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domingo, 20 de março de 2016

Opinião

Sua excelência, o kitsch


O jornalismo de celebração que triunfou ao longo de mais de uma semana, tendo como motivo as palavras e os actos inaugurais do Presidente empossado, exige uma análise que revela muito mais os efeitos sedutores da emoção estética do que uma racional adesão política. A chegada do novo Presidente proporcionou um investimento emotivo que subsume dois conceitos do domínio estético: a empatia (um importante conceito da Estética pós-hegeliana) e o Kitsch.
A empatia foi a grande referência de Marcelo Rebelo de Sousa, traduzida em actos e palavras. Perguntar-se-á: que mal há nisso, se o efeito é uma fugaz felicidade? Toda a gente tem a liberdade — e certas circunstâncias tornam compreensível o seu uso pleno — de procurar uma gratificação e recorrer a um imaginário público que é uma fábrica de mentiras, como é sempre toda a solução estética do Kitsch; mas outra coisa é uma operação realizada pelos media que consiste em suspender completamente o espaço de elaboração crítica e amplificar a  adesão sentimental, chamada “política dos afectos”. Aí, os media estão a promover a empatia da massa consigo mesma, cujo resultado é uma estetização da política que, nos seus desenvolvimentos extremos, foi uma forma dos regimes totalitários (com esta evocação não pretendo estabelecer falsas equivalências ). Kitsch, no mais alto grau, foi de facto o discurso inaugural do Presidente (Diogo Ramada Curto, numa análise lúcida e bem formulada chamou-lhe um “discurso bacoco”).
E dizer isto não significa estar já a retirar qualquer consequência de ordem política e a fazer projecções. Podemos acreditar que Marcelo Rebelo de Sousa vai ser um óptimo Presidente, mas é de uma enorme irresponsabilidade estético-cultural (mais do que política) poupá-lo a esta evidência: o seu discurso e os prolongamentos que ele teve deram expressão ao que se pode chamar “Kitsch de massa”. Foi a ocasião para assistirmos ao Kitsch elevado a um nível olímpico. A empatia e a operação mimética que produz a emoção são os princípios fundamentais do Kitsch e no plano político sempre estiveram ligados aos rituais de aclamação e foram instrumentos de consolidação do poder constituído. Quem só conhecia as performances orais e teatrais de Marcelo Rebelo de Sousa, na televisão, este discurso escrito, mesmo analisado com a maior indulgência e tendo em conta a circunstância, revela uma elaboração escrita elementar, uma total ausência de densidade. E se não era a ocasião para satisfazer exigentes requisitos, ao menos que mostrasse as virtudes de uma prosa desenvolta, capaz de avançar sem ruído e com perícia. Durante anos, na televisão, o agora Presidente foi um exemplo para a configuração do nosso tempo: aquele em que o gosto das elites coincide com o gosto das massas. Descobrimos agora que o Kitsch é a sua última máscara — a máscara do banal. Não é altura de extrair conclusões sobre as suas qualidades políticas de Presidente. Mas percebemos que, afinal, a verdade do teor intelectual do Presidente pode muito bem ser a do “brilhante” Professor Marcelo tal como ele se exibia na televisão.
O homem que elevou o comentário político à condição de comédia pode então ser o mesmo que acaba de nos servir o espectáculo da catarse, a paródia da empatia, a expressão do Kitsch de massa. Demos um salto temerário para a “Felix Austria”: “Era a época do eclectismo, do fingido barroco, do fingido renascimento, do fingido gótico”. Assim definiu Hermann Broch o Kitsch vienense, quando o Imperador exorcizava o “alegre apocalipse”, dirigindo-se de maneira ecuménica “aos meus povos”.

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