos poucos ou de vez.

sábado, 2 de janeiro de 2010

POEMAS DE PABLO NERUDA

A VERDADE

Amo-vos, idealismo e realismo,
como água e pedra
sois partes do mundo,
luz e raiz da árvore da vida.

Não me fechem os olhos
mesmo depois de morto,
ainda precisarei deles para aprender,
para olhar e compreender a minha morte.

Necessito da boca
para cantar depois, quando não existir.
E de minha alma, meu corpo, minhas mãos
para continuar a amar-te, minha amada.

Sei que não pode ser, mas desejei-o.

Amo o que não tem mais do que sonhos.

Tenho um jardim de flores que não existem.

Sou decididamente triangular.

Dou pela falta das minhas orelhas,
mas enrolei-as para as abandonar
num porto fluvial do interior
da República de Malagueta.

Não posso mais com a razão ao ombro.

Quero inventar o mar de cada dia.

Veio ver-me uma vez
um grande pintor que pintava soldados.
Todos eram heróicos e o bom homem
pintava-os no campo de batalha
morrendo com prazer.

Também pintava vacas realistas
e eram tão extremamente vacas
que nos íamos tornando melancólicos
e dispostos a ruminar eternamente.

Execração e horror! Li novelas
interminavelmente bondosas
e tantos versos sobre
o Primeiro de Maio
que agora escrevo apenas sobre o 2 desse mês.

Parece que o homem
atropela a paisagem
e a estrela que antes tinha céu
abate-nos agora
com a sua pertinácia comercial.

Assim acontece com a beleza
como se não quiséssemos comprá-la
e empacotam-na a seu gosto e maneira.

Há que deixar que a beleza baile
com os galãs menos recomendáveis,
entre o dia e a noite:
não a obriguemos a tomar a pílula
da verdade como um medicamento.

E o real? Também, sem dúvida alguma,
mas que nos aumente,
que nos alongue, que nos arrepie,
que nos exprima
tanto a ordem do pão como a da alma.

A sussurar! ordeno
ao bosque puro
que diga em segredo o seu segredo,
e à verdade: Não te detenhas tanto
que te endureças até à mentira.

Não sou reitor de nada, não comando
e por isso entesouro
os equívocos todos do meu canto.

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.