O homem na jaula
- Uma estória contra a discriminação racial
António Santos*
30.Mar.16 :: Outros autores
«Os
EUA eram então o epicentro mundial das teorias eugénicas sobre a
«superioridade branca» que mais tarde inspirariam Hitler e a Expo de
1904 arrogava, orgulhosa, o «Império Americano» exibindo em jaulas
dezenas de homens e mulheres de diferentes povos.»
No
Verão de 1906, o número de visitantes do Jardim Zoológico do Bronx
triplicou. Segundo os registos oficiais do Zoo nova-iorquino, durante o
mês de Setembro, eram mais de 40 mil os curiosos que, diariamente,
pagavam bilhete para ver a jaula com os próprios olhos. Numa placa junto
às grades, podia ler-se: «O Pigmeu Africano Ota Benga. Idade, 23 anos.
Altura, 1,25m. Trazido do rio Kasai, Estado Livre do Congo, pelo Dr.
Samuel P. Verner».
Quando a história de Ota Benga começa, a escravatura já tinha sido abolida nos EUA há 40 anos, mas o grande capital tinha herdeiros promissores. Foi William John McGee, presidente da prestigiada Associação Antropológica Americana, que solicitou à comunidade científica «a captura de africanos pigmeus» para exibição na Exposição Mundial de St. Louis de 1904. Os EUA eram então o epicentro mundial das teorias eugénicas sobre a «superioridade branca» que mais tarde inspirariam Hitler e a Expo de 1904 arrogava, orgulhosa, o «Império Americano» exibindo em jaulas dezenas de homens e mulheres de diferentes povos. Ota Benga era um deles.
Segundo o relato do autoproclamado «explorador e etnólogo» Paul Verner, o jovem Ota Benga fora «salvo de uma tribo de canibais e ficou muito feliz por se poder juntar a nós». Mais tarde, Verner admitiria que o jovem fora comprado como escravo, por cinco dólares, ao governo belga. O Rei Leopoldo II, genocida responsável por mais de 10 milhões de mortos e amigo pessoal de Verner, confessou-se «tão entusiasmado com a caçada» que quis participar pessoalmente. Mas não foi necessário caçar: o governo belga conduziu Verner ao mercado de escravos de Bassongo e, entre centenas de prisioneiros mutilados, uns sem mãos, outros sem orelhas, o «etnólogo» escolheu e comprou nove jovens da tribo mbuti, o mais novo com apenas 12 anos. Ota Benga é, dos nove, o único cujo destino nos é conhecido.
A manchete do St. Louis Pot-Dispatch de 26 de Junho era «Africanos Pigmeus na Expo» e, no interior, podia ler-se «Pigmeus requerem dieta de macaco». Preso dentro de uma jaula, Ota Benga era o centro das atenções do «mundo civilizado»: os homens picavam-no com bengalas para forçá-lo a mexer-se, as crianças gritavam-lhe e atiram-lhe pedras, as senhoras riam. Mais tarde, no Jardim Zoológico do Bronx, onde a tortura continuou, vários visitantes descrevem como Ota Benga, fechado numa cela com um orangotango, se tornara apático e indiferente às provocações das multidões.
Foi então que James Gordon, um religioso afro-americano, declarou guerra ao espectáculo degradante. «A nossa raça já está deprimida o suficiente sem que nos exibam junto de símios. Somos dignos de sermos considerados seres humanos», escreveu o reverendo numa carta ao New York Times. O editor do jornal respondeu que «os pigmeus são muito inferiores na escala humana» acrescentando que «a sugestão de que Benga devia estar numa escola em vez de numa jaula ignora a alta probabilidade de que uma escola seria para ele um lugar de tortura. A ideia de que todos os homens são iguais em tudo excepto nas oportunidades é uma ideia extremamente anacrónica».
Mas à pressão exercida pelos afro-americanos somou-se a resistência de Ota Benga, que tinha aprendido inglês sozinho e usava a nova língua para denunciar a sua situação aos visitantes do jardim zoológico. A gota de água chegou, em 1906, quando Benga, usando uma faca roubada, se defendeu de um grupo de agressores. Finalmente, no dia 28 de Setembro de 1906, Ota Benga foi libertado e acolhido num orfanato para negros, onde teve acesso à educação básica. Depois, trabalhou numa fábrica de tabaco em Lynchburg, na Virgínia. Segundo os que o conheceram pessoalmente, era um homem bom que gostava de andar descalço e tinha nas crianças os melhores companheiros e amigos. Ensinava os rapazes a caçar e contava-lhes histórias sobre a vida no Congo. As crianças costumavam observá-lo a acender uma fogueira para cantar na sua língua e dançar conforme a sua cultura. Estava, contava aos vizinhos, a planear a viagem de regresso para África.
A I Guerra Mundial veio paralisar as viagens transatlânticas e travar os planos de Ota Benga. Dizem os relatos coevos que, lentamente, tornou-se taciturno e deixou de brincar com as crianças. Então, na noite de 20 de Março de 1916, há precisamente 100 anos, as crianças de Lynchburg viram-no acender uma fogueira cerimonial. Terá dançado e cantado toda a noite. Mas dessa vez, antes da manhã romper, suicidou-se com um tiro no coração.
Na semana em que se assinala o Dia Internacional contra a Discriminação Racial, devemos lembrar-nos, que os captores de Ota Benga eram «civilizados», «democráticos», «desenvolvidos» e «cosmopolitas». E também que, «anacronicamente», poucos meses depois da morte de Benga, na Rússia czarista, uma das regiões mais atrasadas do mundo, começava a construção mais avançada da humanidade. E o princípio do fim do racismo.
Este texto foi publicado no Avante nº 2.208 de 24 de Março de 2016.
in O DIÁRIO info, com a devida vénia
Quando a história de Ota Benga começa, a escravatura já tinha sido abolida nos EUA há 40 anos, mas o grande capital tinha herdeiros promissores. Foi William John McGee, presidente da prestigiada Associação Antropológica Americana, que solicitou à comunidade científica «a captura de africanos pigmeus» para exibição na Exposição Mundial de St. Louis de 1904. Os EUA eram então o epicentro mundial das teorias eugénicas sobre a «superioridade branca» que mais tarde inspirariam Hitler e a Expo de 1904 arrogava, orgulhosa, o «Império Americano» exibindo em jaulas dezenas de homens e mulheres de diferentes povos. Ota Benga era um deles.
Segundo o relato do autoproclamado «explorador e etnólogo» Paul Verner, o jovem Ota Benga fora «salvo de uma tribo de canibais e ficou muito feliz por se poder juntar a nós». Mais tarde, Verner admitiria que o jovem fora comprado como escravo, por cinco dólares, ao governo belga. O Rei Leopoldo II, genocida responsável por mais de 10 milhões de mortos e amigo pessoal de Verner, confessou-se «tão entusiasmado com a caçada» que quis participar pessoalmente. Mas não foi necessário caçar: o governo belga conduziu Verner ao mercado de escravos de Bassongo e, entre centenas de prisioneiros mutilados, uns sem mãos, outros sem orelhas, o «etnólogo» escolheu e comprou nove jovens da tribo mbuti, o mais novo com apenas 12 anos. Ota Benga é, dos nove, o único cujo destino nos é conhecido.
A manchete do St. Louis Pot-Dispatch de 26 de Junho era «Africanos Pigmeus na Expo» e, no interior, podia ler-se «Pigmeus requerem dieta de macaco». Preso dentro de uma jaula, Ota Benga era o centro das atenções do «mundo civilizado»: os homens picavam-no com bengalas para forçá-lo a mexer-se, as crianças gritavam-lhe e atiram-lhe pedras, as senhoras riam. Mais tarde, no Jardim Zoológico do Bronx, onde a tortura continuou, vários visitantes descrevem como Ota Benga, fechado numa cela com um orangotango, se tornara apático e indiferente às provocações das multidões.
Foi então que James Gordon, um religioso afro-americano, declarou guerra ao espectáculo degradante. «A nossa raça já está deprimida o suficiente sem que nos exibam junto de símios. Somos dignos de sermos considerados seres humanos», escreveu o reverendo numa carta ao New York Times. O editor do jornal respondeu que «os pigmeus são muito inferiores na escala humana» acrescentando que «a sugestão de que Benga devia estar numa escola em vez de numa jaula ignora a alta probabilidade de que uma escola seria para ele um lugar de tortura. A ideia de que todos os homens são iguais em tudo excepto nas oportunidades é uma ideia extremamente anacrónica».
Mas à pressão exercida pelos afro-americanos somou-se a resistência de Ota Benga, que tinha aprendido inglês sozinho e usava a nova língua para denunciar a sua situação aos visitantes do jardim zoológico. A gota de água chegou, em 1906, quando Benga, usando uma faca roubada, se defendeu de um grupo de agressores. Finalmente, no dia 28 de Setembro de 1906, Ota Benga foi libertado e acolhido num orfanato para negros, onde teve acesso à educação básica. Depois, trabalhou numa fábrica de tabaco em Lynchburg, na Virgínia. Segundo os que o conheceram pessoalmente, era um homem bom que gostava de andar descalço e tinha nas crianças os melhores companheiros e amigos. Ensinava os rapazes a caçar e contava-lhes histórias sobre a vida no Congo. As crianças costumavam observá-lo a acender uma fogueira para cantar na sua língua e dançar conforme a sua cultura. Estava, contava aos vizinhos, a planear a viagem de regresso para África.
A I Guerra Mundial veio paralisar as viagens transatlânticas e travar os planos de Ota Benga. Dizem os relatos coevos que, lentamente, tornou-se taciturno e deixou de brincar com as crianças. Então, na noite de 20 de Março de 1916, há precisamente 100 anos, as crianças de Lynchburg viram-no acender uma fogueira cerimonial. Terá dançado e cantado toda a noite. Mas dessa vez, antes da manhã romper, suicidou-se com um tiro no coração.
Na semana em que se assinala o Dia Internacional contra a Discriminação Racial, devemos lembrar-nos, que os captores de Ota Benga eram «civilizados», «democráticos», «desenvolvidos» e «cosmopolitas». E também que, «anacronicamente», poucos meses depois da morte de Benga, na Rússia czarista, uma das regiões mais atrasadas do mundo, começava a construção mais avançada da humanidade. E o princípio do fim do racismo.
Este texto foi publicado no Avante nº 2.208 de 24 de Março de 2016.
in O DIÁRIO info, com a devida vénia
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